20 de novembro de 2017

TROVA # 141

O DIA DA CONSCIÊNCIA



A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história
Segurando esse país no braço
O cabra aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento
Mas muito bem intencionado
E esse país
Vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado

Mas mesmo assim
Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
(Marcelo Yuka, Seu Jorge & Wilson Cappellette na voz de Elza Soares, 2002)


         Há pouco tempo que foi instituído o Feriado do Dia da Consciência Negra. Infelizmente, não para todas as cidades do país e sem o reconhecimento unânime de toda a população brasileira (alguns acham que precisamos de mais “consciência humana” e não de mais conscientização a respeito da luta e das mazelas da população negra). Zumbi dos Palmares (morto em 20 de novembro de 1695), se estivesse entre nós, teria um trabalho e tanto para acalmar a turba xucra e insensível de cidadãos que expõem os seus pensamentos mais horrendos pela Internet afora.


O que os detratores do feriado de 20 de novembro ignoram ou não reconhecem é que a população negra trazida da África à força para o Brasil ajudou a construir as bases deste país debaixo de muito suor, dor, sangue e chicote. Se levarmos em conta que o racismo nunca deixou de estar presente nas relações entre nós e se faz cada vez mais gritante em tempos nos quais vivemos uma retirada constante de direitos civis, é preciso declaramos apoio incondicional a momentos como este.
Ao acordar mais tarde na manhã de 20 de novembro de 2017, aproveitei para descansar mais um pouco e tomar um café da manhã mais demorado na frente da televisão: vejo a lendária atriz Ruth de Souza, no alto dos seus 96 anos de idade, sendo homenageada em um programa de variedades, assistido por milhões de brasileiros. Senti uma pontinha de orgulho e esperança ao ver uma atriz de um pioneirismo tão grande como Ruth em cadeia nacional, depois de mais de quatro décadas de carreira nas artes cênicas.
Entretanto, a minha euforia foi para as cucuias quando tive a infeliz ideia de acessar as redes sociais e ver comentários de profissionais de educação criticando o Dia da Consciência Negra. Um detalhe importante: são colegas de profissão que, como eu, convivem com uma quantidade expressiva de alunos e pais negros e que possuem muito menos privilégios do que qualquer um de nós que teve a chance de ouro de estudar em boas universidades.


Pausa para as trivialidades do Instagram e do Facebook para ir até a janela ver a origem do barulho ensurdecedor que invade o meu quarto em um passe de mágica: vejo um trânsito absurdo na Rodovia Raposo Tavares para um dia normal (imagine para um feriado...) e dois helicópteros fazendo a ronda da região onde moro. Ao investigar pelo noticiário, descubro que um carro tinha sido interceptado pela polícia com um carregamento de drogas. Vi a figura do criminoso pela televisão sentado no meio-fio perto do ponto de ônibus de frente para a minha janela. Detalhe importante: o meliante estava sem algemas. Perguntei-me: e se ele fosse negro? Estaria provavelmente algemado e espancado pelos meganhas ou até morto, dependendo de sua (falta de) sorte...


Depois da sessão “mundo cão”, fui almoçar enquanto assistia o noticiário do dia. Ao assistir a notícia de um rapaz negro que foi perseguido, acusado de roubo e espancado por seguranças de um terminal de ônibus de São Paulo, senti a comida começando a embrulhar no estômago. Apesar de não ser negro, tenho a compaixão mínima de me colocar no lugar da pessoa que foi agredida. Poderia ser um aluno meu. Poderia ser um amigo meu. Não poderia ter sido eu, pelo fato das pessoas olharem para a cor da minha pele, para as roupas que eu visto e ver que jamais estaria sob suspeita de qualquer delito.


A solução para o mal-estar era dormir um pouco depois do almoço para ver se o desconforto passava. Não passou... Antes de me preparar para as tarefas do dia, caí na infelicidade de ler um texto escrito por um projeto mal-acabado de filósofo, intelectual reacionário, defendendo o jornalista William Waack, flagrado em um vídeo praticando o racismo da forma mais deplorável e abjeta que já vimos nos últimos tempos na TV.


Enquanto arrumava a casa, decidi ouvir música. Escolhi dois CDs dos Rolling Stones para me animar a fazer a faxina da semana. Enquanto ouvia aqueles rocks entremeados de blues clássicos de Howlin’ Wolf e Willie Dixon, fui me lembrando de passagens da biografia das pedras rolantes: o que teria sido de Mick Jagger e Keith Richards se eles não tivessem bebido no manancial poderoso da música negra norte-americana? Duvido que eles teriam tido metade da relevância que possuem para o mundo do entretenimento se Mick e Keith não reverenciassem os negros com tanto respeito...


E teve gente que pensou que Madonna era negra quando surgiu para o mundo do Pop em 1982. Levaram um susto ao ver que a voz de “Everybody” não era de uma “afro-americana” e sim de uma branquela de Michigan recém-radicada em Nova York.  Em mais de 35 anos de carreira, Madge é o que é graças à contribuição da musicalidade dos negros (Rap, Soul, Hip-Hop, etc.) e porque preconceito nunca esteve em seu dicionário musical. Aprendeu mais uma das lições mais importantes de seu guru David Bowie, que fez discos maravilhosos nos quais misturou Soul, Funk com androginia, narcóticos e Rock ‘n’ Roll. Dois exemplos de artistas brancos que sempre trataram os negros com enorme respeito.


Se formos falar em matéria de música brasileira, temos um material gigantesco de músicos brancos que reverenciaram os negros com todo o respeito. Elis Regina, para citar um exemplo feminino, encontrou em “Upa, Neguinho!” um de seus maiores sucessos: a canção de Edu Lobo & Gianfrancesco Guarnieri fala do infante Zumbi dos Palmares e o retrata como uma alternativa para a liberdade que os negros tanto procuraram em séculos de exploração.



Apesar dos negros terem encontrado uma parcela de liberdade e uma boa dose de respeito dentro do universo da música, eles ainda ganharão menos do que os brancos (fato que contribui para o atraso da economia brasileira) e estarão no topo das estatísticas de pessoas assassinadas no Brasil. Enquanto os brancos ainda torcerem o pescoço com medo ou repulsa daqueles que escravizaram no passado, teremos milhares de motivos para que todo dia 20 de novembro seja lembrado dos horrores que nós e nossos antepassados já cometeram por pura maldade, burrice e ignorância...