24 de setembro de 2017

TROVA # 137

O ALVORECER DOS MEDÍOCRES
(ou o retrocesso nosso de cada dia)




O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente

Por que você me trata mal
Se eu te trato bem
Por que você me faz o mal
Se eu só te faço o bem

Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
(André Abujamra, 1995)


Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem
(Adriana Calcanhotto, 1992)

        
         O meu excesso de trabalho e o meu estado de choque permanente em relação ao noticiário me impedem de escrever com a frequência desejada. A era da mediocridade tem dado as cartas com uma frequência tão grande que faz com que muitos de nós entrem num estado de revolta e apatia coletiva. O Brasil tem vivido o alvorecer dos medíocres com uma força tão avassaladora que é preciso digerir cada baque em partes para não temos uma indigestão.

*

O golpe de 2016 tem oferecido ao Brasil uma série de retrocessos que surgem diante de nossos olhos como se estivéssemos em queda livre rumo às catacumbas sem cinto de segurança. Assistimos à retirada de direitos humanos que foram conquistados há muito tempo debaixo de sangue, suor, gritos e muitas lágrimas em estado de apatia e choque.
         O Brasil ficou infinitamente mais estúpido e ignorante a partir de 2013: as manifestações que levaram multidões às ruas criaram a ilusão de que o brasileiro médio tinha o poder de mudar os rumos da nação. O fato que muitos desconhecem é que as mãos que detém o poder sempre foram as mesmas; a diferença é que as vozes que berram o moralismo nosso de cada dia nas fuças de Deus e o mundo mudaram de rosto, mas reproduzem o mesmo discurso que levou o país para a ditadura militar em 1964.
         As forças políticas mais conservadoras da sociedade brasileira hoje deram voz e munição para grupos de “oposição” aos governos petistas e que foram massa de manobra para a consolidação do golpe de 2016. O grupo mais “pop” dentre todas essas milícias é o MBL (Movimento Brasil Livre), empenhado em livrar nosso país das garras da corrupção – para eles, os petistas.
         Fruto mais apodrecido do chamado “antipetismo”, o MBL tem se infiltrado em diversos setores da sociedade brasileira e se interessam pela regulamentação de tudo ou quase tudo que eles consideram “inapropriado”: são os principais defensores do projeto bizarro da “Escola sem Partido” e fazem linchamentos públicos de pessoas e coisas que vão de encontro aos ideais que defendem. O mais recente deles foi contra a exposição Queermuseu, exposição de arte de temática LGBT que estava em cartaz na cidade de Porto Alegre e era financiada pelo Banco Santander. O evento colocou em cartaz cerca de 270 trabalhos assinados por mais de 80 artistas, entre eles nomes renomados como Volpi, Portinari, Luiz Fernando Borges da Fonseca e Lygia Clark, em diversos suportes artísticos, como pintura, gravura, fotografia serigrafia e escultura. Visando a diversidade sexual, o tema é tratado de maneira explícita e abstrata.


         A repercussão negativa das postagens do MBL sobre a exposição nas redes sociais foi tão negativa, que o Santander, num ímpeto de autocensura, decidiu retirar a exposição de cartaz, por não querer ver o nome da empresa associada à pedofilia, zoofilia e contra a moral e os bons costumes cristãos. Graças ao conservadorismo de um grupo fascista e medíocre, o Brasil passou a viver às voltas com o conceito pérfido de “arte degenerada”, cunhado e posto em prática pelos nazistas da época de Hitler.

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         Outro exemplo da era da mediocridade em nosso cotidiano se deu com o cantor e compositor sertanejo Zezé di Camargo: em uma entrevista à jornalista Leda Nagle, o cantor deu uma série de declarações bastante polêmicas sobre nossa história mais recente: “Muita gente confunde militarismo com ditadura, todo mundo fala: ‘nós vivíamos numa ditadura’. Nós não vivíamos numa ditadura, nós vivíamos num militarismo vigiado, não numa ditadura”. Além de defender os militares que ficaram no poder de maneira ilegítima por mais de 20 anos, Zezé teve a pachorra de querer contrariar a natureza dos fatos históricos, o que a Internet não perdoou.


         O pensamento retrógado e desinformado do autor de “É o Amor” só encontrou o eco desejado por causa da saída do armário deste conservadorismo fascista que desconhece noções de história, filosofia, sociologia e interpretação de texto básicas a qualquer indivíduo com o mínimo de sensatez. O fator que me incomoda ainda mais é que Zezé di Camargo não é o único músico conservador que faz uso do espaço público para expressar sua visão de mundo nada libertária. Durante suas apresentações na edição de 2017 do Rock in Rio, os vocalistas Samuel Rosa (Skank) e Dinho Ouro Preto (Capital Inicial), defensores de políticos que apoiaram e deram o golpe de 2016, posavam de bons moços ao defenderem a Amazônia apenas por puro prazer de serem bons moços. Infelizmente, para eles, as redes sociais não esquecem do que eles fizeram na temporada eleitoral passada...



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         Uma das decisões mais estarrecedoras tomadas pela justiça brasileira se deu através de uma liminar concedida por um juiz do DF, que permite que psicólogos ofereçam terapias de “reversão sexual” para pacientes LGBT sem qualquer tipo de censura prévia ou autorização. O projeto, conhecido como “cura gay”, foi um dos maiores golpes contra a população homossexual do país onde mais se assassina homossexuais no mundo.



Foto: Adriana Souze

           O episódio da “cura gay” é apenas mais uma oportunidade e tanto para que os medíocres possam não apenas semear suas sementes do ódio e da discórdia para censurarem e restringirem a liberdade daqueles que eles julgam como minoria. O alvorecer dos medíocres pode fazer com que mais pedradas venham com mais agressividade, porém, as pedras que nos atiram são o motivo principal para que sigamos em frente. Afinal, o retrocesso geral já quer que andemos para atrás: para os guetos, para os porões, para as fogueiras, para os armários. Se nós iremos longe, não sabemos: mas seguiremos livres para onde quisermos ir.