3 de setembro de 2017

TROVA # 135

UMA BONECA DE NATALIE MERCHANT

Natalie, 1995

Blue like the winter snow in the full moon
Black like the silhouettes of the trees
Late blooming flowers lie frozen underneath the stars
I want you to remember me that way

Far away... I'll be gone, will you wait for me here
How long... I don't know, will you wait for me here

Still as the river grows in December
Silent and perfect blinding ice
Spring keeps her promises
No cold can keep her back
I want you to remember me that way

Far away... I'll be gone, will you wait for me here
How long... I don't know, but wait for me here
Follow... don't follow me
To where
To where I go

Far away... I'll be gone, will you wait for me here
How long... I don't know, will you wait for me here
Follow... don't follow me, to where I have gone
Follow... don't follow me, to where I have gone
Someday you'll take my place
And I'll wait
For you there
(Natalie Merchant, 1998)

 
        
         Meninas que gostam de exercer seu instinto maternal veem nas bonecas o seu exercício mais perfeito. Pessoas em busca de um parceiro sexual encontram nas criaturas infláveis uma possibilidade e tanto para o prazer momentâneo. Apesar de gostar de presentear as meninas da família com os brinquedos que elas mais desejam, sempre fico com um pouco de frio na barriga ao olhar para algumas delas.

Uma boneca de Buenos Aires - Foto: Nilton Serra (2011)

Nunca fui fã de bonecas. Nem quando era criança e adorava meus brinquedos. Exceto as miniaturas de super-heróis e coisas do tipo, sempre achei réplicas de seres humanos algo meio assustador, mórbido até. A ponto de ter calafrios e pesadelos ao entrar dentro do Mercado de San Telmo, Buenos Aires, ao ver uma boneca de porcelana antiga de porcelana nas vitrines. A terra de Maradona e Evita quase se transformou em um filme de terror por alguns minutos se não fosse a minha capacidade de sair correndo dos lugares em situações de medo.


          No português do Brasil, boneca é sinônimo de menina ou mulher bonita, de travesti ou homossexual afeminado. A perversidade da língua me dava mais alguns motivos e tanto para odiar o objeto e o vocábulo. Todavia, o fato de eu ser chamado de “Tio Vini” com o passar dos anos e o meu amor pela música fizeram com que eu revisse meus conceitos.

*

         Tenho alguns discos que são tão íntimos, mas tão íntimos que literalmente passaram a fazer parte da minha vida. Minha relação com Ophelia (1998), o segundo álbum solo de Natalie Merchant, se tornou bastante intensa e me acompanha desde o final dos meus 17 anos de idade. Não apenas pelo talento comovente de Natalie para a música, mas pelo fato de ser um trabalho que versa sobre loucura, tristeza, abandono, morte e gratidão de uma maneira completamente anticonvencional de acordo com os padrões da música popular dos Estados Unidos.
         Dentre as faixas mais famosas de Ophelia, “Kind & Generous”, “Break Your Heart” e “Life is Sweet” se tornaram obrigatórias nas apresentações ao vivo de Natalie Merchant. Lados B como “My Skin” e “Thick as Thieves” não só se tornaram duas das favoritas do público, como também atestam que a canção popular pode ser tão complexa ou intrigante quanto qualquer poema publicado em um livro por aí... No entanto, a canção mais enigmática e sombria do álbum é “Frozen Charlotte”, faixa pontuada por um solo de guitarra lancinante de Don Peris e dos vocais de apoio de Karen Peris, do grupo Innocence Mission.


         “Frozen Charlotte” (ou Frozen Charlies, devido ao seu corte de cabelo Joãozinho) era como se chamava uma boneca de porcelana da era vitoriana consumida nos EUA entre a segunda metade do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. A origem do nome se deve a um poema da época, que conta a história de uma menina chamada em Charlotte que se recusava a se agasalhar para sair para um passeio de trenó. Diante da sua imprudência, a menina congelou até a morte durante o passeio. A doce bonequinha seria uma natureza morta para ser consumida pelo público infantil.


         A canção de Natalie Merchant, até onde me parece, versa sobre um único tema: morte. Por isso, o desejo que todo ser vivo com o mínimo de ego possui é poder ser lembrado para a posteridade, deixar um legado ou uma boa lembrança nas memórias das pessoas que amou. No caso dos versos de “Frozen Charlotte”, o gelo possui um poder gigantesco de destruição ou, por ser sinal do inverno, é sinal de que um ciclo de vida possa estar chegando ao fim.


         Os versos sugerem uma conversa entre duas pessoas – uma mais velha e uma mais jovem (mãe e filha?). Enquanto a criança pede para seguir os passos inevitáveis da outra em direção ao abismo inevitável que todos nós teremos que seguir, a outra suplica para que a infante prossiga seu caminho e deixe a vida tomar o seu curso natural para que um dia as duas possam se encontrar no estágio seguinte do fim da existência de cada um.

*

Em 2017, graças a iniciativa da gravadora Nonesuch, uma das poucas empresas que ainda valorizam a arte musical nos EUA, Natalie Merchant reeditou sua discografia e alguns extras. Dentre o material bônus, Natalie gravou uma nova versão de “Frozen Charlotte” com um belíssimo arranjo de quinteto de cordas. A gravação original, que nunca tinha chamado tanto a minha atenção, passou a me dizer algo em matéria de emoção graças à sua segunda versão.  



Através de obra musical extraordinária, Natalie me ensinou que bonecas podem nos falar muito mais sobre a vida do que as vãs filosofias de vitrines de brinquedos podem nos ensinar...