7 de fevereiro de 2017

TROVA # 110

ONDAS DE ÓDIO, MAROLAS DE INTELIGÊNCIA


Em memória de Dona Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017)



Lies, dripping off your mouth like dirt
Lies, lie in every step you walk
Lies, whispered sweetly in my ear
Lies, how do I get out of here
Why, why you have to be so cruel
Lies, lies, lies, I ain't such a fool
(Mick Jagger & Keith Richards, 1978)


Existem momentos nos quais a barbárie e os sentimentos negativos em relação à política brasileira são tão grandes que apenas uma frase surge para mim diante dos fatos mais recentes: a humanidade é o projeto mais fracassado deste planeta, sem chances de salvação.


A pior consequência do conservadorismo que tomou conta do cotidiano nacional é a polarização política para cada acontecimento (inter)nacional: tudo se tornou uma questão partidária, com discussões acaloradas e agressões gratuitas, dependendo do teor de seu posicionamento. Minha reação em relação à onda de ódio é um misto de silêncio, tristeza e indignação, além de uma vergonha alheia sem tamanho.


O episódio mais recente destas ondas de ódio aconteceu com a família mais odiada do país, a do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Marisa Letícia, a esposa de Lula, sofreu um AVC em 24 de janeiro de 2017 e foi levada às pressas para o Sírio Libanês, um dos hospitais mais caros do Brasil. A antiga Primeira Dama passou 10 dias em coma induzido até ter sua morte cerebral e falecer na noite de 2 de fevereiro de 2017. Durante este período de agonia, o festival de boçalidades atingiu os níveis do insuportável: uma tomografia de Marisa foi divulgada sem autorização, alguns médicos chegaram a clamar pela morte da esposa de Lula e uma médica do hospital divulgou um boletim médico da paciente sem autorização. As redes sociais ferveram com palavras de ordem desejando o pior. O sadismo estava sendo praticado por profissionais de saúde, as últimas pessoas no planeta que deveriam adotar tamanha maldade. O GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) estava em festa com a morte da companheira do maior líder sindical da história deste país...




A cegueira das pessoas que odeiam o PT – mais um dos trunfos desta mídia conservadora, subserviente e cínica que o Brasil possui – fez com que as pessoas ignorassem a desgraça e o sofrimento de um senhor de idade que é obrigado a conviver sem a companheira de mais de 40 anos de vida em comum. Não cabe debate político ou palavras de ordem em momentos de sofrimento de nossos (ex-)chefes de Estado: o espírito republicano, democrático e a compaixão pelo próximo devem substituir o ódio e as desavenças políticas. Vários integrantes da classe política brasileira entenderam a importância de bandeiras brancas em episódios tão trágicos – Lula recebeu visitas de seus aliados políticos no hospital (Dilma Rousseff, Olívio Dutra, Gleisi Hoffman e outros correligionários), como também recebeu condolências de vários adversários políticos, dentre estes uma comitiva do Presidente Michel Temer.


No entanto, de todos aqueles que foram prestar solidariedade a Lula, a visita que mais me surpreendeu foi a do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. Inimigos políticos, boxeadores de lados opostos do ringue no qual a política brasileira se tornou, não se falavam há anos. A maior lição de espírito republicano, por incrível que pareça, veio de um político do PSDB: na dor e na desgraça, não existem convicções políticas, o mais importante é a solidariedade. A Internet foi levada à loucura com o encontro de FHC com Lula: como um homem que foi casado com uma das intelectuais mais importantes do país foi se solidarizar com a dor de um marido de uma ex-babá e humilde dona de casa?! Fernando Henrique amargou o fato de ter sobrevivido à morte de Ruth Cardoso e recebeu o afeto e as condolências de seu maior adversário político.


Dona Marisa Letícia nunca recebeu o respeito e o prestígio de Dona Ruth Cardoso: foi ridicularizada, difamada e atacada das maneiras mais torpes durante os oito anos do governo Lula por nunca ter assumido nenhuma tarefa durante os dois mandatos do marido. Decidiu ser dona de casa, a companheira e o esteio do ex-Presidente, mas nunca recebeu o status de “bela, recatada e do lar” da esposa de Michel Temer. Na intimidade da família Lula, quem dava as cartas e era a líder de todos era Marisa: dona de personalidade forte, não tinha meias palavras, era uma mulher muito franca e simples. Costurou a primeira bandeira do PT e levou várias mulheres do ABC às ruas em plena ditadura para que Lula fosse libertado pelos militares de uma pena injusta. Acusada e ré em um dos processos da Operação Lava Jato, sofreu com a perseguição política ao seu clã e teve sua intimidade devassada pelo juiz Sérgio Moro, que autorizou a divulgação de escutas telefônicas sem permissão do Supremo Tribunal Federal.




Apesar da dor e do sofrimento da perda de sua companheira de mais de quatro décadas, Lula fez um discurso eloquente no velório de Marisa Letícia. Deixou claro que a perseguição política que ele e sua família sofreram contribuíram para o AVC da esposa. As críticas das subcelebridades e oportunistas de plantão nos forneceram mais provas de que o ser humano é o projeto mais fracassado de que se tem notícia. O professor e filósofo Leandro Karnal (UNICAMP) resumiu com perfeição o que penso a respeito das pessoas que desejam a morte de outros sem a menor parcela de escrúpulo:


“Atacar ou ter felicidade pela morte de um ser humano é uma prova absoluta de que a dor e o ressentimento podem enlouquecer alguém. Se você sente felicidade pela morte de um inimigo, guarde para si. Trazer à tona torna pública sua fraqueza, sua desumanidade. Acima de tudo, mostra que este inimigo tinha razão ao dizer que você era desequilibrado. Contestem, debatam, critiquem: mas enderecem tudo isto a quem possa revidar. Por enquanto temos apenas um homem que perdeu sua companheira, filhos órfãos e netos sem a avó. Entre os vivos, surgem divergências e debates. Diante da morte, impõe-se silêncio e respeito. (...)”.




         Quando eu vejo o noticiário diário, sinto que há uma enorme onda de ódio ao lado de marolinhas de inteligência. A apatia da classe média que se vestiu de verde e amarelo nas ruas diante da nomeação de um membro do PSDB e ex-advogado do PCC (uma das organizações criminosas mais poderosas do país) é tão grande que eu me pergunto onde as panelas que batiam foram parar. Será que elas não são necessárias ou será que, segundo a nossa ex-Primeira Dama, elas foram enfiadas em algum local indigno de publicação?