29 de outubro de 2017

TROVA # 140

O EROTISMO SEGUNDO MADONNA
(EROTICA: 25 ANOS DEPOIS)




When you know the notes to sing
You can sing most anything
That’s what my mama told me
(Madonna, 1992)



O mundo andava bastante conturbado em 1992. Vivíamos o auge da 1ª Era Bush com direito a conflitos armados de toda espécie. O Brasil vivia a deposição do primeiro presidente eleito pelo voto através de um impeachment. A AIDS tinha tragado alguns nomes do entretenimento em todo o planeta: enquanto chorávamos a morte de Cazuza, o resto do mundo amargava a partida precoce de Freddie Mercury. Tempos conservadores aqueles. Falar de sexo se restringia apenas à prevenção para que a tal síndrome (que nunca escolheu cor, sexo ou sexualidade) não viesse bater à sua porta. Mencionar prazer sexual ainda era um tabu e tanto no início da década de 1990.



Em outubro de 1992, uma das vozes mais controversas e revolucionárias do mundo do entretenimento resolveu acender o pavio eterno de toda e qualquer discussão em torno de sexo. Madonna já comprara uma quantidade sem tamanho de brigas ao beijar um Cristo negro e tinha dançado freneticamente na frente de cruzes em chamas. Já tinha simulado sexo oral e masturbação durante a turnê Blond Ambition anos antes. Em outras palavras, Madge não precisava de muito pretexto para arranjar confusão, pois seu nome constava no topo da lista negra dos conservadores mais ferrenhos e radicais. Mesmo assim, ela resolveu dobrar a sua artilharia contra a caretice.




Em 20 de outubro de 1992, Madonna deu uma cartada e tanto contra os conservadores e o medo de se falar sobre sexo: Erotica, seu quinto álbum de estúdio, foi lançado simultaneamente com Sex, um coffee table book com fotos artísticas de Steven Meisel no qual o mundo conheceu todos os ângulos possíveis e imagináveis da Rainha do Pop em colorido e em preto e branco. Foi o primeiro empreendimento da artista através do selo multimídia Maverick, ligado à Warner Records. O livro trata de vários tipos de fantasias sexuais com a Pop Star nua ao lado de anônimos e famosos - sexo grupal, relações em locais públicos, ménage a trois, sadomasoquismo e sexo oral são alguns dos temas abordados pela obra. O álbum, por sua vez, trata dos mesmos temas do livro, de maneira bastante França e explícita. Na pele do alter-ego “Dita”, Madonna apresenta uma síntese da importância do prazer durante o sexo em “Erotica”, sua canção-manifesto, uma anti-canção pregando a sacanagem com todas as letras. A missão de Dita era a de ensinar as pessoas a terem uma vida com menos inibição e mais prazer, desmistificando o sadomasoquismo e o sexo oral. E some a este caldeirão fumegante canções sobre obsessão sexual, promiscuidade, confissões de amor e ódio e duas odes contra o preconceito.






Quando a Rainha do Pop se vestiu de Dita, lançou este compêndio sobre o sexo (CD e livro), eu tinha um pouco de mais de 11 anos de idade e estava descobrindo os prazeres da música naquele momento de minha vida. Lembro com clareza do linchamento público sofrido por Madonna e da excitação pública que os fãs sentiam com cada clipe, cada escândalo e com a turnê The Girlie Show, que passou pelo Brasil em novembro de 1993 – até hoje eu me lembro do choque de D. Magaly, minha avó ao ver o número de abertura do espetáculo, no qual uma das bailarinas descia seminua fazendo pole dancing. Apesar do álbum e do show terem recebido críticas favoráveis, os conservadores de plantão não perdoaram Madge por ter tocado em tabus sexuais tão controversos de uma tacada só e a partir de uma perspectiva tão pessoal. Querendo ou não, os anos 1992-1993 foram muito difíceis para a Pop Star por terem lhe imposto uma imagem de degenerada e irresponsável, o que fez com que Erotica fosse o primeiro álbum de Madonna a não atingir o topo das paradas da Billboard.




Apesar de ser um disco adorado pelos fãs, Erotica é, infelizmente, um dos trabalhos mais subestimados de Madonna – creio que foi o primeiro disco com aquele selo “Parental Advisory Label” que eu me lembro de ter visto. Foi um álbum bem menos vendido comparado a True Blue, Like a Prayer e Like a Virgin, porém é o único disco em que a Rainha do Pop trata de sexo, vida, morte, agonia, desejo, liberdade e prazer sexual com tamanha contundência. Para um menino suburbano que estava entrando na adolescência, descobrindo os prazeres da música (e os sexuais também!), as 14 gravações daquele CD se tornaram em um desejo incontrolável de libertação, contestação e de pensar do lado de fora da caixinha que nos impõem para que possamos viver harmoniosamente em sociedade.



Musicalmente falando, Erotica também é uma aula de diversidade musical: seduzida pela Dance Music do início dos anos 1990, como também pela da década de 1970, Madonna se aliou aos produtores Shep Pettibone (com quem fez “Vogue”) e André Betts para a realização de um trabalho que reúne baladas e canções dançantes em ritmo de R & B, Hip Hop, Soul, Jazz, House e uma guitarra flamenca sensacional em “Deeper and Deeper”. Enquanto eu me encantava cada vez mais pela Rainha do Pop, seu som, suas imagens e mutações mil através da extinta MTV Brasil, aprendi algumas lições básicas de como se faz música popular, sem deixar a peteca da qualidade cair.






Além disto, Madonna me ensinou a importância de não temos que depender de ninguém para termos a liberdade de pensar e existir da maneira que for mais conveniente para cada um de nós, sem se prender a quaisquer espécies de amarras morais ou ideológicas. E como ela mesma já nos disse, pobre é aquele que depende do outro para encontrar o seu próprio prazer. Em uma época na qual não podíamos falar de sexo tranquilamente por causa de uma epidemia que varria as pessoas para o vale da morte indistintamente, a Rainha do Pop reinventou a noção de erotismo na música. Graças a sua coragem e ao nosso desejo de liberdade, Erotica não ficará no limbo do esquecimento que os conservadores criaram para nos queimar vivos. Afinal de contas, as genuínas obras de arte não merecem e não podem ser esquecidas...  


26 de outubro de 2017

DISCOS DE VINIL # 46

ZÉLIA DUNCAN – INTIMIDADE (1996)


         Em 1996, o Brasil já conhecia o talento único de Zélia Duncan: voz grave, delicada e ao mesmo tempo de uma força avassaladora. O pop brasileiro precisava de mais mulheres inteligentes em meados daquela década – enquanto Marina Lima tinha uma linguagem mais Rock ‘n’ Roll, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto conquistavam as ondas do rádio com trabalhos que, ao mesmo tempo aliavam a modernidade e a tradição da MPB. Zélia tinha como trunfos uma influência da vanguarda paulistana, de Folk Music e parceiros musicais de primeira categoria.


         Intimidade, seu terceiro álbum de carreira, foi lançado em 1996, dois anos após Zélia Duncan ter estourado nas paradas de sucesso com uma versão em Português de “Cathedral Song”, de Tanita Tikaram. Apesar do sucesso estrondodo causado por uma canção que foi trilha sonora de novela, Zélia procurou compor canções que fugissem do óbvio, da tal receita fácil para tocar nas rádios e TVs. Como consequência, o brasileiro médio teve a chance de ouvir um tipo de música mais elaborado, com letras repletas de rimas improváveis e inteligentes. Uma provocação e um deleite de Miss Duncan para cada um que se aventurasse a ouvir o seu terceiro disco naquela época.
         Produzido por Liminha, um dos produtores mais famosos do país, Intimidade conseguiu emplacar mais dois sucessos para a cantora de “Nos Lençois Desse Reggae”: “Enquanto Durmo” (Christiaan Oyens & Zélia Duncan) fez parte da trilha sonora da novela Salsa & Merengue, de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa e até hoje é um dos números preferidos dos fãs durante os shows da artista. “Não Tem Volta” é uma das melhores parcerias de Zélia com Christiaan Oyens:

Se você vai por muito tempo
Você nunca volta
Você retorna, você contorna
Mas não tem volta
A estrada te sopra pro alto
Pra outro lado
Enquanto aquele tempo vai mudando
Aí, de quando em quando você lembra

Aquele beijo
Aquele medo
Mas você sabe que tudo ficou antigo
E você não volta
Nem com escolta
Nem amarrado, porque o passado já te perdeu

E o perigo muda mesmo de endereço.
Não existe pretexto, o dia mudou
O carteiro não veio
O princípio é o meio
E você retorna, mas não tem volta.



         Foi neste trabalho no qual Zélia Duncan conseguiu gravar uma canção de um de seus maiores ídolos, o cantor e compositor Itamar Assumpção, cuja obra ela sempre reverenciou sem medir paixões ou consequências. “Vou Tirar Você do Dicionário”, parceria do eterno Nego Dito com a poeta Alice Ruiz, ganhou uma de suas melhores releituras e fez com que milhares de pessoas pudessem conhecer melhor o legado de Itamar:

Eu vou tirar do dicionário
A palavra você
Vou trocar-lá em miúdos
Mudar meu vocabulário
e no seu lugar
vou colocar outro absurdo
Eu vou tirar suas impressões digitais
da minha pele
Tirar seu cheiro
dos meus lençóis
O seu rosto do meu gosto
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos "nãos" se faz um sim
Eu vou tirar o sentimento
do meu pensamento
sua imagem e semelhança
Vou parar o movimento
a qualquer momento
Procurar outra lembrança
Eu vou tirar, vou limar de vez sua voz
dos meus ouvidos
Eu vou tirar você e eu de nós
o dito pelo não tido
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos "nãos" se faz um sim
"Tudo que você disser
deve fazer bem
Nada que você comer
deve fazer mal"
"Eu quero as mulheres
que dizem sim
E quem não tem vergonha
de ser assim?"




Outra parceria frequente nos trabalhos de Zélia Duncan é a da artista com a cantora e compositora Lucina. Intimidade registrou três belos exemplos deste trabalho: as faixas “Coração na Boca”, “Minha Fé” e “Primeiro Susto”. Dentre as colaborações com Christiaan Oyens, “Bom pra Você”, “Me Gusta”, “Assim Que Eu Gosto” e a faixa-título, cujos versos retratam as pequenas coisas (boas e ruins) das relações amorosas:

Não nega
Fui eu que senti

Renega
Ninguém vai te ouvir

Intimidade é fato
Não dá pra fingir

Impeça
Senão vou cumprir

Carrega
Seus traumas daqui

Envelhecer é fato
Nâo dá pra fugir

Se esfrega em outro rosto pra deixar de me amar
Você me deu o gosto e esqueceu o lugar

Passos largos fora de hora
Não vão me afastar

Confessa
Seu tombo é aqui
Na queda
Quem vai se exibir?

Dignidade é fato
Não dá pra pedir

Se esfrega em outro rosto pra deixar de me amar
Você me deu o gosto e esqueceu o lugar

Passos largos fora de hora
Não vão me afastar

Confessa
Seu tombo é aqui
Na queda
Quem vai se exibir?

Dignidade é fato
Não dá pra pedir

Envelhecer é fato
Não dá pra fugir

Intimidade é fato
Não dá pra fingir


         Depois de mais de 20 anos de lançamento, Intimidade ainda se revela como um dos melhores trabalhos da discografia diversificada de Zélia Duncan. Se você quiser se aventurar pela música de uma das artistas mais criativas da música brasileira hoje, este CD é uma ótima pedida para você conhecer o que esta bela moça de cabelos cacheados tem para te dizer...