28 de setembro de 2017

DISCOS DE VINIL # 43

SHERYL CROW – BE MYSELF (2017)


Way back in the year of 2017
(Sheryl Crow, Bill Bottrell & Jeff Trott, 2008)

'Cause if I can't be someone else
If I can't be someone else
Oh if I can't be someone else
I might as well be myself, myself
Be myself
(Sheryl Crow & Jeff Trott, 2017)


         Sheryl Crow surgiu para os olhos do grande público entre o final de 1993 e o início de 1994 graças ao premiadíssimo álbum de estreia, Tuesday Night Music Club (1993), no qual ela juntou Country, Pop, Soul, baladas apaixonadas, Blues, Protest Song com o bom e velho Rock ‘n’ Roll. Antes de ser alçada ao estrelato, uma das maiores personalidades musicais do estado do Missouri chegou a trabalhar como professora de música, compositora de jingles para a TV e backing vocal (chegou a integrar a banda de apoio de nomes como Michael Jackson, Kenny Loggins e Don Henley – em um de seus trabalhos pós-Eagles).



         Em 25 anos de carreira musical (contando o álbum que gravou em 1992, antes do lançamento de Tuesday Night..., que nunca chegou a ser oficialmente lançado), Sheryl Crow gravou 11 álbuns, sendo 9 de estúdio, 1 ao vivo e 1 de canções natalinas. Dentre os parceiros musicais mais importantes que formou em um quarto de século, está o produtor musical Bill Bottrell – com quem tocou não apenas em seu primeiro disco, como também em Detours (2008) – e o guitarrista Jeff Trott, com quem compôs as melhores canções de seu repertório (as gravadas e lançadas na segunda metade da década de 1990). Be Myself, o décimo álbum de estúdio de Sheryl, não é apenas um reencontro dela com Trott, mas também é um retorno à sonoridade que ambos desenvolveram em discos já clássicos como The Globe Sessions (1998).


Sheryl Crow & Jeff Trott

         Apesar da sonoridade ter um quê de revival, o discurso poético de Sheryl Crow está em plena sintonia com as novidades do século XXI. As letras de Be Myself mencionam as redes sociais (Twitter, Instagram, Facebook, Snapchat) como palcos de amores frustrados e críticas sócio-políticas. Em tempos nos quais vivemos o ápice da mediocridade dos anos Trump nos EUA, canções como “Halfway There”, “Alone in the Dark”, “Love Will Save the Day”, “Heartbeat Away”, “Grow Up” e “Woo-Hoo” são recados muito certeiros para uma sociedade que assiste não apenas à perda de direitos básicos, como a insurgência do Presidente da República contra diferentes povos apenas para dar visibilidade ao seu projeto pessoal de poder.




         Por outro lado, Sheryl ainda tem o talento de fazer canções de apelo radiofônico, sem o caráter raso do que se ouve nas estações de rádio, nos programas de TV da VH1/MTV. “Strangers Again”, “Roller Skate”, “Rest of Me”, “Long Way Back” e “By Myself” são de enorme inteligência e elaboração, sem deixar de perder o toque Pop que sempre foi a marca registrada da autora de “All I Wanna Do”. Ouvir as canções da safra 2016-17 de Sheryl Crow passou a ser tão prazeroso quanto ouvir as canções lançadas por ela no período 1994-1999, no qual ela estava tomada de juventude, ímpeto, angústia, raiva e uma abaladora inspiração. Aos 55 anos, ela ainda nos oferece seu canto e suas melodias com muita beleza, classe e sabedoria.



Quem estiver em busca de um som dotado de inteligência e uma certa dose de comida para o pensamento, buscará em Sheryl Crow uma opção e tanto. Afinal de contas, Be Myself foi feito para permanecer nos ouvidos das pessoas – seja nos fones de ouvido ou nos aparelhos de som... 



24 de setembro de 2017

TROVA # 137

O ALVORECER DOS MEDÍOCRES
(ou o retrocesso nosso de cada dia)




O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente

Por que você me trata mal
Se eu te trato bem
Por que você me faz o mal
Se eu só te faço o bem

Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
(André Abujamra, 1995)


Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem
(Adriana Calcanhotto, 1992)

        
         O meu excesso de trabalho e o meu estado de choque permanente em relação ao noticiário me impedem de escrever com a frequência desejada. A era da mediocridade tem dado as cartas com uma frequência tão grande que faz com que muitos de nós entrem num estado de revolta e apatia coletiva. O Brasil tem vivido o alvorecer dos medíocres com uma força tão avassaladora que é preciso digerir cada baque em partes para não temos uma indigestão.

*

O golpe de 2016 tem oferecido ao Brasil uma série de retrocessos que surgem diante de nossos olhos como se estivéssemos em queda livre rumo às catacumbas sem cinto de segurança. Assistimos à retirada de direitos humanos que foram conquistados há muito tempo debaixo de sangue, suor, gritos e muitas lágrimas em estado de apatia e choque.
         O Brasil ficou infinitamente mais estúpido e ignorante a partir de 2013: as manifestações que levaram multidões às ruas criaram a ilusão de que o brasileiro médio tinha o poder de mudar os rumos da nação. O fato que muitos desconhecem é que as mãos que detém o poder sempre foram as mesmas; a diferença é que as vozes que berram o moralismo nosso de cada dia nas fuças de Deus e o mundo mudaram de rosto, mas reproduzem o mesmo discurso que levou o país para a ditadura militar em 1964.
         As forças políticas mais conservadoras da sociedade brasileira hoje deram voz e munição para grupos de “oposição” aos governos petistas e que foram massa de manobra para a consolidação do golpe de 2016. O grupo mais “pop” dentre todas essas milícias é o MBL (Movimento Brasil Livre), empenhado em livrar nosso país das garras da corrupção – para eles, os petistas.
         Fruto mais apodrecido do chamado “antipetismo”, o MBL tem se infiltrado em diversos setores da sociedade brasileira e se interessam pela regulamentação de tudo ou quase tudo que eles consideram “inapropriado”: são os principais defensores do projeto bizarro da “Escola sem Partido” e fazem linchamentos públicos de pessoas e coisas que vão de encontro aos ideais que defendem. O mais recente deles foi contra a exposição Queermuseu, exposição de arte de temática LGBT que estava em cartaz na cidade de Porto Alegre e era financiada pelo Banco Santander. O evento colocou em cartaz cerca de 270 trabalhos assinados por mais de 80 artistas, entre eles nomes renomados como Volpi, Portinari, Luiz Fernando Borges da Fonseca e Lygia Clark, em diversos suportes artísticos, como pintura, gravura, fotografia serigrafia e escultura. Visando a diversidade sexual, o tema é tratado de maneira explícita e abstrata.


         A repercussão negativa das postagens do MBL sobre a exposição nas redes sociais foi tão negativa, que o Santander, num ímpeto de autocensura, decidiu retirar a exposição de cartaz, por não querer ver o nome da empresa associada à pedofilia, zoofilia e contra a moral e os bons costumes cristãos. Graças ao conservadorismo de um grupo fascista e medíocre, o Brasil passou a viver às voltas com o conceito pérfido de “arte degenerada”, cunhado e posto em prática pelos nazistas da época de Hitler.

*


         Outro exemplo da era da mediocridade em nosso cotidiano se deu com o cantor e compositor sertanejo Zezé di Camargo: em uma entrevista à jornalista Leda Nagle, o cantor deu uma série de declarações bastante polêmicas sobre nossa história mais recente: “Muita gente confunde militarismo com ditadura, todo mundo fala: ‘nós vivíamos numa ditadura’. Nós não vivíamos numa ditadura, nós vivíamos num militarismo vigiado, não numa ditadura”. Além de defender os militares que ficaram no poder de maneira ilegítima por mais de 20 anos, Zezé teve a pachorra de querer contrariar a natureza dos fatos históricos, o que a Internet não perdoou.


         O pensamento retrógado e desinformado do autor de “É o Amor” só encontrou o eco desejado por causa da saída do armário deste conservadorismo fascista que desconhece noções de história, filosofia, sociologia e interpretação de texto básicas a qualquer indivíduo com o mínimo de sensatez. O fator que me incomoda ainda mais é que Zezé di Camargo não é o único músico conservador que faz uso do espaço público para expressar sua visão de mundo nada libertária. Durante suas apresentações na edição de 2017 do Rock in Rio, os vocalistas Samuel Rosa (Skank) e Dinho Ouro Preto (Capital Inicial), defensores de políticos que apoiaram e deram o golpe de 2016, posavam de bons moços ao defenderem a Amazônia apenas por puro prazer de serem bons moços. Infelizmente, para eles, as redes sociais não esquecem do que eles fizeram na temporada eleitoral passada...



*

         Uma das decisões mais estarrecedoras tomadas pela justiça brasileira se deu através de uma liminar concedida por um juiz do DF, que permite que psicólogos ofereçam terapias de “reversão sexual” para pacientes LGBT sem qualquer tipo de censura prévia ou autorização. O projeto, conhecido como “cura gay”, foi um dos maiores golpes contra a população homossexual do país onde mais se assassina homossexuais no mundo.



Foto: Adriana Souze

           O episódio da “cura gay” é apenas mais uma oportunidade e tanto para que os medíocres possam não apenas semear suas sementes do ódio e da discórdia para censurarem e restringirem a liberdade daqueles que eles julgam como minoria. O alvorecer dos medíocres pode fazer com que mais pedradas venham com mais agressividade, porém, as pedras que nos atiram são o motivo principal para que sigamos em frente. Afinal, o retrocesso geral já quer que andemos para atrás: para os guetos, para os porões, para as fogueiras, para os armários. Se nós iremos longe, não sabemos: mas seguiremos livres para onde quisermos ir.


14 de setembro de 2017

DISCOS DE VINIL # 42

GAL COSTA – CANTAR (1974)


Seja o avesso
Seja a metade
Se for começo
Fique à vontade…
(“Me Deixe Mudo”, de Walter Franco, interpretada por Gal Costa no show Cantar)


Em famoso depoimento concedido no ano de 1967, Caetano Veloso apontava a necessidade que a música popular brasileira tinha de retomar a sua “linha evolutiva” para que seguisse novamente rumo à modernidade perdida. Ao lançar as bases estéticas do movimento tropicalista, o filho de D. Canô demonstrava a importância necessária de reler o melhor da tradição da Bossa Nova sem deixar de referenciar os pontos fortes da produção jovem da época – o Iê-Iê-Iê, a música nordestina, sambalanço, samba-rock y otras cositas más… No entanto, com o fim prematuro do Tropicalismo e o exílio forçado de Caetano e Gilberto Gil na Europa, a retomada proposta pelos velhos baianos foi interrompida injusta e violentamente.


Durante o período 1969-1972, Gal Costa foi o estandarte principal do movimento tropicalista em atividade. Seus três primeiros discos e seu show/disco Fa-Tal: Gal a Todo Vapor fizeram de Maria da Graça Costa Penna Burgos uma das maiores estrelas da canção popular produzida neste país. Índia, lançado por Gal em 1973, foi outra pedra fundamental para a consolidação do legado da cantora e lhe rendeu enorme popularidade. Com uma carreira consolidada, o (merecido) reconhecimento como grande artista e como arauto do desbunde e da contracultura no Brasil, Gracinha estava pronta para correr novos riscos musicais, mais radicais do que quaisquer outros que tinha tomado até então…



Para que este risco tomasse fôlego e para que a retomada das propostas veiculadas pelo Tropicalismo se concretizassem em um projeto musical, Caetano Veloso decidiu dirigir o show e o disco que Gal Costa lançaria no ano de 1974. O resultado desta velha parceria foi o antológico disco Cantar, um dos trabalhos mais injustiçados de Gal na época de seu lançamento. A crítica (e, de certa maneira, o público) tinha a expectativa de que este seria mais um trabalho no qual o canto fosse rasgado, com direito a gritos, urros e solos de guitarra lancinantes. Ledo engano: no final de Índia, com a inclusão de uma releitura feita por Gal para “Desafinado” (Tom Jobim & Newton Mendonça), já se ensaiava um retorno de Gracinha às suas raízes, ou seja, a musa tropicalista cantando Bossa Nova de altíssima qualidade com o melhor de sua técnica joãogilbertiana.

Foto: Thereza Eugênia

Entretanto, enganam-se que Cantar é composto apenas de um repertório consagrado nas décadas de 1950 e 1960. As canções inéditas para o projeto receberam gravações definitivas: “Barato Total”, de Gil, abre o disco e mostra o suingue, a ginga e a mensagem central de tudo que “a gente quer é viver” sem ter grandes preocupações com a vida – uma proposta de vida hippie adornadas com os temperos mais saborosos da Bahia. As experimentalistas “Lua, Lua, Lua, Lua” e “Joia”, de Caetano, com letras curtas e que lembram as canções gravadas pela trupe tropicalista no disco-manifesto Panis et Circensis (1968). Além disto, Caetano é autor e co-autor de outras duas canções fundamentais para o disco: “Flor do Cerrado” (um breve tratado sobre vida, morte, permanência e a beleza que pode haver por trás disso) e a belíssima “A Rã”, que merece uma menção à parte…


Gal ao lado de João Donato

A primeira gravação desta canção surgiu pela primeira em meados da década de 1960 em um disco de Sérgio Mendes & Brazil 66, seguida de uma outra gravação feita pelo criador da música, João Donato. Caetano aproveitou as vogais utilizadas por Donato na gravação original, pôs letra e trouxe um personagem feminino para a canção – o original, “The Frog”, induz o ouvinte em pensar em uma figura masculina… Para a versão gravada em Cantar, Caetano convidou o próprio João Donato para tocar piano elétrico, resultando em um arranjo enxuto, porém sofisticado e bastante moderno.

Gal ao lado de João Donato

Há também três canções do repertório da Bossa Nova que receberam releitura de Gal neste disco: a primeira, “Canção que Morre no Ar” (Carlos Lyra & Ronaldo Bôscoli), recebeu um arranjo de cordas belíssimo de Perinho Albuquerque (produtor musical de todos os discos dos velhos baianos no decorrer da década de 1970) e uma das interpretações mais belíssimas da eterna Gracinha. Os versos “Vem / O mundo é sempre amor / O pranto que desliza / Do seio de uma flor / É a luz / Anjo sol (…)”, ao serem entoados por Gal, são resgatados dos clichês bossanovísticos que tanto encantaram os músicos da geração dos tropicalistas. As demais canções que foram resgatadas para o disco Cantar foram da autoria de João Donato e de seu irmão, Lysias Ênio: “Flor de Maracujá”, que recebeu um arranjo de metais em brasa que valoriza a interpretação e a brejeirice de Gal Costa e a antológica “Até quem Sabe”, faixa na qual a intérprete era acompanhada somente pelo piano de Donato.


Um compacto de Cantar

A seleção de repertório, capitaneada pela direção musical de Caetano Veloso, fizeram da boa e velha Bossa algo irremediavelmente moderno e contemporâneo. Infelizmente, a crítica musical acusou o disco de “saudosista”, “retrógrado”, dentre outras baixarias… O público, como consequência, não deu muita bola para o disco, muito menos para o show, que tinha uma versão insólita e surpreendente para “Me Deixe Mudo”, de Walter Franco, que infelizmente ficou de fora do LP e das reedições de Cantar em CD, para tristeza daqueles que curtem garimpar raridades da bela Gracinha. Outro efeito desta rejeição foi que Gal Costa deixou de buscar grandes inovações em seus trabalhos – ouso dizer que guinada semelhante só foi adotada por Gal em 2011 (36 anos depois do lançamento de Cantar), ao lançar Recanto, que teve direção musical do mesmo Caetano (sem o braço direito de Perinho Albuquerque, substituído pela competência incontestável de Moreno Veloso).



Outra sanção sofrida pelo disco, na época, foi o desprezo geral pela beleza das três faixas finais do lado B do disco. A primeira delas, a saborosa rumba “O Céu & O Som” (Péricles Cavalcanti), continha o verso que deu nome ao disco. A segunda, por sua vez, a pungente “Lágrimas Negras”, pareceria de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, é uma das gravações mais marcantes da música brasileira em todos os tempos. A última é a singela canção de ninar “Chululu”, composta e entoada por D. Mariah Costa para embalar Gracinha em seu colo para que ela dormisse com os anjos.


Foto: Thereza Eugênia


As gerações que não vivenciaram o impacto causado por Cantar e sua retomada da “linha evolutiva” em 1974 entenderam que, tal qual Gal cantou em “O Céu & O Som”, “O caminho do céu é / o caminho do som”. O ato de cantar exercido neste disco foi realizado com tamanha maestria por Gal Costa ao ponto de que ir até as nuvens através de uma bela voz é algo perfeitamente possível. As cantoras do Brasil e do mundo deveriam estudar este disco com muita atenção para que possam exercer seu ofício com mais competência. 

OUÇA O DISCO:



OUÇA O ÁUDIO DO SHOW:


10 de setembro de 2017

TROVA # 136

ROGÉRIA:

DOS HOLOFOTES PARA AS ESTRELAS





Em memória de Rogéria (1943-2017)

Em cima de Astolfo Barroso Pinto, a Rogeria é uma performance de uma atriz. Porque eu não penso que sou mulher. Por vezes, num devaneio, posso até pensar, mas caio em mim e tenho aquela consciência de que eu sou um ator gay que se veste de mulher porque tem talento para representar e simpatia e educação para com os outros (...)
(Rogéria, 2016)



Sempre começamos uma semana com feriado prolongado com uma alegria sem fim: três dias úteis de trabalho, um feriado e uma ponte de feriado para incrementar o intervalo que vai da segunda a sexta é um alento para nós, trabalhadores exaustos da labuta implacável do ano letivo. No entanto, a euforia da espera pelo 7 de setembro se dissipou tristemente com a partida inesperada de Rogéria, a travesti da família brasileira, em 4 de setembro de 2017.

Elke Maravilha & Astolfo Barroso Pinto, que gostava de ser chamado de "Seu Rogéria".

Rogéria ocupava, para mim, o mesmo patamar que Elke Maravilha: ela é um tipo de ser humano extraordinário, que irradiava alegria, irreverência e elegância. Não deveria morrer jamais ou deveria envelhecer até os 100 anos ou mais para que o máximo de pessoas lhe conhecessem. Pioneira em um momento no qual o Brasil não estava sequer preparado para compreender a mínima noção de diversidade, Astolfo Barroso Pinto deixou o físico masculino de lado para viver sua feminilidade com toda a sua coragem e plenitude.

 


O preconceito que sofreu no início de sua trajetória, surpreendentemente, não veio da família (sua mãe foi de uma sensibilidade e de um apoio incomuns para uma mãe de transgênero naquela época): a repressão policial por ser travesti foi respondida à altura – na base da porrada, com muito sopapo e tapa na cara de meganha safado ou qualquer autor de bullying disposto a cercear a liberdade sexual dos outros. E fazia questão de deixar claro que era uma "bicha felicérrima" e que queria conquistar todas as faixas de público - das senhorinhas aos mais jovens – dispostos a alguns minutos de alegria e glamour.


Além de ser uma atriz excelente (chegou a fazer uma avó em uma telenovela, inclusive!) e uma showwoman espetacular, Rogéria tinha uma voz e uma afinação ótimas. Choro de rir até hoje ao rever sua participação especial como a irmã de Copélia (Arlette Salles) em um dos episódios da primeira temporada de Toma Lá, Dá Cá. Cantava os clássicos da música francesa e canções de musicais e cabarés com um toque camp muito peculiar, sem deixar de mostrar sua elegância e requinte em cada nota. Ela não deveria ter se restringido apenas aos shows de boates e tinha que ter gravado um disco com a fina flor do repertório dos seus shows.


Ouvir Dalida, Carmen Miranda ou Piaf na voz de Rogéria era um deleite para qualquer pessoa que adorasse música. Numa esquecida ocasião, fui ouvir um CD de Lana Bittencourt e levei um susto ao ver que a diva passional convidou Rogéria para um dueto em "Haja o que Houver", um samba-canção de Fernando César e Nazareno de Brito adorada pela comunidade LGBT. Surpreendentemente, as duas não só deram conta do recado, como protagonizaram um dos melhores momentos daquele disco.





Em uma noite de insônia, não me esqueço de estar zapeando pela TV e cair de paraquedas no Programa do Jô. Para meu deleite, vejo Rogéria à frente do sexteto de Jô Soares com um vestido longo e cabelos soltos como uma mistura de Marilyn Monroe e Rita Rayworth cantando "Ronda", um dos maiores clássicos da dor de corno da história de toda a música brasileira. Com o seu humor peculiar, a personagem criada por Astolfo Barroso Pinto interpretou os de Vanzolini da seguinte maneira: "Ah, se eu tivesse / Quem bem me quisesse / Esse alguém me diria / Desista, bicha louca: essa busca é inútil / E eu não desistia". O público explodia em emoção e gargalhadas para aplaudir a travesti da família brasileira de pé enquanto eu, estarrecido, voltava para a cama com o prazer de ter sido mordido pelo mosquito da insônia.




Quando fui assistir o documentário Divinas Divas, de Leandra Leal, na tela grande, fiquei apaixonado pelas histórias e pelas figuras de Jane di Castro, Divina Valéria, Brigitte de Búzios, Camille K, Eloína dos Leopardos, Fujikka de Halliday e Marquesa. No entanto, Rogéria era de todas a que eu admirava. Não só pela personalidade e pela trajetória, mas pelo fato de que ela era a única que fez parte da minha infância: nunca mais me esqueci daquela cena antológica da novela Tieta, na qual Ninette, exausta do assédio de Aminthas (personagem de Roberto Bonfim), dá um soco em seu algoz e revela que seu nome verdadeiro é Waldemar. Depois daquele soco, a minha infância deixou de ter a mesma inocência de antes: crianças de oito anos criadas por famílias tradicionais jamais sonhariam com a existência de travestis no mundo encantado das novelas de televisão. Ponto para Aguinaldo Silva por ter criado esta personagem antológica para tornar a trama original de Jorge Amado ainda mais explosiva.




Estava assistindo os capítulos da reprise de Tieta com a expectativa de ver a aparição esfuziante de Ninette por Santana do Agreste. Afinal, a novela de Aguinaldo Silva não se permitiu oxidar pelo passar do tempo: não apenas porque a qualidade do trabalho da teledramaturgia é excelente, mas principalmente porque a mentalidade do brasileiro comum não mudou tanto assim. A população brasileira tinha a obrigação de assistir novamente aquela antológica cena em que a personagem de Betty Faria dá uma aula de preconceito e diversidade sexual para o personagem de Cássio Gabus Mendes, diante do retrocesso nosso de cada dia e de tempos nos quais tudo e mais um pouco deve ser politicamente correto. Em tempos de tanta patrulha ideológica, muitos não deveriam entender o brilho de estrelas como Rogéria. É por isso, e por muitas coisas mais, que ela sempre foi e será muito necessária para a humanidade. Quando as ladies que estrelaram Divinas Divas cantavam e choravam "La Vie en Rose" em cima de seu caixão, cantei e chorei junto: afinal, Rogéria fazia parte da minha família de estrelas musicais a habitar o meu imaginário...




Dizer que Rogéria era uma estrela é simplesmente muito pouco. Rogéria brilhava como uma constelação inteira: era muito mais macho que muito macho que conta bravata por aí; era muito mais fêmea do que muita fêmea fazendo selfies e mostrando a bunda por aí só para revoltar as inimigas. Sua alegria de viver é a maior lição que recebemos para que façamos algo bem melhor de nós mesmos. Sem ressentimentos, sem mágoas, com coragem, com brilho e com toda a irreverência que nos cabe. A partir do mês de setembro, Astolfo Barroso Pinto deixa de brilhar sob as luzes de holofotes para ocupar o seu lugar junto de outras estrelas a nos iluminar por aí...