30 de julho de 2017

TROVA # 130

O ARAUTO DA LIBERDADE
(OU A NECESSIDADE DE RESPEITARMOS NEY MATOGROSSO)


Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
(Caetano Veloso, 1983)


1) Uma provocação

         Às vésperas de completar 76 anos de idade (em 1° de agosto de 2017) e 45 de carreira musical (se levarmos em conta a primeira apresentação ao vivo do Secos & Molhados, em dezembro de 1972), Ney Matogrosso recebeu uma belíssima homenagem durante o 28º Prêmio da Música Brasileira, organizado pelo empresário José Maurício Machline. Em uma série de entrevistas concedidas pelo artista para divulgar o evento, Ney concedeu uma série de entrevistas para os principais veículos da imprensa nacional, incluindo a Folha de S. Paulo, que fez a seguinte chamada para a matéria ficar bem nos moldes de um bom “caça-clique”: “’Que gay o caralho! Eu sou um ser humano’, diz Ney Matogrosso”.


         Quando li a tal chamada, levei um susto e fui ler a tal entrevista antes de tomar qualquer conclusão ou juízo de valor – objetivo principal de qualquer coisa que o GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) possui em seus jornais físicos e virtuais. Em palavras um tanto descuidadas, Ney Matogrosso respondeu se ele se considerou, em algum momento, representante de uma minoria dizendo o seguinte:

“Eu não. Nunca peguei essa bandeira, não me interessa. Acho que eu sou útil assim: falando, conversando. Teve um encontro internacional gay no Rio, queriam que eu fosse presidir. Eu disse que não, não penso assim. Aí foi o Renato [Russo]. Tá certo, ele é quem tinha de ir, a cabeça dele era assim. Eu não defendo gay apenas, defendo índios, fiz um vídeo recentemente pedindo a demarcação de terras. Defendo os negros, que estão na mesma situação que viviam nas senzalas, estão presos aos guetos.
Me enquadrar como o “gay” seria muito confortável para o sistema. Que gay o caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa. O que eu faço com a minha sexualidade não é a coisa mais importante na minha vida. Isso é um aspecto de terceiro lugar”.



Ney Matogrosso foi hippie, isto é, vem da geração da contracultura: sempre rejeitou rótulos, limitações, imposições, qualquer coisa que cerceasse o seu desejo de ser livre. Nunca comprou nenhum peixe vendido pelo sistema apenas para agradar a sociedade. O que ele quis deixar muito claro em sua entrevista para a Folha de S. Paulo era justamente isso: a recusa em ser enquadrado sob qualquer rótulo, de forma que não fosse tachado ou limitado a uma ideia só ("cantor das minorias"). Infelizmente, nem todos entenderam assim... 


2) A revolta da turminha do lacre

Em primeiro lugar, vamos definir quem faz parte da turminha do lacre: são artistas LGBT surgidos na segunda metade da década de 2010 que não possuem a menor vergonha em desafiar padrões de gênero e tem feito bastante sucesso com as gerações mais jovens que saíram do armário. Adoram falar alto e ouvir pouco (ou quase nada!), acham Beyoncé e Elza Soares mulheres que “empoderam” (a palavrinha da moda!) seus pares e sempre curtem dar um pitaco em como devemos nos posicionar enquanto membros da causa cor de rosa.
Artistas como Liniker & Os Caramellows e a dupla As Bahias & A Cozinha Mineira são exponentes bastante talentosos dessa turma. Inspirados nas atitudes desse pessoal, a turminha em questão adora reverenciar o que é “lacre” (ou seja: tudo o que é ousado e que está, segundo Valesca Popozuda, “lacrando o cu das inimigas”). Se você diz ou faz algo que não é “lacrativo”, “fechativo” ou “bapho” (com “PH” mesmo!), você é digno de um “pisa menos”, de um “tombamento” e dizeres do tipo.
Eis a questão: quando a controvertida chamada para a entrevista de Ney chegou aos olhos de um dos exponentes dessa turma – um cantor em início de carreira cujo nome me recuso a citar não por questões de querer poupá-lo, mas porque qualquer menção ao nome do indivíduo é forma de publicidade indireta para o trabalho daquele ingrato –, a revolta de uma geração que lê mal, se posiciona mal e obcecada por “dar um close”, fez uma postagem arrasando com Ney Matogrosso em uma rede social. Disse o cidadão:

“É inconcebível ler a frase ‘Que gay o caralho, eu sou um ser humano’ no país que mais mata LGBTs do MUNDO(!!). Vinda de um artista cuja carreira em grande parcela se apoiou na bandeira da luta dessa comunidade, de seu próprio público”, comentou. (...) Um artista genial que perdeu o andar que o mundo tomou, ficou cristalizado, um cânone. (…) E em tempos de ‘Gay é o caralho’ a única resposta possível é que vai ter gay pra caralho, vai ser gay pra caralho sim, cada dia mais gay, cada dia um level a mais igual Pokémon”.

Diante da sucessão de enganos a respeito de Ney Matogrosso, é preciso deixar algumas coisas bastante claras:

a)  Apesar de sempre ter se recusado a fazer militância no sentido tradicional da coisa, Ney Matogrosso é um dos homens que mais batalharam pelo desenvolvimento da causa LGBT no Brasil: desafiou a ditadura e a censura durante os governos Médici e Geisel, seja à frente do lendário grupo Secos & Molhados ou em bem-sucedida carreira solo, ao quebrar padrões de gênero com coreografias e figurinos extravagantes, se maquiando e rebolando em pura demonstração de deboche, insubmissão e irreverência. Deixo para a turminha do lacre um trecho de uma entrevista para O GLOBO, na qual Ney deixa isso muito claro:

“O GLOBO: Quarenta anos depois dos Secos & Molhados, a gente chega a um momento da música brasileira em que os artistas não escondem sua sexualidade, e isso abriu uma discussão enorme sobre a questão de gênero. Você se reconhece no trabalho desses artistas?
NEY MATOGROSSO: Me reconhecer, não, porque eles são eles. Mas a verdade é que quem derrubou a porta fui eu. E o resto é consequência. Porém, não espero que ninguém fique batendo cabeça para mim. Não fiz nada além de atender à necessidade de me impor sobre uma mentalidade muito atrasada, muito estreita”;

b)  A carreira de Ney Matogrosso nunca se apoiou na causa LGBT. Pelo contrário: a causa LGBT sempre necessitou (e fez amplo uso!) do legado de Ney para poder se desenvolver no Brasil;
c)  Um artista que sempre se assumiu como homossexual e está há quase cinco anos dizendo que “Todo mundo tem direito à vida / Todo mundo tem direito igual” não é alguém que está desatento aos sinais de nosso tempo. O talento de Ney Matogrosso está longe de ser ou estar “cristalizado”: ele está há quase meia década percorrendo as casas de espetáculo do Brasil com o show Atento aos Sinais, um dos mais bem-sucedidos de sua carreira;



Ney Matogrosso no encerramento do Festival de Inverno de Bonito em 29/07/2017 - Foto: Rodrigo Motta

d)  Se artistas como Liniker e As Bahias conseguem “ botar a cara no sol” hoje em dia, elas deveriam agradecer a Ney Matogrosso por ter “dado a cara a tapa” há quase cinco décadas por fazer o que faz nos discos, nos palcos e nos programas de televisão. Não reconhecer isso não é simplesmente uma mera demonstração de petulância, é uma demonstração de burrice.

Show Destino de Aventureiro (1984)

3) As nuances do oportunismo

As redes sociais ferveram com a provocação de Ney e a revolta do integrante da “turminha do lacre”. Textos de opinião defendendo e enxovalhando Ney Matogrosso sem dó surgiram com uma avalanche. Infelizmente, o “embate” entre os defensores e os detratores de um dos maiores artistas da música brasileira deixou uma série de questões bastante caras:

a) A militância LGBT, infelizmente, precisa ser menos radical e sair do estratagema de que “todo bom gay é aquele que levanta bandeira” e não permitir que os haters determinem regras de como todos deveriam agir. Pelo conjunto da obra, Ney Matogrosso está acima de qualquer questão em relação à causa e muita gente ainda não entendeu isso;
b) O episódio serviu como uma luva para ajudar na divulgação do recente álbum do aspirante ao lugar insubstituível de Ney Matogrosso na música brasileira. Oportunismo barato e grotesco: se utilizar do nome de outra pessoa para criar polêmica com a justificativa de que faz muito pela causa LGBT é sinônimo de falta de ética, de canalhice. Comparar a declaração de Ney com uma suposta declaração de Madonna (“Mulher é o caralho!”) é demonstração de maniqueísmo, de falta de instrução.


Ney Matogrosso é o arauto da liberdade (diretamente ou não) de muitos integrantes da população LGBT no Brasil. Fez uso de um discurso libertário, ousado e irreverente para lutar por um pouco mais de igualdade. Dizer se é gay ou não, usar um rímel e delineador em um rosto com um bigode estilo “Freddie Mercury” é fazer muito pouco, quase nada para que um dia gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros adquiram direitos iguais. O intérprete de “Sangue Latino” não está observando atentamente os sinais de nosso tempo do alto de sua cobertura no Leblon: ele está em todos os cantos deste país cantando e dançando, longe do universo de um grupo reduzido de pessoas só sabem “evacuar regras para a vida alheia”.
Por isso e por muito mais que devemos agradecer ao Ney por tanto que ele fez pelos LGBTs, pelos amantes de música popular e pelo Brasil por estar fazendo o que faz com o mesmo primor de sempre. Muito obrigado por tudo, Ney! Eu sei que você não liga para essa gente careta e covarde. A partir de hoje, passarei a fazer o mesmo...
.


LINKS:






27 de julho de 2017

DISCOS DE VINIL # 35

DAVID BOWIE – YOUNG AMERICANS (1975)


Entre 1973 e 1975, David Bowie fez jus ao seu apelido: CAMALEÃO DO ROCK. Em um espaço de um ano e meio, Ziggy Stardust foi morto na frente de milhares de pessoas no Hammersmith Odeon, um álbum de covers (Pin-Ups) foi lançado para que o mundo se refizesse da morte do roqueiro alienígena e Halloween Jack foi a persona que anunciou a era dos Diamond Dogs em meio à catastrófica Hunger City. Em poucas palavras, podemos dizer que o universo de som e imagem de Bowie vivia sob o signo constante da renovação na década de 1970. Quando tínhamos uma imagem icônica do autor de “Changes” em mente, lá vinha ele com uma mudança de visual e concepção musical para confundir as cabeças de todo mundo…




Em meados de 1974, ao estrear a Diamond Dogs Tour, veio a primeira surpresa: enquanto o mundo esperava um artista andrógino e que traria uma persona semelhante à de Ziggy Stardust (visto que nem Aladdin Sane, tampouco Halloween Jack eram tão distintos da figura do alienígena), surge a figura de um astro do Rock com um corte de cabelo levemente mais discreto (as madeixas cor de fogo de Ziggy, mais curtas, passaram a dar espaço a mechas loiras), magérrimo, esguio e elegantemente vestido em um terno azul bebê da Pierre Cardin com direito a suspensórios – Bowie, que na época, devia pesar pouco mais de 40 kg, seguia uma “dieta” a base de leite integral, café, pimentões, pastilhas de menta, cigarros e… cocaína (Basta observar a capa do álbum David Live, lançado pelo astro em 1974, para constatar o estado de degradação física pelo qual ele atravessava naquele tempo)…


A turnê de divulgação de Diamond Dogs foi um marco não apenas para a carreira de David Bowie ou do Rock: ela foi precursora de muitos espetáculos de música que passaram a ser realizados a partir de então. Ao misturar música, teatro e cenários típicos de qualquer show da Broadway, Bowie tornou-se referência para artistas como arautos de outras tribos e gerações como Madonna, Kanye West, Lady Gaga e Morrissey e inspirou colegas de profissão como Elton John, Kiss e até (quem diria?) os Rolling Stones (leia-se: Mick Jagger e a sua eterna obsessão em parecer jovem através de sua música!). No entanto, quando a tour estreou em julho de 1974, o camaleão inglês andava fascinado pela música negra americana como nunca esteve, o que já indicava uma mudança de direção musical para caminhos paralelos aos do Rock durante aqueles shows.


No mês de agosto de 1974, durante o primeiro intervalo das excursões de Diamond Dogs, o autor de “Space Oddity” decidiu ir para o estúdio gravar as novas composições que já tinha dentro da gaveta. O local escolhido para as gravações do álbum que viria a ser conhecido como Young Americans foi o Sigma Sound Studios, no estado da Philadelphia, berço do Soul norte-americano. A produção do disco ficou dividida entre Tony Visconti, Harry Maslin e o próprio Bowie e estabeleceu-se o acordo de que todas as faixas seriam gravadas ao vivo, com todos os músicos compartilhando o mesmo espaço – o próprio Visconti, ao falar sobre este trabalho, relatou que o disco é nada mais, nada menos que “85% Live David Bowie”. Durante as gravações do disco, a turnê Diamond Dogs voltou para a estrada, mas já rebatizada como Philly Dogs, em alusão descarada ao som que se produzia no lendário estúdio da Philadelphia.

Bowie no estúdio junto de Robin Clark, Ava Cherry e o jovem Luther Vandross

O termo que define o som que o camaleão inglês queria produzir naquele momento era “Plastic Soul”, uma espécie de música Soul feita por um branco! Se David Bowie quisesse realmente alcançar tamanho nível de excelência, teria que ir em busca de músicos que estivessem em sintonia com o Soul, o Funk e o Jazz. Para tal, o jovem astro não mediu esforços: verdadeiras autoridades no assunto foram convocadas para as gravações do novo projeto – Andy Newmark (baterista do Sly & The Family Stone), o guitarrista Carlos Alomar (que se tornou parceiro e colaborador fixo por alguns anos), o saxofonista de jazz David Sanborn, o já experiente pianista e tecladista Mike Garson (que já acompanhava Bowie em turnês desde 1973) e um jovem fã de Diana Ross que fez os arranjos vocais e se tornaria famoso como cantor no final daquela mesma década de 1970 – Luther Vandross.


Em 1974/75 era incomum vermos artistas brancos flertarem descaradamente com a música negra a ponto de cantar e tocar como um Bluesman do Delta do Mississipi, por exemplo. Elvis Presley aprendeu tudo com os negros. O canto de Janis Joplin sofreu influências de Bessie Smith e Tina Turner. Os Beatles e os Rolling Stones não teriam feito os sons que mudaram os rumos do planeta se não conhecessem as bandas de Blues dos Estados Unidos. E David Bowie estava mais alucinado do que nunca pelo Soul americano. No entanto, fazer com que sua música cruzasse a fronteira das rádios negras não era tarefa para qualquer um: a partir de Young Americans, Bowie foi um dos primeiros a transcender tais limites com “Fame” (parceria do astro com John Lennon e o guitarrista Carlos Alomar), que foi catapultada para o primeiro lugar das paradas de sucesso americanas, fato inédito para o próprio homem que estava por detrás da máscara de Ziggy Stardust.

Bowie entre Warren Peace e Ava Cherry, sua namorada na época

Seis faixas que constam em Young Americans foram gravadas na Philadelphia entre agosto e novembro de 1974. A faixa-título, que narra a rapsódia de um casal nativo da terra de Uncle Sam, conta com a participação brilhante dos backing vocais de Ava Cherry, Robin Clark, Diane Sumler, Anthony Hilton, Warren Peace e Luther Vandross. Estes cantores emprestaram seu talento para outras faixas do disco como as baladas “Win” e “Can You Hear Me?”, faixas que contam o sax alto de David Sanborn e belíssimos arranjos de cordas. Em faixas mais rápidas do disco como “Somebody Up There Likes Me” e “Fascination” (parceria de Bowie com Vandross), as vozes destes artistas também brilham intensamente. E a interação destes cantores com Bowie é impressionante em “Right”: as frases e palavras que lead singer e backup singers trocam dão a impressão de golpes de boxe na medida em que um completa as falas do outro em um jogo vocal alucinante.


As duas faixas que completam Young Americans surgiram de um encontro importantíssimo entre David Bowie e John Lennon. Os dois se conheceram em meados de 1974, enquanto a Diamond Dogs Tour passava pelos EUA e o “final de semana perdido” do ex-Beatle chegava ao fim. Bowie chegou a apresentar faixas do disco que estava gravando para Lennon, o que rendeu alguns conselhos valiosíssimos para o autor de “Life on Mars?” (o mais importante deles era a dispensa do empresário Tony Defries, que se consumou pouco tempo depois) e rendeu algumas parcerias que acabaram entrando no álbum que Bowie lançara em 1975: a já citada “Fame” – uma mistura de Rock e Funk capitaneada por um riff arrasador de Carlos Alomar – e uma releitura de “Across The Universe” – canção lançada pelos Fab Four em Let It Be (1970). Um detalhe interessante é que esta segunda faixa contou com a participação especial de John, já reintegrado a New York e reconciliado com Yoko.


Bowie ao lado de John e Yoko

Apesar das duas faixas gravadas nos estúdios Electric Ladyland, em NYC, serem particularmente interessantes, não acho que elas necessariamente dialogam com a proposta do disco pelo fato que elas não são um retrato do som da Philadelphia que Bowie tanto quis produzir em seu ambicioso projeto. Ironicamente, “Fame” já prenuncia a proposta a ser desenvolvida por David Bowie em seu próximo projeto pós – Young Americans: o antológico e aclamadíssimo Station to Station, lançado em 23 de janeiro de 1976.



Bowie ao lado de Liz Taylor

As faixas de Young Americans que foram descartadas do álbum vieram a público anos depois. A segunda versão para “John I’m Only Dancing” deixou de lado a sonoridade Rock dos tempos de Ziggy Stardust para abrir as portas para as batidas da Disco Music que surgia no final de 1974 e chegou a ser tocada em algumas apresentações de Philly Dogs. Já as baladas “Who Can I Be Now?” e “It’s Gonna Be Me” – lançadas em uma edição especial de 2007 de Young Americans (que você ouve acima) – são duas interpretações marcantes de David Bowie que atestam a sua evolução enquanto cantor. Já a releitura de “It’s Hard To Be A Saint In Te City” (de Bruce Springsteen) e a inédita “After Today” saíram na caixa Sound + Vision (1990).



Young Americans fez com que David Bowie deixasse de ser o homem das estrelas deliciosamente bizarro para se transformar em um elegante homem do Soul, com ternos impecáveis e com um som indefectível. Ao analisarmos o legado que este álbum ofertou para a música do planeta, quatro décadas após o seu surgimento, concluímos que foi um dos primeiros trabalhos de um artista branco que fazem música negra sem oportunismos, modismos e cacoetes. Um disco que deve ser ouvido bem alto, com muito carinho e com muita atenção…


23 de julho de 2017

TROVA # 129

ANJOS CAÍDOS



"Heaven, is this heaven where we are?
See them walking, if you dare, if you call that walking
Stumble, stagger, fall and drag themselves along the streets of heaven"
(Natalie Merchant & Robert Buck, 1987)


Ser uma estrela do Rock deve ter, sem a menor sombra de dúvida, os seus atrativos: você adquire fama por aquilo que você gosta e acredita, faz amigos e pode fazer música pelos palcos dos quatro cantos do mundo. Uma vida de prazer, luxúria e diversão, supostamente.


No entanto, a realidade descrita acima nunca aconteceu para os astros da música. John Lennon e Kurt Cobain, por exemplo, tiveram uma infância infeliz e uma vida adulta traumática; Elton John e Eric Clapton viveram anos e anos às voltas com as drogas e o alcoolismo; Além das drogas, Neil Young teve dois filhos com paralisia cerebral; Robert Plant e Keith Richards perderam dois filhos com menos de cinco anos enquanto estavam no auge da fama.


Se formos buscar ainda mais exemplos de histórias tristes que compõem o universo dos artistas do Rock ‘n’ Roll, chegaremos à obvia conclusão de que a mídia e a publicidade criaram o mito do self made man realizado através de fama, dinheiro e notas musicais através do combustível sexo, drogas e Rock ’n’ Roll. Quando lemos ou ouvimos notícias de desgraças ocorridas com estes astros, o choque é logo substituído pela reação instantânea: “Como esse cara foi cometer suicídio se ele tinha uma bela família, dinheiro e fama”?...

Chris Cornell (1964-2017)

Confesso que me senti deste jeito ao ouvir da morte de Chris Cornell (ex-vocalista do Soundgarden e Audioslave) em 18 de maio e de Chester Bennington (ex-vocalista do Linkin Park e do Stone Temple Pilots) em 20 de julho de 2017. Ambos se suicidaram por enforcamento e apresentavam quadros bastante agudos de depressão. Os dois tinham um extenso histórico de abuso de drogas e álcool e viviam em estado de angústia plena. Nunca fui fã do Soundgarden, gostava do som do Audioslave, sempre achei Linkin Park um tanto teen demais para os meus ouvidos e morreria sem saber que Chester tinha se aventurado na tarefa de substituir o lendário Scott Weiland como vocalista do Stone Temple Pilots. Porém, fiquei muito triste em saber do fim trágico dos dois artistas.

Chester Bennington (1976-2017)

A depressão é o verdadeiro mal do século XXI. Se não for tratada com terapia e medicamentos controlados, induz o paciente ao suicídio. Não é preciso fazer uma pesquisa extensa para comprovarmos este fato. Por outro lado, as relações econômicas e profissionais que aí estão nos desviam de uma discussão tão fundamental para a compreensão de onde e como devemos enfrentar os desafios do terceiro milênio: o sistema vende figuras de homens sadios, perfeitos e felizes para que possamos nos espelhar nesses arquétipos e, como consequência, elevar o nível de consumo e de dividendos para os artífices destas “imagens perfeitas”.


Suicídio é coisa muito séria: é o último recurso de quem não tem absolutamente mais nada a perder para poder cessar com a amargura e o sofrimento que castigam o corpo e adoecem a alma. O grande problema de pessoas que invertem as leis naturais ou do destino e optam por dar um fim às suas próprias vidas fazem com que os membros de suas famílias morram um pouco junto do ente que se suicidou. Isto é o mais dolorido: morrer junto de quem nós mais amamos...



Penso nas famílias de Chris Cornell e Chester Bennington e imagino a dificuldade de suas esposas e filhos em poder aceitar os fatos de que seus maridos e pais não existem mais por uma arapuca montada pela depressão. O lendário ex-vocalista do Soundgarden escolheu a última canção que cantou em cima de um palco – um trecho de “In My Time of Dying”, do Led Zeppelin. Chester escolheu a data de sua partida – o dia do aniversário de seu amigo Chris Cornell. Macabras coincidências? Sim, infelizmente! Mas que teriam sido evitadas se tivéssemos descoberto os pedidos de ajuda escondidos em cada gesto, em cada ato público de tristeza.



Por isso, devemos lutar bravamente contra este mal silencioso e perverso para que não encontremos outros anjos derrubados pela depressão e pelo suicídio. Por eles, por seus entes, por nós...


20 de julho de 2017

DISCOS DE VINIL # 34

MARIA BETHÂNIA – MARIA BETHÂNIA (1965)


Em 1965, o Brasil estava às voltas com o início de um regime militar que duraria mais 20 anos. Enquanto isso, vários artistas da música brasileira buscavam protestar contra o autoritarismo do sistema político e dos desmandos das elites com uma produção artística de fortíssimo cunho social. Uma das vozes que mais se destacaram naquele período no que diz respeito à chamada "canção de protesto" foi a de Nara Leão, que protagonizou o musical Opinião, ao lado de João do Vale e Zé Kéti. Em pouco tempo, o espetáculo dirigido por Augusto Boal se tornou em um dos maiores símbolos da resistência artística contra a ditadura.

Nara Leão entre João do Vale e Zé Kéti

Entretanto, Nara Leão não conseguiria encabeçar o elenco de Opinião até o final da temporada (abril de 1965) devido a um intenso desgaste em suas cordas vocais, o que lhe obrigava repouso absoluto. Em suas andanças pelo Brasil em busca de novos cantores e compositores, Nara descobriu um grupo de artistas formidáveis que viviam em Salvador, um dos maiores polos culturais de nosso país na época. São eles: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Maria da Graça (mais tarde conhecida entre nós como Gal Costa) e a jovem Maria Bethânia, irmã mais nova de Caetano. Foi esta jovem nordestina de Santo Amaro da Purificação, cidade localizada no recôncavo baiano, que foi escolhida pela intérprete de "Diz Que Fui Por Aí" para o seu papel no musical de Augusto Boal.

Maria Bethânia entrou para o elenco do musical no início de 1965

Ao chegar no Rio de Janeiro para cumprir a etapa final da temporada de Opinião, Maria Bethânia chocou uma parcela considerável de espectadores sua árida persona contrastava com a doçura angelical de Nara Leão: magérrima, nordestina, cabelos crespos presos em um coque, nariz adunco, voz grau é infinitamente potente, a artista conquistou o público através de sua extraordinária dramaticidade. O ponto alto das apresentações de Bethânia era a sua interpretação agressiva de "Carcará" (João do Vale e José Cândido): ao final do número, ela recitava números de um relatório da SUDENE sobre o êxodo de nordestinos para regiões mais desenvolvidas do país (10% do Ceará, 13% do Piauí, 15% da Bahia, 17% de Alagoas) para encerrar com o apoteótico "pega, mata e come".




A partir de então, "Carcará" se associou a sua intérprete de tal maneira ao ponto de Maria Bethânia se recusar a cantar a canção durante um bom tempo. Afinal, a jovem artista não desejava ser apenas uma musa das esquerdas festivas cujo repertório era composto exclusivamente de canções de protesto. Dentro do universo de Bethânia, também havia espaço para os sambas de roda do recôncavo baiano, para os sambas de morro, para as marchas-rancho, para o cancioneiro refinado de Caymmi e Noel, para o romantismo do samba-canção, além dos trabalhos inéditos dos jovens compositores de sua geração Caetano Veloso, especialmente.


O primeiro compacto de Bethânia apresentava "De Manhã", primeira canção de seu irmão Caetano Veloso gravada em disco.

O álbum de estreia de Maria Bethânia foi lançado pela RCA Victor em junho de 1965 e é um retrato fiel não apenas do talento de uma jovem artista (às vésperas de completar 19 anos de idade), como é uma amostra e tanto de seu extenso universo musical - além de "Carcará", sambas de Batatinha e Noel Rosa figuram lado a lado de canções de João do Vale, Braguinha, Monsueto e de Caetano Veloso, lançado ao mundo artístico (junto de Gal Costa –  o dueto das duas em "Sol Negro" é um dos melhores momentos deste disco) por Bethânia.

Bethânia & Gal


À irmã de Caetano Veloso faltava naquela época muita técnica e suavidade, porém sobrava bravura, ousadia e emoção  três elementos mais do que necessários para atravessar tempos tão complicados como os de 1965 no Brasil...