1 de maio de 2017

TROVA # 122

A VOZ ONIPRESENTE
(OU minhas experiências com Belchior)


Em memória de Belchior (1946-2017)


E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
(Belchior, 1976)


         Foi em um domingo, véspera de feriado, após o almoço de família. Tomei conhecimento de que Belchior tinha desaparecido de vez de nossas vidas. Estava em sua casa em uma bela e pacata cidade no interior do Rio Grande do Sul. Seu coração velho de guerra e combatente por mais de 70 anos de sonho de sangue e de América do Sul parou de bater enquanto o poeta da canção ouvia música clássica. De nada adiantarão as campanhas na Internet ou o amor verdadeiro dos fãs para que ele volte. De nada adiantará as reportagens sensacionalistas dos programas de TV ou a proliferação de comunidades nas redes sociais. E muito menos adiantarão as pichações clamando a sua volta legítima para o convívio dos brasileiros e a saída de um presidente ilegítimo do poder. Aquele rapaz latino-americano com pouco dinheiro no bolso não irá mais voltar.



         Antes de desaparecer da vida artística e dos olhos do grande público, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi um dos nomes mais importantes da música brasileira da década de 1970 para cá. Foi gravado por nomes da mais alta estirpe da MPB – Elis Regina, Roberto Carlos, Vanusa, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Zélia Duncan foram alguns dos artistas que gravaram suas canções. Álbuns como Anunciação (1976) e Coração Selvagem (1977) se tornaram não apenas verdadeiros clássicos, como também eram itens básicos de qualquer boa discografia de MPB.




         Belchior é uma falha gravíssima no meu departamento de ouvinte e pesquisador de música brasileira. Nunca fui um fã ávido ou ouvi seus trabalhos com atenção por pura falta de vergonha na cara ou da oportunidade de alguém que me dissesse: “Escute este disco aqui, pois ele vai fazer a sua cabeça”. Ele sempre esteve onipresente nas coisas que eu aprendi através de meus amados discos – o Trovador do Ceará sempre esteve nos meus ouvidos através das interpretações de Ney e de Roberto, de Elba, Vanusa ou Zélia, mas principalmente nas gravações eternas de Elis, a Pimentinha mais ousada, intensa e desaforada que o universo já teve notícia.





         Ao descobrir o álbum Falso Brilhante cintilando de maneira triunfal na discoteca de minha avó, D. Magaly, fiquei tão encantado com a voz de Elis Regina e a poética rascante de Belchior que o tal CD passou um bom tempo tocando só para mim lá em casa. Tempos depois, comprei uma cópia remasterizada do álbum de Elis e devolvi o “emprestado” para minha avó; afinal, a boa arte não deve ser um privilégio exclusivo dos sortudos: ela deve ser compartilhada, ouvida e amplificada no mais alto volume possível para que muitos conheçam o que os brasileiros sabem fazer melhor: música!




         O Trovador do Ceará não foi apenas aclamado como um grande poeta da canção brasileira: depois de passar pelas faculdades de medicina e filosofia, ele viveu como um Rimbaud. Veio do Ceará para São Paulo em busca de melhores oportunidades no universo da música e sofreu intensamente com as exigências mercantilistas da fama e da celebridade em um contexto capitalista. Escreveu canções sobre a ditatura militar que ele tanto sentiu na pele, outras de fortíssima crítica social, belas declarações de amor e misturou Edgar Allan Poe e Luiz Gonzaga com Beatles e Bob Dylan. Provocou um supostamente antiquado Caetano Veloso em meados dos anos 1970 em “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” e foi convocado para o embate pelo sempre debochado Raul Seixas em “Eu Também Vou Reclamar”. Largou a fama e uma carreira de sucesso na década de 2000, vagou entre o Brasil e Uruguai, acumulou dívidas babilônicas (afinal, nunca ligava para o vil metal que ele tanto criticava) e viveu em um anonimato praticamente absoluto até o fim de seus dias.




         A saída de cena de Belchior trouxe enorme comoção de artistas, fãs e amantes de música brasileira. Além disto, surgiram os relatos de que o artista inquieto e bastante criativo durante seus últimos tempos – trabalhava em uma tradução de A Divina Comédia, de Dante Alighieri e compunha novas canções sem parar. Motivado pela revolta de um Brasil assolado pelas consequências de um golpe de estado parlamentar, o Trovador do Ceará planejava voltar aos palcos e fazer de sua arte um instrumento para combater as injustiças de nossos homens.



         Infelizmente, Belchior não conseguiu realizar o retorno triunfal que tanto planejava. Como ele teve o poder de influenciar as gerações posteriores a dele, deixou uma legião de admiradores que jamais permitirá que canções como “Medo de Avião”, “Paralelas”, “Como Nossos Pais”, “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, “A Palo Seco” e “Velha Roupa Colorida” caiam no esquecimento. Algo bastante justo para artistas de sua grandeza. Quem sabe assim aquela voz grave e roufenha se torna mais presente no cotidiano deste que vos escreve e aquece este coração velho de guerra?


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