27 de abril de 2017

DISCOS DE VINIL # 29

DAVID BOWIE – DIAMOND DOGS (1974)



 Os jovens que acreditam que Lady Gaga inventou as regras para fazer um disco megalomaníaco certamente não ouviram este disco de David Bowie com a devida atenção! Se é que ouviram ou sabem da importância de Bowie para a música do planeta… Diamond Dogs, lançado pelo astro inglês em 24 de abril de 1974, não é apenas uma das maiores pirações musicais de Bowie, mas também se trata de um dos discos mais comentados de toda a história da música!


Antes de apontar os mitos e os fatos em torno deste clássico que completa 40 anos neste mês de abril, é preciso pensar o seguinte: qual era a pele que revestia o camaleão em 1974?


Bowie tinha “assassinado” Ziggy Stardust em cima do palco do Hammersmith Odeon, em julho de 1973. Gravou um delicioso disco de covers (Pin-Ups) para tentar se livrar do alienígena-personagem que encarnara com tamanha perfeição. Hunky Dory e The Man who Sold The World já tinham se tornado figuras de um passado distante. Dentro de dois anos criaria e encarnaria o retorno de “The Thin White Duke” e em menos de um ano deixaria as vestimentas de roqueiro para trás para viver um elegante Soulman que faria o som e a imagem do Plastic Soul de Young Americans (1975).



No entanto, qual foi a personagem escolhida por Bowie entre o período de 1973 e 1974? “Halloween Jack”, um cara bem legal que habita a apocalíptica e decadente Hunger City, tema de Diamond Dogs.


Na verdade, Jack não era nada mais, nada menos do que um espectro de Ziggy: o corte de cabelo (com direito ao mullet irreconhecível), a maquiagem, o olhar desafiador eram exatamente os mesmos que Bowie lançava mão dois anos antes. Qual foi a jogada de mestre de Bowie para que o assassinato de Ziggy Stardust realmente fizesse sentido: um álbum conceitual!


A ideia inicial de David Bowie era fazer uma espécie de Opera Rock de 1984, obra-prima do escritor George Orwell. No entanto, a esposa de Orwell negou os direitos ao Camaleão inglês, que decidiu fazer uma alegoria das ideias do escritor em seu disco. Além disto, Bowie dispensou todos os seus colegas do “The Spiders from Mars” antes da gravação de Diamond Dogs.



Os fãs e os críticos sentiram grande falta do genial Mick Ronson, que tinha um estilo único ao dedilhar as cordas de uma guitarra, além de ser um instrumentista de mão cheia. A sonoridade do álbum ficou bastante crua no que diz respeito aos acordes de guitarra, apesar de Bowie se revezar entre guitarras, saxofones e teclados moog e mellotron e dos arranjos de cordas de Tony Visconti para a faixa “1984”. As influências do som dos Rolling Stones, para a felicidade dos amantes do bom Rock, ainda estavam lá (os riffs de guitarra da faixa-título e de “Rebel Rebel” refletem este fato com perfeição). No lugar das visões oníricas de “Ziggy Stardust” e “Aladdin Sane”, visões niilistas do caos urbano e das paranóias humanas (insufladas pelos abusos de cocaína cometidos por David Bowie himself)…


Para dar a imagem definitiva do habitante mais ilustre da Hunger City que se esvai em genocídio, enquanto o Big Brother observa todos os acontecimentos com o seu olhar atento, o artista plástico Guy Peellaert pintou uma criatura híbrida para a imagem da capa do disco: um cão com a genitália à mostra que tinha o rosto de Halloween Jack! O choque, obviamente, não se deu com o fato do cachorro estampar o rosto de David Bowie, mas aconteceu pelo fato de que havia um órgão sexual visível para quem visse a capa de Diamond Dogs. A capa, obviamente, foi censurada. As fotos da sessão que mostra Bowie segurando um cão enfurecido e prestes a atacar o primeiro indivíduo que estivesse ao alcance de suas mandíbulas nem sequer foram utilizadas para o mesmo fim do trabalho de Peelaert. Enquanto isso, cópias da edição original do disco são vendidas por quantias altíssimas no mercado negro.




A turnê resultante do disco teve início em julho de 1974 e rendeu o primeiro álbum ao vivo de Bowie, David Live (1974). A Hunger City foi recriada nos palcos com direito a um cenário baseado em Metropolis, do diretor alemão Fritz Lang. Foi, sem dúvida, a turnê mais ambiciosa de David Bowie até o momento. Músicos de primeira qualidade como o maestro e pianista Michael Kamen (e diretor musical do show), o tecladista Mike Garson, o guitarrista Earl Slick, o baixista Herbie Flowers, o baterista Tony Newman e o saxofonista David Sanborn, dentre outros, foram convocados para a Diamond Dogs Tour.


Os shows da turnê foram o marco da transição do arauto do Glam Rock para o Soulman esquelético e branco que sacudiu o planeta com uma música negra de altíssima qualidade. A foto que ilustra a capa traz um Bowie magérrimo, vestido com um belo terno azul bebê e que não lembra em nada a imagem de Ziggy Stardust. O alienígena, enfim, estava morto!






Menos de um ano depois de Diamond Dogs, a música de David Bowie tinha sofrido uma mutação tão radical quanto as trocas de pele de seu criador. A partir deste disco conceitual, o astro inglês estava pronto para viver intensamente uma mudança radical na música que estava fazendo a partir de 1974-1975. O resultado disto? O antológico Young Americans, que daria um novo direcionamento para a música de um dos artistas mais geniais de todos os tempos...




25 de abril de 2017

TROVA # 121

A MÚSICA QUE NOS SALVA


“Desobediência é a solução
Contra a tirania de sua tradição
Sua chibata bate mas eu tô de pé”
(Eduardo Brechó & Jairo Pereira, 2017)


            Os meus 20 e poucos anos foram bastante intensos. E me deram ocasiões que me ensinaram bastante. Uma das minhas favoritas aconteceu após um show de Rita Lee no Canecão, quando esperava a musa para poder tirar uma foto com ela e ficar alguns segundos perto de uma das artistas que mais influentes do Brasil. Rita, esfuziante e sorridente, conversava com amigos e fãs e logo nos atendeu, para emoção de todos os que estavam presentes. Meu encantamento foi ainda maior quando eu reparei que Ritz estava vestida com uma camiseta escrita: “music saves” [a música nos salva].


            Quando saí do Canecão, fiz da música meu estandarte e meu cavalo de batalha intelectual: ela me acompanhou na pós-graduação, na minha carreira enquanto professor, nas minhas pesquisas, no meu blog, na minha vida. Ela me ajuda a achar respostas para vários dos meus conflitos, me conforta, me dá alento. Especialmente em tempos nos quais a democracia no Brasil e no mundo é desafiada por medidas impopulares, pelos ataques aos direitos da sociedade e pela ascensão de lideranças profundamente conservadoras.


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            A popularidade de 5% do Presidente ilegítimo Michel Temer é o retrato perfeito da convulsão social que o Brasil está prestes a se afundar se os direitos sociais continuarem a serem retirados com a desculpa de que há um ajuste fiscal a ser feito. Não basta limitar os gastos públicos em saúde e educação por vinte anos, o empresariado e a elite – vingativa, por odiarem um governo que, apesar dos erros políticos crassos, fez muito pelos pobres e pela classe média em 13 anos de governo – desejam sempre mais: já regulamentaram a terceirização para todos as atividades profissionais e querem aprovar uma reforma trabalhista e previdenciária sem mais nem menos. Silvio Santos, procurado por Temer, aproveitou para mandar sua equipe realizar comerciais de 30 segundos defendendo as reformas propostas pelo governo. Os manifestantes sequer possuem o direito de protestar contra seus algozes dentro do Congresso Nacional: são recebidos a pontapés, com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo pelas autoridades sem direito a qualquer espécie de argumento...
Na lógica dos golpistas, o pobre sempre é culpado, o menos favorecido é quem deve pagar. A lógica dos ilegítimos ignora os bilhões de reais que as grandes corporações devem para a Previdência Social, por exemplo. Enquanto o GAFE enlouquece com a manipulação de cada delação premiada da Odebrecht para tapear o povo brasileiro, a razão para as “medidas impopulares” fica cada vez mais clara: o “ajuste” serve para proteger os empresários devedores de fortunas para o Estado, que perdoa suas dívidas para poder explorar a classe trabalhadora ainda mais... Enquanto isso, e tome música para preencher os espaços da casa, já que o noticiário é a ficção mais inútil disponível no momento.

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Enquanto isso, no Tucanistão (mais conhecida como São Paulo ou Sampa, para os mais íntimos): os cidadãos veem um Prefeito que transformou a sua gestão (não se enganem, beautiful people: a especialidade dele é marketing, não a gestão em si!) em um enorme reality show. Os cidadãos paulistanos tomam conhecimento dos feitos pelo exercício do mandato através da promoção rasteira realizada pelas redes sociais de um indivíduo que se diz apolítico, mas que toma decisões extremamente políticas: defende o empresariado do qual ele faz parte, prejudica os menos favorecidos, foi conivente com as intervenções de um dos vereadores da câmara que visitou duas escolas com o intuito principal de intimidar os professores da Secretaria Municipal da Educação, aumentou os valores das passagens de ônibus mesmo com a qualidade terrível dos transportes da cidade, permitiu o aumento de velocidade das Marginais Tietê e Pinheiros – causando o aumento vertiginoso de acidentes e mortes por acidentes automobilísticos –, isso sem mencionar as catástrofes permanentes na área cultural: extinção do Clube do Choro e dos turnos de 24h da Biblioteca Mário de Andrade e a destruição dos grafites da avenida 23 de maio. Pergunto: estas medidas foram benéficas para quem? Enquanto a resposta não chega, a elite paulistana e os pobres de direita veem na figura do “PrefeiTOP” o seu expoente mais perfeito...


Já o ilustre Governador do Estado de São Paulo, eleito no auge da crise hídrica que quase matou os paulistas de sede e acusado por corrupção nas “míticas” delações da Odebrecht, é responsável por uma das linhas auxiliares do GAFE:  a TV Cultura, um dos canais mais respeitados do mundo por exibir uma programação estupenda, apesar de exibir programas de entrevistas bastante tendenciosos e noticiários com comentadores raivosos e simpáticos de ideologias fascistas. Uma das polêmicas mais chocantes surgidas nos últimos dias foi à censura sofrida pela banda Aláfia: ao se apresentarem no programa Cultura Livre, tocaram a canção “Liga nas de Cem”, na qual faz uma crônica sensacional do ódio das elites paulistanas pelos mais pobres e dá nome aos bois ao citar Alckmin e Dória no final da letra. A apresentadora Roberta Martinelli e os músicos fizeram barulho diante do corte hediondo. O lado bom da polêmica foi fazer com que a Aláfia se tornasse mais conhecida diante deste caos polarizado no qual vivemos. E a música continua nos salvando da mediocridade do Tucanistão...



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            E o Dia de São Jorge de 2017 ficou mais triste com a partida de uma das vozes mais importantes da Jovem Guarda: Jerry Adriani partiu para outro plano aos 70 anos de idade, vítima de um câncer. Mesmo sofrendo as dores da doença, Jerry se apresentou ao vivo cantando para as multidões do Brasil até um mês antes de morrer. A música lhe salvou da dor e lhe trouxe uma espécie de alento para um sofrimento sem fim. Apesar de não ser fã, fiquei comovido com sua história e com a sua força diante dos fatos – não desistiu de sua carreira em um momento sequer, seguiu em frente enquanto pôde.



            Que os brasileiros encontrem inspiração no exemplo de Jerry Adriani para seguir resistindo por seus direitos e consiga parar o país na Greve Geral programada para o dia 28 de abril de 2017. Afinal, vejo que a luta contra aqueles que não nos representam no Congresso Nacional e à elite ignorante e egoísta parece não ter fim...


20 de abril de 2017

DISCOS DE VINIL # 28

KID ABELHA – MEU MUNDO GIRA EM TORNO DE VOCÊ (1996)



         O Kid Abelha foi uma das atrações principais do chamado “Rock Brasileiro” na década de 1980: a bela vocalista Paula Toller ao lado do saxofonista George Israel, do guitarrista Bruno Fortunato e de Leoni (baixista, letrista e vocalista, que participou dos primeiros discos da banda) foram alçados ao estrelato, com canções estouradas nas rádios, participações em programas de TV e videoclipes no Fantástico.


         Na década seguinte, já sem Leoni, o Kid Abelha perdeu em termos de lirismo e contestação, mas manteve a qualidade musical de seus discos. Paula Toller foi alçada à condição de sex symbol e passou a cantar melhor, fazendo uso de seu belo timbre não apenas para interpretar as canções do Kid, como também clássicos de Tim Maia e Roberto Carlos. Um dos melhores momentos da carreira da banda é Meu Mundo Gira em Torno de Você, décimo álbum da banda, lançado em 1996.
         Meu Mundo... é um dos discos mais vendidos da discografia do Kid Abelha – cerca de meio milhão de cópias vendidas em um pouco mais de 20 anos. O motivo para o sucesso se deve, em primeiro lugar, pela guinada de Paula, George e Bruno Fortunato por uma sonoridade mais voltada para o Pop, tendência adotada desde o início da década de 1990 com os discos Iê Iê Iê (1992) e Meio Desligado (1994). Além disto, a escolha do primeiro single foi a regravação de “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda”, de Hyldon, um dos maiores expoentes da música soul produzida no Brasil.


         O álbum é composto de canções de Paula Toller e George Israel, porém há algumas parcerias bissextas. A primeira delas, “Como É Que Eu Vou Embora” (primeira faixa do disco), é uma colaboração da cantora Cris Braun com George. Já a faixa-título é uma parceria de Paula, George e Jorge Mautner, além de duas parcerias com Lui Farias – “Combinação” e “La Nouveauté” –, cineasta e marido de Paula. Por fim, “A Moto” é um trabalho da vocalista do grupo ao lado de Herbert Vianna, guitarrista e líder do grupo Os Paralamas do Sucesso.

Paula Toller & Herbert Vianna


         “Te Amo Pra Sempre” chegou a ganhar um videoclipe que tocou bastante no verão de 1997 na extinta e saudosa MTV Brasil, com Paula Toller dançando na praia de biquíni tal qual uma menininha de dezoito anos. Uma canção jovial, com um refrão marcante como chiclete, com a duração perfeita para tocar no rádio e grudar nos seus ouvidos para sempre. Dentre os lados B de Meu Mundo... está “Vou Mergulhar”, décima faixa do disco, que faz alusão direta a “Além do Horizonte”, lendária parceria de Roberto e Erasmo Carlos.


         A crítica especializada da época detestou o disco, com versos completamente despretensiosos como os de “O Animal”, que encerrava o disco: “Me mimar demais / Foi o seu mal / A partir de agora / Seja um animal”. Os fãs ignoraram a caretice dos críticos e fizeram com que Meu Mundo... recebesse reedições de ouro e de platina, com remixes dos sucessos do disco.

         Se eu fosse escolher um disco essencial do Kid Abelha, não pensaria duas vezes e ficaria com Meu Mundo Gira em Torno de Você. Paula Toller, George Israel e Bruno Fortunato resumem em um único disco toda a essência de seu trabalho...


18 de abril de 2017

TROVA # 120

ANDANÇAS MUSICAIS


Para Caroline Rohan, com amor...

         Lojas de discos sempre foram o meu local preferido no mundo. Se elas são grandes e possuem livros à mancheia, tenho vontade de entrar nelas e não voltar para a vida social nunca mais, afinal eu sempre teria algo de novo para ouvir ou alguma coisa de interessante para ler.
       O século XXI e a Era da Mediocridade infelizmente não conseguem conviver com as lojas de discos. Música se tornou um artigo supérfluo, que basicamente se ouve no rádio do carro ou nos fones de ouvido de celular. Visito as casas das pessoas e não vejo mais as coleções de LPs e CDs impondo suas presenças nas salas de estar, para minha tristeza e decepção. As mídias musicais continuam cada vez mais caras e são embaladas em um digipack vagabundo. As poucas lojas de discos que sobraram se tornaram espaços frequentados por colecionadores e amantes ferrenhos da arte musical como eu, que se satisfazem com tais fetiches encontrados em utopias sonoras.

A lendária Modern Sound, em Copacabana

   As lojas de discos não sobreviveram à chegada do MP3 e ao streaming e muitas tiveram que fechar suas portas. Quase morri de tristeza quando a Modern Sound, a lendária loja da Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, fechou. Toda vez que eu ia ao Ilha Plaza Shopping, localizado na Ilha do Governador, no subúrbio carioca onde nasci e me criei, e constatava que uma loja de CDs tinha encerrado suas atividades, sentia pontadas no coração. Não deixei de bradar o meu ódio mortal quando a Neto Discos, localizada no coração da Rua Augusta e onde comprei alguns dos itens mais adorados da minha coleção de discos, deixou de existir para virar um restaurante mexicano.

Um vendedor da antiga Neto Discos, na Rua Augusta


     Ainda bem que existem alguns recantos nos quais ainda podemos exercitar nossa paixão por versos e sons em LPs e CDs: a Augusta velha de guerra, a Galeria do Rock e o sebo Berinjela são pilares de resistência que ainda me fazem feliz tal qual os protagonistas dos filmes Durval Discos (Anna Muylaert) ou de Aquarius (Kleber Mendonça Filho), ao ouvirem um clássico da música (inter)nacional soando truinfal por uma sala.

Marisa Orth & Ary França em Durval Discos (2002), de Anna Muylaert



Sonia Braga em Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho

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   Eu poderia encher várias linhas com anedotas cômicas, bizarras, vergonhosas e tristes sobre minhas experiências dentro de lojas de discos. Todavia, gostaria de resgatar uma experiência mais recente e que foi bastante especial para mim...

*
 
Carolzinha & Eu - uma amizade de quase vinte anos
     
      Minhas temporadas de férias no Rio de Janeiro sempre são bastante intensas e animadas. Especialmente porque não consigo mais passar mais de sete dias na Cidade Maravilhosa. Por isso, meus encontros com minha amiga Caroline Rohan, que me ama e me aguenta por quase duas décadas de amizade, sempre são hilários e repletos de boas memórias. Nosso último encontro de 2016 foi na nossa Copacabana velha de guerra e de tantas anedotas para contar.


     Carolzinha me levou a um paraíso que todo amante da boa música gostaria de ir na época de Natal: em uma loja de discos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Posto 5. Depois de ter jurado que não gastaria nem um centavo com novas aquisições, entrei em contradição ao ver a vitrine com algo extraordinário: uma cópia do álbum de 1973 de Frank Sinatra em LP muito bem-conservada e por um preço baratinho. Ao ver a capa de Ol’ Blue Eyes is Back com o sorriso reluzente e triunfante da Voz, ignorei por alguns minutos de que ainda nem tenho um tocador de discos de vinil em casa. Fiquei namorando outros LPs e alguns CDs, mas minha paixão por Sinatra falou mais alto do que a razão- além da vitrola que ainda não tenho, estou em uma quebra de braços com a falta de espaço para meus livros e meus discos.


   Depois da farra e de algumas conversas e com o meu Sinatra debaixo dos meus braços, continuamos nossas andanças por Copa, fomos visitar a recém-inaugurada estátua de nosso amado mestre Nelson Rodrigues e paramos em um bar para tomar nossas bebidinhas que os canários não bebem. Antes de ir embora da Zona Sul, pedi a Carol que me levasse para o Beco das Garrafas, um beco na Rua Duvivier onde Elis Regina começou a cantar e fez história. Fiquei encantado ao saber que a tal esquina hoje abriga uma loja de discos com uma seção fabulosa de livros de música.



        O melhor da visita à Bossa Nova & Companhia foi poder conversar com os vendedores da loja, entusiasmados em falar comigo porque Carolzinha fez questão de dizer que o amigo dela era escritor e possui um Blog sobre música. Conversamos sobre as discografias de Ney Matogrosso e Maria Bethânia, contei algumas histórias e ouvi outras deliciosas. Fiquei com vontade não apenas de ter lançado meu livro por lá, como quis ficar por lá para sempre, pois a atmosfera do local é composta de versos e sons da melhor qualidade.



         Saí de Copacabana com a crença de que a vida ainda pode ser leve e doce. Tranquila como uma canção de amor entoada por Frank Sinatra, poética como um samba gravado por Maria Bethânia e intensa como uma interpretação antológica de Elis Regina. Graças a uma amiga adorada e que sempre está disposta a me fazer feliz – naquele dia, eu ganhei de presente um chaveiro de lembrança com os nomes de Tom Jobim e de Vinícius de Moraes, dois dos arautos da música brasileira moderna. Graças a Caroline Rohan, meu amor pela arte musical, livros e lojas de discos anda comigo aonde quer que eu vou: afinal, sempre é bom estar em boa companhia...



16 de abril de 2017

TROVA # 119

O SILÊNCIO DOS IMBECIS



O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano...

É debaixo dos pano
Que a gente não tem medo
Pode guardar segredo
De tudo que se vê
É debaixo dos pano
Que a gente fala do fulano
E diz o que convém...

É debaixo dos pano
Que eu me afogo
Que eu me dano
Sem perder o bem...

O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano...

É debaixo dos pano
Que a gente esconde tudo
E não se fica mudo
E tudo quer fazer
É debaixo dos pano
Que a gente comete um engano
Sem ninguém saber...

É debaixo dos pano
Que a gente
Entra pelo cano
Sem ninguém ver...

O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano...

É debaixo dos pano
Que a gente esconde tudo
E não se fica mudo
E tudo quer fazer
É debaixo dos pano
Que a gente comete um engano
Sem ninguém saber...

É debaixo dos pano
Que a gente
Entra pelo cano
Sem ninguém ver...
(Cecéu na voz de Ney Matogrosso, 1982)


         Feriado de Páscoa. Segundo os católicos, é o tempo da morte e do renascimento de Jesus Cristo. Um homem bondoso que foi morto como bandido pelos poderosos de sua época e ressuscitou dias depois para salvar a humanidade de todos os seus pecados. Hoje em dia, os cidadãos comuns aproveitam os dias de folga para viajar, esquecer do trabalho, se embrenhar em filas intermináveis para comprar quilos e quilos de bacalhau e ovos de chocolate cada vez mais caros e fazer jus às convenções típicas da classe média.
         Não comprei um ovo de páscoa sequer este ano. Algo bastante chato para um chocólatra assumido e compulsivo que sempre fui. Em tempos de crise econômica, social e política no Brasil, investir 40 reais em um único presente é uma indecência para um trabalhador assalariado como eu. No entanto, muitos brasileiros faziam volume nas filas intermináveis dos supermercados e dos shopping centers, fazendo a alegria das indústrias e da iniciativa privada até o final do sábado de aleluia.


         Além disto, a Páscoa de 2017 tem o sabor amargo do noticiário, pipocando notícias sobre a corrupção da classe política e das empreiteiras que financiavam as campanhas eleitorais através do “Caixa 2”, isto é, dinheiro oficialmente não declarado para as autoridades. O mais revoltante não é o fato de que empresas grandes como a Odebrecht sempre financiou partidos de esquerda e de direita como o PT, o PMDB e o PSDB, e sim a desfaçatez do GAFE, que sempre soube das negociatas feitas por debaixo dos panos da política brasileira e age como se a relação das grandes corporações com os governos fosse a maior novidade desde a invenção da pólvora ou da bomba atômica. Sem mencionar o tratamento distinto para líderes políticos: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi “favorecido” por vantagens indevidas enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria recebido propina das mãos de empresários.
    A classe política brasileira enriqueceu e se manteve no poder graças a orçamentos superfaturados realizados mediante pagamentos gordos de propina. Dinheiro público que poderia ser investido para o bem-estar das instituições públicas, já que são quantias geradas pelos impostos altíssimos que pagamos. Infelizmente os candidatos que se elegem e vencem os pleitos eleitorais não o fazem por desejarem o melhor para o seu povo, mas sim porque possuem interesses exclusivos no fortalecimento de suas contas bancárias.


       Enquanto o GAFE faz barulho e estardalhaço diante do espetáculo das delações premiadas (uma maneira bastante cômoda para estes figurões graúdos se safarem de penas mais agressivas, não?), boa parte da sociedade brasileira que saiu de panelas nas mãos se calou. Não se ouve mais o som incômodo de uma panela vazia nos bairros de classe média ou de classe média alta. O que aconteceu? O poder de compra dessas pessoas aumentou? A perplexidade tomou conta destes lares? Ou será que estas pessoas estão em estado de choque diante desta pantomina ridícula?
         Enquanto isto, o golpista Michel Temer tenta dar prosseguimento a um governo ilegítimo e com o seu pacote de medidas para “resolver” a crise econômica que não foi aprovado por, pelo menos, 54 milhões de brasileiros. Segundo os delatores da Odebrecht, era o próprio Vice-Presidente do governo Dilma Rousseff que comandava os esquemas de propina a serem distribuídos para o PMDB. Nove de seus ministros estão citados nos depoimentos com suspeita de corrupção. Se citarmos os integrantes das comissões especiais da Câmara dos Deputados que votaram a favor do impeachment de Dilma, 35 de 38 deputados estão citados nas delações premiadas. Ouço panelas para este fato? Não...
         Enquanto os funcionários do Palácio do Planalto ficam de olho no que postamos nas redes sócias a respeito dos fatos e acontecimentos sobre a política brasileira, a mudez deixa de ser um privilégio dos inocentes que se vestiram de verde e amarelo com panelas de teflon nas mãos. Passamos a observar o silêncio dos imbecis em meio a este espetáculo dantesco no qual se tornou a política nacional. O radicalismo dos discursos de extrema-direita se agiganta enquanto muitos militantes de esquerda assistem, também em pleno choque, ao desmonte da classe que domina o Poder Executivo.


Lembro-me de alguns versos de uma das pouquíssimas canções da Legião Urbana que me agradam. Em “O Teatro dos Vampiros”, Renato Russo nos diz abertamente que “os assassinos estão livres / nós não estamos”. Os vampiros estão a sugar nossas forças de trabalho, nossas demonstrações de honestidade, nossas crenças em dias melhores. Renato estava certo, infelizmente: ao pensar sobre os horrores, eu tenho a impressão de que envelheço dez semanas a cada hora que passo.


Enquanto os ovos de páscoa farão a festa de milhares de famílias brasileiras para celebrar a ressurreição do homem que foi crucificado (como um marginal, meus caros: não se esqueçam!), o silêncio dos imbecis diante dos escândalos de corrupção se fará ainda mais presente. E a lógica do “bandido bom é bandido morto” diante de qualquer morto de fome que faz de sua navalha o seu cartão de crédito para algo desejado será lembrada como uma maneira de se fazer justiça. Afinal, quem precisa de um bandido de estimação qualquer se criamos a pão de ló 513 deputados, 81 senadores e uma família de parasitas no Palácio do Jaburu, em Brasília?



         Minha consciência diante de todos os fatos e acontecimentos mostrados aqui de maneira não muito polida e elegante fica tranquila, diante da seguinte constatação: não traí minha pátria, não a crucifiquei. Sempre deu o meu melhor pelo meu país e continuarei a fazê-lo enquanto alguém não me crucifica por aí com algum desejo vago de justiça...