“Day to day, the shifting wind just blows us on our
way,
Here and there, our pockets full of things to say,
Oh my love, I proudly represent you in this world,
Little satellite, brightest star tonight, oh my love”
(Elton John & Bernie Taupin, 1997)
A grande atração da casa em 1991 era o novo aparelho de som 3
em 1 (rádio AM | FM) acoplado de leitor de CD, vitrola e tocador de fitas cassete)
que meu pai tinha comprado para o nosso modesto apartamento da Ilha do
Governador, Rio de Janeiro. Vivíamos alguns bons momentos de ascensão social em
meio aos horrores praticados pelo governo Collor, que manteve o Brasil em um
buraco político-econômico que não parecia ter fim. O Sr. Orlando, conhecido por
mim como Papai, fora trabalhar em Santos por uns tempos para garantir o
sustento da casa e o conforto de uma família classe média baixa e sempre trazia
CDs, LPs e cassetes à mão cheia para que a música sempre nos acompanhasse nas
viagens para a Baixada Santista ou em casa. O grande sucesso da época era a
regravação de George Michael com “Don’t Let the Sun Go Down On Me”, ao lado do
cantor que lançou aquela canção.
Naquela época ainda se consumia trilhas sonoras de novelas da
Globo em alta escala, pois aqueles álbuns reuniam o que havia de mais popular e
bacana no dial do rádio daquele
momento. Quando a trilha sonora internacional de Lua Cheia de Amor (novela das sete da noite com Marília Pêra
encabeçando o elenco) chegou lá em casa, fomos ouvir o vinil com a curiosidade
e excitação que dedicávamos às grandes novidades. Um som de piano e uma voz
masculina tomavam o ambiente em questão de segundos: era a magia de Elton John
se revelando para mim quando eu tinha um pouco mais de 10 anos de idade.
A partir daquele momento, minha vida de ouvinte não faria o
menor sentido sem ouvir as canções daquele mago das teclas brancas e pretas. As
letras belíssimas de Bernie Taupin somadas às músicas de acordes complexos de
Elton me fizeram viajar por lugares distantes do senso comum que se ouvia na
década de 1990, para minha total salvação. As opções para um adolescente no meu
tempo não me pareciam nem um pouco atraentes, por isso o meu apreço pela obra
de Elton John é tão grande.
Made in England (1995)
Comecei a acompanhar os passos musicais de Sir Elton mais de
perto a partir de 1995, quando ele lançou um de seus discos mais bacanas de sua
discografia, Made in England, que foi bastante elogiado pelo público e pela
crítica. Senti a emoção da perda trágica de Lady Di enquanto ele cantava os
versos da segunda (e emocionante) versão de "Candle in The Wind", que
Bernie reescreveu especialmente para o funeral da figura mais popular da
realeza britânica nos últimos anos. Ouvi The Big Picture (1997) durante o verão de 1997-98 com o mesmo amor e prazer
que eu dediquei aos títulos mais amados da minha coleção de discos.
The Big Picture (1997)
Anos depois, já nos meus últimos anos da Faculdade de Letras
e já saído da casa dos meus pais pela primeira vez, descobri o álbum mais
importante da discografia de Elton John: o maravilhoso Goodbye
Yellow Brick Road, uma das maiores obras-primas da
história da música. O disco não se tornou apenas
minha discografia básica, como passou a me acompanhar para onde quer que eu
fosse. Durante uma estadia minha em Curitiba, na qual eu tive de me apresentar
em um congresso internacional de Literatura Comparada, passei horas e horas
escrevendo sobre Virginia Woolf ao som de um dos lados B mais bonitos daquele
álbum, “I’ve Seen That Movie Too”.
Goodbye Yellow Brick Road (1973)
No entanto, a força dos discos de Elton John não se compara a
energia de ver o mago das teclas pretas e brancas ao vivo em concerto. Consegui
ir a um show de Elton uma única vez, em 17 de janeiro de 2009, em um Anhembi escuro,
chuvoso e impróprio para shows de grande porte. Apesar das péssimas condições
para o show, Sir Elton fez um show emocionante e com mais de duas horas de
duração, com direito a várias canções de Goodbye Yellow
Brick Road. Apesar do cansaço,
do estresse, dos dois táxis e da chuva, valeu a pena ter testemunhado o mago
das teclas pretas e brancas ao vivo, afinal poderei constar estas memórias
corriqueiras para os meus sobrinhos e para os filhos que um dia eu possa vir a
ter.
Em relação a filhos, o astro possui dois. Casado com David
Furnish, com quem vive junto desde meados da década de 1990, Elton John é um
ferrenho defensor da comunidade LGBT e do combate à AIDS, mais um motivo para
minha admiração por ele. Apesar dele ser dono de uma personalidade difícil, um
tanto intragável com seus colegas de profissão (Madonna e Keith Richards já
foram vítimas da língua ferina de Sir Elton), sempre verei o mago das teclas
pretas e brancas como o senhorzinho bonachão de figurinos extravagantes. E ele
chega aos 70 anos de idade com um gás sem fim: gravando discos novos, saindo em
turnês, fazendo apresentações ao vivo e levando milhares de pessoas de gerações
distintas a estádios.
Salve, Sir Elton! Que o senhor possa ser o grande mago das
teclas pretas e brancas por muito tempo...
Os anos 2000 não foram lá muito significativos para
a carreira musical de Gal Costa. Seus álbuns da primeira metade da
década, Gal de Tantos Amores (2001), Bossa Tropical (2002) e Todas As Coisas e Eu (2003) não lembram nem um
pouco a cantora e intérprete inquieta, provocante e inspirada de álbuns
antológicos como Gal (1969), Índia (1973), Cantar (1974), Gal Canta Caymmi (1976), Aquarela do Brasil (1980), Profana (1984) e Plural (1990).
As declarações feitas por Gracinha no início da década de 2000, nas quais
reclamava abertamente que a MPB carecia de jovens compositores não apenas
enfureceu o público, como também trouxe um consequente ostracismo para a eterna
porta-estandarte do movimento tropicalista.
No afã de recuperar o diálogo com a produção
musical brasileira do século XXI, Gal Costa se associou a João Marcello Bôscoli
e sua gravadora Trama e gravou Hoje (2005), um
dos trabalhos mais belos de sua discografia. O CD contou com os arranjos e a
produção musical de César Camargo Mariano (segundo marido e ex-diretor musical
dos discos de Elis Regina no decorrer da década de 1970 e início dos 1980) e
agrupou canções de compositores menos conhecidos Carlos Rennó, Junio Barreto,
Péri, Lokua Kanza e inéditas de medalhões da MPB como Caetano Veloso, Chico
Buarque e José Miguel Wisnik. No entanto, a direção musical de César e o timbre
forte de Gal nos dão a sensação de que algumas faixas soam como o créme de la créme da Pimentinha ou de
algumas criações das lendárias boates do Beco das Garrafas. Em outras palavras, Hoje, apesar de reunir o melhor da juventude musical
dos anos 2000, soa irremediavelmente retrô – ou vintage, como diríamos nos dias
de hoje.
A primeira década do terceiro milênio ainda nos
levou mais dois discos ao vivo de Gal Costa: o insípido Gal Ao Vivo (2006), um registro em CD e DVD da turnê Hoje, além do burocrático Gal Costa Live At The Blue Note (2006), álbum no
qual ela reinterpreta os clássicos da Bossa Nova para Inglês ver. Depois do
lançamento destes trabalhos, pouquíssimo se ouviu da cantora mais moderna de
todo o Brasil durante a segunda metade dos 2000. Alguns diziam que Gracinha
tinha desistido de cantar e queria apenas se dedicar à família, outros diziam
que era apenas um breve intervalo. O fato é que ficamos sem ouvir Gal lançar
álbuns de canções inéditas por mais de cinco anos – uma eternidade para uma
artista que sempre produziu com alta frequência.
E quando ainda havia boatos de que Gracinha ainda
estava na pior, ela ressurgiu para os olhos de todo o Brasil com um CD que
literalmente sacudiu o meio musical no final de 2011. Recanto contou com 11 canções de seu parceiro
musical mais recorrente, Caetano Veloso, e fez com que Gal refizesse as pazes
com o público e fosse definitivamente louvada pela crítica especializada.
Enganaram-se os tolos que achavam que este disco seria mais um disco de MPB easy-listening, com arranjos que
remetiam aos discos clássicos que ambos faziam para a Philips nos anos 1970 ou
com a musa tropicalista à frente da Banda Cê (power trio que acompanha Caê em
shows e discos desde 2006) cantando temas alegres e fáceis de batucar. Recanto era uma viagem ousada de Caetano e Gal
conduzida por Moreno Veloso, Kassin e cia. e por sonoridades eletrônicas, de
cunho extremamente radical, com letras bastante fortes para serem ditas por aí.
A partir de 2011, Gal Costa passou a desfrutar de
um privilégio que pouquíssimos artistas de sua geração conseguiram vivenciar:
sua música não apenas rejuvenesceu, como também seu público se renovou. A
quantidade de jovens que se somavam aos fãs mais antigos de Gracinha nos shows
aumentou em escalas assustadoramente exponenciais. Gal passou a ser uma cantora
da maior importância para, nada mais, nada menos do que CINCO gerações. Depois
de alguns de ostracismo, a coisa mais linda que existia era simplesmente,
brincando com a bela canção de Torquato e Gil, tê-la perto de nós no disco e,
melhor de tudo, no palco. Recanto Ao Vivo (2013)
é o testemunho audiovisual da paixão e glória de uma das cantoras mais
influentes de todo o Brasil, evidenciando uma artista com uma forma vocal
simplesmente invejável e com um repertório irrepreensível.
Com o fim da turnê de Recanto, Gal Costa começou a arquitetar as bases do
repertório para um novo show. Seguindo às orientações do jornalista Marcus
Preto em relação à direção artística e de repertório, Gal reuniu alguns lados B
de seus discos (“Caras e Bocas”, “Tuareg”, “Passarinho”) e algumas inéditas
para o recital Espelho D’Água, no qual era
acompanhada somente por Guilherme Monteiro na guitarra e no violão. As apresentações,
que ocorreram entre meados de 2014 e o início de 2015, foram não apenas uma
oportunidade para que público e artista revisitassem um legado de décadas, como
também serviu para que Gal e Preto arquitetassem o CD Estratosféricaao lado da produção de Kassin e
Moreno Veloso.
Gal
Costa queria que seu mais recente CD tivesse a mesma sonoridade juvenil de seu
antecessor, porém menos radical do que a experiência musical de Recanto. A
banda-base que foi reunida para as gravações consiste de Guilherme Monteiro
(Guitarra), Kassin (Baixo), Pupillo (Bateria) e André Lima (Órgão e Teclados) e
ainda contou com a participação especial em algumas faixas de Davi Moraes
(Guitarra), Moreno Veloso (Cello, Piano, Violão, Coro, etc.), João Donato
(Fender Rhodes), Armando Marçal (Percussão), Donatinho (Teclados) e o
recém-falecido Lincoln Olivetti (Arranjo de Metais). O grande trunfo de
Estratosférica não apenas consegue realizar as intenções previstas por seu time
criador, como também consegue estabelecer um diálogo com todas as fases da
carreira de Gal: “Sem Medo Nem Esperança”, rock de Antonio Cícero e Artur
Nogueira que abre o disco, lembra “Vaca Profana”, “Quando Você Olha Pra Ela”,
de Mallu Magalhães, nos remete a “Que Pena” (Ela já não gosta mais de mim) e a
outros sambas do bom e velho Jorge Ben (quando este ainda não incluído o sufixo
-Jor ao seu nome artístico), “Ecstasy”, parceria de Thalma de Freitas e João
Donato, parece surgida de Cantar e “Você Me Deu”, parceria de Zeca e Caetano
Veloso, dialoga com o universo pop-eletrônico de Recanto.
Ao
contrário de alguns de seus colegas de MPB que chegaram à faixa dos 70 anos de
idade e dos 50 anos de carreira – a artista em questão atingiu os dois marcos
em setembro de 2015! -, Gal Costa decidiu embarcar em uma nave estratosférica com
15 canções inéditas (além de uma faixa bônus), sem olhar para glórias do
passado ou homenagens revisionistas. Já na primeira faixa de seu novo CD, Gracinha lança mão de um tom tão ousado quanto na época em que berrava a plenos pulmões
que o Brasil precisava estar atento e forte: “Não sou mais tola / Não mais me
queixo / Não tenho medo / Nem esperança / Nada do que fiz / Por mais feliz /
Está à altura do que há por fazer”. Em outras palavras, Gal Costa chega aos 70
anos dizendo claramente que o essencial é olhar para frente, pois ela ainda
sabe que ainda há muito o que ser feito. Permite-se levar pela batida soul de
“Jabitacá”, que parece saída de um dos discos da série Racional, de Tim Maia:
“Mas não me deixe navegar / Se já não crê no encanto deste mar / Se nossas
manhãs se perderam nas ruas sem jardins / Enfeitou a nossa casa / Com a rosa da
mais bela cor / Encontrada nas montanhas do Jabitacá”. Além disso, não tem o
menor pudor de entoar as libidinosas palavras do velho amigo Tom Zé, que
escreveu uma das melhores faixas do disco, “Por Baixo”: “Por baixo do vestido:
a timidez / Baixo da timidez: a seda fina / Baixo dela: uma nuvem de calor /
Baixo desse calor: um perfume da China”.
Estratosférica
traz algumas parcerias inéditas. “Dez Anjos” marca a primeira parceria entre
Milton Nascimento e o incensado rapper pop-star Criolo e traz a voz de Gal
Costa entoando um lamento urbano pontuado pela bateria de Pupillo e pelo cello
de Moreno Veloso: “Seis almas pra tentar / Sete almas dizem não / Oito almas
pra sofrer / Nove almas narrarão / Que dez anjos vão morrer / Todos sem arma na
mão”. Já a filosófica “Espelho D’Água” é o fruto do primeiro encontro musical
entre os irmãos Marcelo e Thiago Camelo: “Eu vi a revoada / O mar, estrela e o
nada / Os olhos da morena / E o nosso espelho d’água”. Já a sensual “Ecstasy”
surgiu de uma colaboração entre a cantora e atriz Thalma de Freitas com João
Donato, que tocou o piano Fender Rhodes na faixa: “Diga que deseja ter pra si /
A maravilha de um pleno existir / Um amor assim / Para chamar de Ecstasy /
Adorado amor, tão elegante / Multicolor, fascinante / Viver com você / É
alcançar o Ecstasy”. Além disto, Gal gravou pela primeira vez uma canção escrita
por Marisa Monte – “Amor Se Acalme” foi uma canção escrita especialmente para a
eterna musa do Tropicalismo e reproduz com exatidão o universo de amores e
paixões intensas tão comuns ao universo de Memórias, Crônicas e Declarações de
Amor: “Amor se acalme / Que a noite já vai dormir / A alma passeia / E o nosso
corpo fica aqui / Se isto é sonhar, não sei / Parece viver, só eu e você”.
Este
CD de Gal Costa mereceria nota 10 se não fosse por um único detalhe sórdido.
Não nos referimos ao repertório, que é irrepreensivelmente belo e moderno. Não
é pela capa com a foto de Bob Wolfenson, que conseguiu produzir mais uma imagem
fantástica e icônica de Gracinha. Não é pela produção e direção artística
impecáveis de Moreno Veloso, Kassin e Marcus Preto. É por causa das
faixas-bônus deste trabalho. Estratosférica ganhou três edições: uma em LP, uma
em CD e outra digital. Por uma estratégia de marketing errônea da Sony Music,
gravadora da artista, o LP não ganhou nenhuma faixa bônus, o CD ficou com
apenas uma (uma releitura belíssima de Gal para “Ilusão à Toa”, de Johnny Alf –
originalmente gravada para a trilha sonora da novela Babilônia, da Rede Globo)
e edição digital concentrou duas gravações que são praticamente inéditas do
grande público: “Átimo de Som”, parceria de Arnaldo Antunes e José Miguel
Wisnik e “Vou Buscar Você Pra Mim”, canção que Guilherme Arantes compôs
especialmente para a intérprete que, por sinal, nunca tinha gravado nada do
autor de “Meu Mundo e Nada Mais”.
Estratosférica
é o testemunho definitivo que a cantora mais moderna deste país responde pelo
nome artístico de Gal Costa. Muitas cantoras tentam imitar, outras tentam
copiar, algumas tentam posar de “moderninha”, mas o fato é que gravações como
“Muita Sorte”, “Casca” e “Anuviar” fazem com que se torne ainda mais difícil
chegar aos pés do Gracinha já fez e ainda irá fazer. Enquanto a concorrência e
os haters chegam de circular, Gal voa
por um céu de brigadeiro em sua nave estratosférica zumbindo eternamente por
nossos ouvidos...
"All of us are footnotes to the words of Chuck Berry."
(Leonard Cohen)
"If they were to rename Rock 'n' Roll, it would be called Chuck Berry."
(John Lennon)
"The beautiful thing about Chuck Berry's playing was it had such an effortless swing (...)."
(Keith Richards)
O Rock não tinha mãe, mas tinha um pai dedicado, zeloso e bastante presente. Seu nome: Charles Edward Anderson Berry, um nome de monarca; para nós, mortais: Chuck Berry.
A morte de um dos principais criadores do Rock 'n' Roll em março de 2017 marca o desaparecimento de um dos maiores influenciadores da música popular do século XX. Vários músicos que alcançaram a fama a partir da primeira metade dos anos 1960 apontam a importância de Chuck Berry para que eles conseguissem coragem e empunhassem uma guitarra para viver através da sua arte. John Lennon, Keith Richards, Bob Dylan, Jimi Hendrix, Leonard Cohen, os Beach Boys, os irmãos Young do AC/DC, os mascarados do Kiss, Rod Stewart, Lenny Kravitz e Kurt Cobain são apenas alguns dos músicos que viam Chuck como uma de suas referências principais. Rita Lee e Raul Seixas, os pais do Rock por estas bandas, nunca esconderam a sua admiração pelo autor de "Johnny B. Goode".
Cantor e guitarrista, Chuck Berry misturou elementos do blues, do country, do R&B e do bom e velho boogie para gerar uma das criações mais diabólicas do mundo da música, o Rock 'n' Roll. A lembrança mais frequente que tenho do astro é de vê-lo empunhando uma guitarra em riste e fazendo a sua indefectível "duck dance", copiada por Angus Young e tantos outros guitarristas. O passo de dança, um dos clichês mais famosos da música, surgiu por volta de 1956: sempre preocupado com sua elegância e com a qualidade visual de seus ternos, Chuck decidiu investir em um novo passo de dança para esconder as partes amarrotadas de seu figurino. Quem diria que uma roupa amarrotada faria história?
O maior feito de Chuck Berry não foi apenas a invenção de um dos estilos musicais mais versáteis e populares de todos os tempos. Se Elvis Presley deu asas ao imaginário feminino graças aos acordes de sua guitarra e aos agitos de sua pélvis indecente, isto se deve aos feitos do homem mais notável de Saint Louis. Canções como "Roll Over Beethoven", "Carol", "Johnny B. Goode", "Memphis, Tennessee", "Maybellene" e "Sweet Little Sixteen" fizeram tanto, mas tanto sucesso que extrapolaram as fronteiras de gênero ou classe social. Além disto, ele introduziu um léxico revolucionário na música popular de seu tempo - falar de "monkey business" (negócio sujo) ou de carros e sexo nos Estados Unidos da década de 1950, fazendo uma crítica social violenta, cantando Rock e ainda sendo negro?! Chuck simplesmente fez a revolução, apesar do mundo não ter se preparado para tal.
Obviamente, Chuck Berry pagou um preço alto por ter sido tão ousado. Antes da fama, já tinha sido preso por roubo e porte de arma de fogo e chegou a ficar em detenção por alguns anos. Anos depois, já consagrado, foi acusado injustamente de aliciar uma menina de 14 anos, quase lhe custando a carreira, além de uns tempos no xilindró. Eu me pergunto se a lei foi mais pesada para Chuck simplesmente pelo fato dele ser negro. O que é fato incontestável é que foi graças aos seus amados pupilos - Beatles e Rolling Stones, especialmente - que o Pai do Rock 'n' Roll reergueu sua carreira, já reconhecido pelo seu status de lenda.
Chuck Berry manteve a simplicidade e fez apresentações até recentemente nos cassinos e clubes de Saint Louis, região onde morava, apesar do peso dos anos. A figura do criador desaparece e deixa uma quantidade sem tamanho de órfãos. Já o seu legado musical permanecerá enquanto os acordes de uma guitarra ecoarem por aí...
Muitos músicos
brasileiros disputaram a alcunha de “o músico mais louco do Brasil”. Raul
Seixas bem que tentou; Marcos Valle e Erasmo Carlos passaram longe; Sérgio
Sampaio e Jards Macalé fizeram alguns esforços dignos; Arnaldo Baptista (se não
fosse um caso clínico tão grave) foi o que chegou mais perto. No entanto,
nenhum deles conseguiu bater a meta de loucuras artísticas de Tim Maia, o
detentor do título: o Síndico redefiniu todos os limites de sensatez e
independência artística com este álbum.
Em 1974, Tim
Maia era um dos músicos mais consagrados da MPB: seus quatro primeiros discos –
lançados pela Philips entre 1970 e 1973 – são registros do que se fez de melhor
em termos de música Soul no Brasil. A fina flor do cancioneiro do Síndico se
tornou a trilha sonora de muitos casais apaixonados e que gostavam de dançar
por aí e fez do gordinho Sebastião Rodrigues Maia, ex-presidiário, ex-suburbano
carioca, ex-companheiro de banda de Roberto e Erasmo um astro da canção
brasileira. Em suma: Tim era um músico de sucesso, amado pelo público e
sentindo os prazeres e armadilhas do sucesso.
No início de
1974, Tim saiu da Philips e foi contratado pela RCA a peso de ouro para que
gravasse um álbum duplo (o Brasil queria abocanhar aquela tendência de mercado,
pegando carona no sucesso dos vinis rechonchudos que Elton John e os Rolling
Stones – para não citar outros – tinham lançado há pouco tempo). Porém, a
relação conflituosa do astro brasileiro com as drogas e a bebida, somando-se às
desilusões amorosas constantes, fez com que ele fosse em busca da paz e do
conforto que nenhum narcótico conseguiria lhe oferecer. Ao ler um dos livros da
seita Universo em Desencanto, Tim
Maia decidiu que o caminho para se livrar de todos os conflitos que lhe
desesperavam era se convertendo à seita de Manoel Jacintho Coelho, grão mestre
daquele rebanho localizado em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
De acordo com
aqueles preceitos religiosos, o mundo estava magnetizado por forças maléficas.
Para que encontrássemos a salvação (via imunização
racional), era preciso acreditar na existência e no poder de um Racional
Superior, abolir todas as cores do vestuário em prol do branco e se livrar de
todos os excessos de uma vida materialista. Com isso, Tim abandonou as drogas e
a bebida, emagreceu consideravelmente e cortou suas longas madeixas ao estilo
Black Power, que eram a sua marca registrada. O resultado deste processo foi Racional, um álbum espetacular, com um
artista no auge da sua forma vocal (graças ao fato de ter dado uma pausa na
bebida e nas drogas), mas no apogeu de sua criatividade em relação ao discurso.
“Bom Senso”, a terceira faixa do disco, é o melhor exemplo deste fato:
Já virei calçada maltratada
E na virada quase nada
Me restou a curtição
Já rodei o mundo quase mudo
No entanto num segundo
Este livro veio à mão
Já senti saudade
Já fiz muita coisa errada
Já pedi ajuda
Já dormi na rua
Mas lendo atingi o bom senso
Mas lendo atingi o bom senso
A imunização
Racional
Racional é um trabalho
fenomenal no que diz respeito à qualidade musical: os músicos da banda
(proibidos por Tim de consumir qualquer tipo de droga) produziram acordes
memoráveis e repletos de groove ao
lado de um band leader instintivo e
de uma inteligência musical ímpar. Funk
e Soul se irmanam intensamente com o
canto do Síndico em uma simbiose jamais ouvida em seus discos da fase Philips.
Por outro lado, o disco é repleto de letras panfletárias, de gosto
explicitamente duvidoso e que revelam um esoterismo barato, beirando o tosco (4
das 9 faixas do álbum possuem o termo “racional” no título das canções e quase
todas elas pedem para que os ouvintes leiam o livro da seita liderada por
Manoel Jacintho Coelho).
Basicamente, a
música era incrível, porém o discurso era (infelizmente) de baixa qualidade:
apesar de Tim Maia ter largado o vício em comida, álcool e narcóticos, a
religião revelara-se como mais uma de suas compulsões – a ferocidade de sua
obsessão tinha um outro viés, tão devastador quanto o de alguém que necessitava
largar o crack ou a heroína…
Um exemplo da
fúria santa de Tim Maia: no auge de seu fervor esotérico, o autor de “Azul da
Cor do Mar” e “Réu Confesso” decidiu assinar suas criações como “Tim Maia
Racional” e exigiu que todos os músicos que trabalhavam com ele se convertessem
ao Universo em Desencanto. A banda foi rebatizada de Seroma Racional e todos os
instrumentos musicais deveriam ser pintados de branco. Ingestão de carne
vermelha e praticar sexo sem o intuito de procriar estava completamente fora de
cogitação. Tim finalmente atingira o ápice de sua maluquice enquanto membro da
seita de Belford Roxo: as consequências de sua doideira não tardariam a aparecer…
Quando os
executivos da RCA tomaram conhecimento das loucuras religiosas de Tim Maia,
decidiram remover o contrato com o artista. Tim aceitou o rompimento com a
condição de que levasse consigo todas as bases do disco duplo que já estavam
gravadas e que se encontravam em poder da gravadora. Com o sinal verde dos
homens de terno e gravata, o Síndico lançou seu quinto álbum de maneira
independente através do selo SEROMA (cujo nome veio das primeiras sílabas de
Sebastião Rodrigues Maia, nome de batismo do cantor) e fez história na música
brasileira como um dos primeiros artistas do mainstream musical brasileiro a lançar um disco de forma autônoma
em relação às grandes gravadoras. Racional chegou a ter duas sequências: Racional, Vol. 2 veio a público apenas em
1976, provavelmente porque havia uma enorme dificuldade de Tim para prensar e
distribuir o disco. No final da década de 1990, depois que o Síndico já havia
morrido, as master tapes de Racional, Vol. 3foram
encontradas e só chegaram aos ouvidos dos fãs em 2011, graças a uma iniciativa
conjunta de Carmelo Maia (filho de Tim), Kassin e o falecido maestro/arranjador
Lincoln Olivetti em uma parceria entre a Sony Music, a Vitória Régia (da
família Maia) e a editora Abril.
Tim Maia pagou
um preço altíssimo por sua vontade intensa de autonomia em relação ao mercado: Racional foi sumariamente ignorado pela
crítica e pelo grande público na época – ironicamente, esta fase é uma das mais
admiradas e veneradas pelos fãs do Síndico. Os shows começaram a ficar vazios e
a minguar dramaticamente. A grana e o sucesso desapareceram em um estalar de
dedos. No momento enquete o fracasso finalmente encontrara as portas de Tim,
descobriu-se que Manoel Jacintho Coelho era um charlatão descompromissado com a
fé alheia e interessado apenas em dividendos financeiros. Como consequências, o
Síndico decidiu se “magnetizar” novamente e a obra religiosa de Sebastião
Rodrigues Maia tornou-se eternamente amaldiçoada pelos olhos de seu criador e
foi eternamente renegada enquanto ele esteve vivo.
Racional é o momento
mais criativo e polêmico da discografia de Tim Maia. A viagem místico-musical
do Síndico merece nossa audição, mas não deve ser levada a sério por se tratar
da maior maluquice musical que um artista brasileiro realizara em vida. Tim não
deve em nada a um pastor negro norte-americano em termos vocais, porém as
letras paupérrimas que pregava a nossa leitura dos mais de 1000 livros da seita
Universo em Desencanto. O disco traz um conceito confuso, mas a sobriedade
vocal do maior artista negro da música brasileira o coloca também como a maior
voz gospel surgida neste país: se os cantores evangélicos ou os padres que se
arriscam como cantores que adoram pregar a chamada “palavra de Deus” buscassem
inspiração no som produzido por Sebastião Rodrigues Maia, a qualidade do que se
ouve por aí seria muito melhor – principalmente porque uma canção como
“Imunização Racional (Que Beleza)” nós dá a impressão de que foi gravada
anteontem. Este trabalho é a prova mais cabal que a loucura também consegue
produzir coisas belas de se ver e também de se ouvir…
(Paulo
César Pinheiro & Mauro Duarte na voz de Clara Nunes)
O carnaval de 2017 finalmente acabou.
Aqui na terra da garoa, começou com um final de semana de antecedência e acabou
bem depois do domingo após a quarta-feira de cinzas com muito custo. Os
festejos carnavalescos sempre foram negócio sério por aqui: o Nordeste ferve ao
som do frevo e do axé, enquanto o Rio de Janeiro e São Paulo são animados pelos
blocos de rua, bailes e os desfiles das escolas de samba, por exemplo. Apesar
da seriedade, nunca fui um folião, digamos, característico: minha falta de
apreço por multidões e meu gosto musical incomum me causavam um certo desprezo
por esta época do ano.
Venho, com muito orgulho, de uma
família de foliões. Meus pais são apaixonados pelos desfiles das escolas de
samba do Rio de Janeiro – meu pai, por exemplo, sempre ganha de presente de
aniversário o CD com os sambas-enredo que vão cruzar a Sapucaí no ano seguinte
todo mês de dezembro; facilitando muito a minha vida, pois o Sr. Orlando faz
anos no último mês do ano, época na qual os meus neurônios já deixaram de
funcionar normalmente. Meu avô materno sempre levava os filhos para assistir
aos desfiles da janela do escritório dele na esquina da Av. Rio Branco na época
em que o sambódromo nem sequer existia.
O samba sempre teve seus pés no
protesto e nos ideais de libertação do indivíduo. Por isso, o carnaval não
deixa de ser uma festa política e de celebração dos prazeres da carne sem
restringir classes sociais, etnias ou sexualidade. Como consequência dos
últimos acontecimentos no Brasil, os festejos de rua cresceram assombrosamente
nos últimos anos. São Paulo, por exemplo, tem vivenciado o florescimento dos
blocos carnavalescos e da irreverência dos foliões dispostos a festejar e a
protestar contra o status quo. A
diversidade, por outro lado, tem marcado as agremiações de rua do Rio de
Janeiro, cantando e tocando canções do repertório clássico do samba até as
eternas criações do rock ‘n’ roll a
plenos pulmões.
Em meio à crise econômica e política
que o Brasil tem vivido, a quantidade de pessoas indo às ruas protestar contra
o governo golpista e ilegítimo foi tão expressiva que nem as principais redes
de TV conseguiram esconder os gritos de “Fora Temer” em rede nacional. A
disposição das pessoas para festejar em meio à crise é de fazer vista ao mundo
inteiro. Enquanto a Terra da Garoa fervia com os blocos carnavalescos de todos
os tipos – os Beatles, Rita Lee, Caetano Veloso, David Bowie, Gal Costa e Beth
Carvalho foram alguns dos homenageados –, a Portela reinou soberana durante o
carnaval da Cidade Maravilhosa depois de 47 anos sem levar o título para
Madureira.
Apesar de não ser uma pessoa
necessariamente religiosa, fiz meu pedido em oração para que os foliões fossem
protegidos durante os festejos. Infelizmente, não foi o que ocorreu: os relatos
de furtos e assaltos eram sem fim (um primo meu teve a infelicidade de ter DOIS
celulares roubados no Rio de Janeiro!), as histórias de violência contra
mulheres extrapolaram os limites do suportável – a cada três minutos, uma
mulher foi agredida –, as ruas de São Paulo eram desocupadas com a truculência,
a agressividade e a conivência de um prefeito que se diz preocupado com as
belezas da cidade.
Em relação às violências sofridas
pelas minorias, duas histórias ocorridas durante o período de carnaval me
horrorizaram por completo. A primeira foi o habeas
corpus concedido pelo STF ao goleiro Bruno, acusado e condenado de matar,
esquartejar e ocultar o cadáver de Eliza Samúdio, mãe de seu filho. O fato de
nossa Suprema Corte privilegiar ricos e poderosos já não me causa tanta espécie
hoje em dia, porém a reverência de torcedores e clubes de futebol ao ex-craque
do Flamengo me surpreenderam bastante: ele recebeu ofertas de clubes de futebol
e pedidos de selfies com torcedores e marias chuteiras (?!). A prova de
que o brasileiro médio é fã de bandidos endinheirados como Bruno e Eike Batista
é concreta, abençoada pelo GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) e digna da minha náusea mais intensa e sincera.
A segunda história que me tirou do
sério foi o assassinato brutal da travesti Dandara dos Santos, espancada por
vários homens. O fato da transexual ter entrado para as estatísticas,
infelizmente, não me surpreendeu, pois vivemos sob a égide de uma barbárie
permanente. O dado que me deixou perplexo foi que o crime foi filmado por um
dos agressores: Dandara implorava pela vida, enquanto seus algozes não
hesitavam em agredi-la mais e mais. Não bastava bater, era preciso agredir,
assassinar e filmar para que houvesse uma prova de afirmação da homofobia
travestida com a desculpa de que o homem heterossexual é superior aos que não estariam
no mesmo patamar que o dele. A travesti foi tratada com a indiferença dos
grandes meios de comunicação, não foi notícia nas primeiras páginas dos
jornais, mas foi objeto de comoção daqueles que estão fartos de serem tratados
com desdém pelas maiorias.
Quando Clara Nunes ganhou “Portela na
Avenida” de presente do marido Paulo César Pinheiro e do violonista Mauro
Duarte, ela ficou comovida com a comparação das alas da Portela com o manto
azul e branco de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Minha esperança
é que este manto sirva não apenas para dar a proteção necessária à escola de
samba de Madureira, como também sirva para guardar nosso país tão ferido de
valores, de respeito e de compaixão dos males dos reacionários de tocaia e de
plantão...