28 de março de 2017

TROVA # 116

O MAGO DAS TECLAS PRETAS E BRANCAS
(algumas memórias ao som de Elton John)


“Day to day, the shifting wind just blows us on our way,
Here and there, our pockets full of things to say,
Oh my love, I proudly represent you in this world,
Little satellite, brightest star tonight, oh my love”
(Elton John & Bernie Taupin, 1997)



A grande atração da casa em 1991 era o novo aparelho de som 3 em 1 (rádio AM | FM) acoplado de leitor de CD, vitrola e tocador de fitas cassete) que meu pai tinha comprado para o nosso modesto apartamento da Ilha do Governador, Rio de Janeiro. Vivíamos alguns bons momentos de ascensão social em meio aos horrores praticados pelo governo Collor, que manteve o Brasil em um buraco político-econômico que não parecia ter fim. O Sr. Orlando, conhecido por mim como Papai, fora trabalhar em Santos por uns tempos para garantir o sustento da casa e o conforto de uma família classe média baixa e sempre trazia CDs, LPs e cassetes à mão cheia para que a música sempre nos acompanhasse nas viagens para a Baixada Santista ou em casa. O grande sucesso da época era a regravação de George Michael com “Don’t Let the Sun Go Down On Me”, ao lado do cantor que lançou aquela canção.





Naquela época ainda se consumia trilhas sonoras de novelas da Globo em alta escala, pois aqueles álbuns reuniam o que havia de mais popular e bacana no dial do rádio daquele momento. Quando a trilha sonora internacional de Lua Cheia de Amor (novela das sete da noite com Marília Pêra encabeçando o elenco) chegou lá em casa, fomos ouvir o vinil com a curiosidade e excitação que dedicávamos às grandes novidades. Um som de piano e uma voz masculina tomavam o ambiente em questão de segundos: era a magia de Elton John se revelando para mim quando eu tinha um pouco mais de 10 anos de idade.



A partir daquele momento, minha vida de ouvinte não faria o menor sentido sem ouvir as canções daquele mago das teclas brancas e pretas. As letras belíssimas de Bernie Taupin somadas às músicas de acordes complexos de Elton me fizeram viajar por lugares distantes do senso comum que se ouvia na década de 1990, para minha total salvação. As opções para um adolescente no meu tempo não me pareciam nem um pouco atraentes, por isso o meu apreço pela obra de Elton John é tão grande.

Made in England (1995)



Comecei a acompanhar os passos musicais de Sir Elton mais de perto a partir de 1995, quando ele lançou um de seus discos mais bacanas de sua discografia, Made in England, que foi bastante elogiado pelo público e pela crítica. Senti a emoção da perda trágica de Lady Di enquanto ele cantava os versos da segunda (e emocionante) versão de "Candle in The Wind", que Bernie reescreveu especialmente para o funeral da figura mais popular da realeza britânica nos últimos anos. Ouvi The Big Picture (1997) durante o verão de 1997-98 com o mesmo amor e prazer que eu dediquei aos títulos mais amados da minha coleção de discos.

The Big Picture (1997)



Anos depois, já nos meus últimos anos da Faculdade de Letras e já saído da casa dos meus pais pela primeira vez, descobri o álbum mais importante da discografia de Elton John: o maravilhoso Goodbye Yellow Brick Road, uma das maiores obras-primas da história da música. O disco não se tornou apenas minha discografia básica, como passou a me acompanhar para onde quer que eu fosse. Durante uma estadia minha em Curitiba, na qual eu tive de me apresentar em um congresso internacional de Literatura Comparada, passei horas e horas escrevendo sobre Virginia Woolf ao som de um dos lados B mais bonitos daquele álbum, “I’ve Seen That Movie Too”.



Goodbye Yellow Brick Road (1973)

No entanto, a força dos discos de Elton John não se compara a energia de ver o mago das teclas pretas e brancas ao vivo em concerto. Consegui ir a um show de Elton uma única vez, em 17 de janeiro de 2009, em um Anhembi escuro, chuvoso e impróprio para shows de grande porte. Apesar das péssimas condições para o show, Sir Elton fez um show emocionante e com mais de duas horas de duração, com direito a várias canções de Goodbye Yellow Brick Road. Apesar do cansaço, do estresse, dos dois táxis e da chuva, valeu a pena ter testemunhado o mago das teclas pretas e brancas ao vivo, afinal poderei constar estas memórias corriqueiras para os meus sobrinhos e para os filhos que um dia eu possa vir a ter.




Em relação a filhos, o astro possui dois. Casado com David Furnish, com quem vive junto desde meados da década de 1990, Elton John é um ferrenho defensor da comunidade LGBT e do combate à AIDS, mais um motivo para minha admiração por ele. Apesar dele ser dono de uma personalidade difícil, um tanto intragável com seus colegas de profissão (Madonna e Keith Richards já foram vítimas da língua ferina de Sir Elton), sempre verei o mago das teclas pretas e brancas como o senhorzinho bonachão de figurinos extravagantes. E ele chega aos 70 anos de idade com um gás sem fim: gravando discos novos, saindo em turnês, fazendo apresentações ao vivo e levando milhares de pessoas de gerações distintas a estádios.



Salve, Sir Elton! Que o senhor possa ser o grande mago das teclas pretas e brancas por muito tempo...


23 de março de 2017

DISCOS DE VINIL # 24

GAL COSTA – ESTRATOSFÉRICA (2015)


Os anos 2000 não foram lá muito significativos para a carreira musical de Gal Costa.  Seus álbuns da primeira metade da década, Gal de Tantos Amores (2001), Bossa Tropical (2002) e Todas As Coisas e Eu (2003) não lembram nem um pouco a cantora e intérprete inquieta, provocante e inspirada de álbuns antológicos como Gal (1969), Índia (1973), Cantar (1974), Gal Canta Caymmi (1976), Aquarela do Brasil (1980), Profana (1984) e Plural (1990). As declarações feitas por Gracinha no início da década de 2000, nas quais reclamava abertamente que a MPB carecia de jovens compositores não apenas enfureceu o público, como também trouxe um consequente ostracismo para a eterna porta-estandarte do movimento tropicalista.


No afã de recuperar o diálogo com a produção musical brasileira do século XXI, Gal Costa se associou a João Marcello Bôscoli e sua gravadora Trama e gravou Hoje (2005), um dos trabalhos mais belos de sua discografia. O CD contou com os arranjos e a produção musical de César Camargo Mariano (segundo marido e ex-diretor musical dos discos de Elis Regina no decorrer da década de 1970 e início dos 1980) e agrupou canções de compositores menos conhecidos Carlos Rennó, Junio Barreto, Péri, Lokua Kanza e inéditas de medalhões da MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque e José Miguel Wisnik. No entanto, a direção musical de César e o timbre forte de Gal nos dão a sensação de que algumas faixas soam como o créme de la créme da Pimentinha ou de algumas criações das lendárias boates do Beco das Garrafas. Em outras palavras, Hoje, apesar de reunir o melhor da juventude musical dos anos 2000, soa irremediavelmente retrô – ou vintage, como diríamos nos dias de hoje.


A primeira década do terceiro milênio ainda nos levou mais dois discos ao vivo de Gal Costa: o insípido Gal Ao Vivo (2006), um registro em CD e DVD da turnê Hoje, além do burocrático Gal Costa Live At The Blue Note (2006), álbum no qual ela reinterpreta os clássicos da Bossa Nova para Inglês ver. Depois do lançamento destes trabalhos, pouquíssimo se ouviu da cantora mais moderna de todo o Brasil durante a segunda metade dos 2000. Alguns diziam que Gracinha tinha desistido de cantar e queria apenas se dedicar à família, outros diziam que era apenas um breve intervalo. O fato é que ficamos sem ouvir Gal lançar álbuns de canções inéditas por mais de cinco anos – uma eternidade para uma artista que sempre produziu com alta frequência.


E quando ainda havia boatos de que Gracinha ainda estava na pior, ela ressurgiu para os olhos de todo o Brasil com um CD que literalmente sacudiu o meio musical no final de 2011. Recanto contou com 11 canções de seu parceiro musical mais recorrente, Caetano Veloso, e fez com que Gal refizesse as pazes com o público e fosse definitivamente louvada pela crítica especializada. Enganaram-se os tolos que achavam que este disco seria mais um disco de MPB easy-listening, com arranjos que remetiam aos discos clássicos que ambos faziam para a Philips nos anos 1970 ou com a musa tropicalista à frente da Banda Cê (power trio que acompanha Caê em shows e discos desde 2006) cantando temas alegres e fáceis de batucar. Recanto era uma viagem ousada de Caetano e Gal conduzida por Moreno Veloso, Kassin e cia. e por sonoridades eletrônicas, de cunho extremamente radical, com letras bastante fortes para serem ditas por aí.


A partir de 2011, Gal Costa passou a desfrutar de um privilégio que pouquíssimos artistas de sua geração conseguiram vivenciar: sua música não apenas rejuvenesceu, como também seu público se renovou. A quantidade de jovens que se somavam aos fãs mais antigos de Gracinha nos shows aumentou em escalas assustadoramente exponenciais. Gal passou a ser uma cantora da maior importância para, nada mais, nada menos do que CINCO gerações. Depois de alguns de ostracismo, a coisa mais linda que existia era simplesmente, brincando com a bela canção de Torquato e Gil, tê-la perto de nós no disco e, melhor de tudo, no palco. Recanto Ao Vivo (2013) é o testemunho audiovisual da paixão e glória de uma das cantoras mais influentes de todo o Brasil, evidenciando uma artista com uma forma vocal simplesmente invejável e com um repertório irrepreensível.


Com o fim da turnê de Recanto, Gal Costa começou a arquitetar as bases do repertório para um novo show. Seguindo às orientações do jornalista Marcus Preto em relação à direção artística e de repertório, Gal reuniu alguns lados B de seus discos (“Caras e Bocas”, “Tuareg”, “Passarinho”) e algumas inéditas para o recital Espelho D’Água, no qual era acompanhada somente por Guilherme Monteiro na guitarra e no violão. As apresentações, que ocorreram entre meados de 2014 e o início de 2015, foram não apenas uma oportunidade para que público e artista revisitassem um legado de décadas, como também serviu para que Gal e Preto arquitetassem o CD Estratosférica ao lado da produção de Kassin e Moreno Veloso.


Gal Costa queria que seu mais recente CD tivesse a mesma sonoridade juvenil de seu antecessor, porém menos radical do que a experiência musical de Recanto. A banda-base que foi reunida para as gravações consiste de Guilherme Monteiro (Guitarra), Kassin (Baixo), Pupillo (Bateria) e André Lima (Órgão e Teclados) e ainda contou com a participação especial em algumas faixas de Davi Moraes (Guitarra), Moreno Veloso (Cello, Piano, Violão, Coro, etc.), João Donato (Fender Rhodes), Armando Marçal (Percussão), Donatinho (Teclados) e o recém-falecido Lincoln Olivetti (Arranjo de Metais). O grande trunfo de Estratosférica não apenas consegue realizar as intenções previstas por seu time criador, como também consegue estabelecer um diálogo com todas as fases da carreira de Gal: “Sem Medo Nem Esperança”, rock de Antonio Cícero e Artur Nogueira que abre o disco, lembra “Vaca Profana”, “Quando Você Olha Pra Ela”, de Mallu Magalhães, nos remete a “Que Pena” (Ela já não gosta mais de mim) e a outros sambas do bom e velho Jorge Ben (quando este ainda não incluído o sufixo -Jor ao seu nome artístico), “Ecstasy”, parceria de Thalma de Freitas e João Donato, parece surgida de Cantar e “Você Me Deu”, parceria de Zeca e Caetano Veloso, dialoga com o universo pop-eletrônico de Recanto.


Ao contrário de alguns de seus colegas de MPB que chegaram à faixa dos 70 anos de idade e dos 50 anos de carreira – a artista em questão atingiu os dois marcos em setembro de 2015! -, Gal Costa decidiu embarcar em uma nave estratosférica com 15 canções inéditas (além de uma faixa bônus), sem olhar para glórias do passado ou homenagens revisionistas. Já na primeira faixa de seu novo CD, Gracinha lança mão de um tom tão ousado quanto na época em que berrava a plenos pulmões que o Brasil precisava estar atento e forte: “Não sou mais tola / Não mais me queixo / Não tenho medo / Nem esperança / Nada do que fiz / Por mais feliz / Está à altura do que há por fazer”. Em outras palavras, Gal Costa chega aos 70 anos dizendo claramente que o essencial é olhar para frente, pois ela ainda sabe que ainda há muito o que ser feito. Permite-se levar pela batida soul de “Jabitacá”, que parece saída de um dos discos da série Racional, de Tim Maia: “Mas não me deixe navegar / Se já não crê no encanto deste mar / Se nossas manhãs se perderam nas ruas sem jardins / Enfeitou a nossa casa / Com a rosa da mais bela cor / Encontrada nas montanhas do Jabitacá”. Além disso, não tem o menor pudor de entoar as libidinosas palavras do velho amigo Tom Zé, que escreveu uma das melhores faixas do disco, “Por Baixo”: “Por baixo do vestido: a timidez / Baixo da timidez: a seda fina / Baixo dela: uma nuvem de calor / Baixo desse calor: um perfume da China”.


Estratosférica traz algumas parcerias inéditas. “Dez Anjos” marca a primeira parceria entre Milton Nascimento e o incensado rapper pop-star Criolo e traz a voz de Gal Costa entoando um lamento urbano pontuado pela bateria de Pupillo e pelo cello de Moreno Veloso: “Seis almas pra tentar / Sete almas dizem não / Oito almas pra sofrer / Nove almas narrarão / Que dez anjos vão morrer / Todos sem arma na mão”. Já a filosófica “Espelho D’Água” é o fruto do primeiro encontro musical entre os irmãos Marcelo e Thiago Camelo: “Eu vi a revoada / O mar, estrela e o nada / Os olhos da morena / E o nosso espelho d’água”. Já a sensual “Ecstasy” surgiu de uma colaboração entre a cantora e atriz Thalma de Freitas com João Donato, que tocou o piano Fender Rhodes na faixa: “Diga que deseja ter pra si / A maravilha de um pleno existir / Um amor assim / Para chamar de Ecstasy / Adorado amor, tão elegante / Multicolor, fascinante / Viver com você / É alcançar o Ecstasy”. Além disto, Gal gravou pela primeira vez uma canção escrita por Marisa Monte – “Amor Se Acalme” foi uma canção escrita especialmente para a eterna musa do Tropicalismo e reproduz com exatidão o universo de amores e paixões intensas tão comuns ao universo de Memórias, Crônicas e Declarações de Amor: “Amor se acalme / Que a noite já vai dormir / A alma passeia / E o nosso corpo fica aqui / Se isto é sonhar, não sei / Parece viver, só eu e você”.




Este CD de Gal Costa mereceria nota 10 se não fosse por um único detalhe sórdido. Não nos referimos ao repertório, que é irrepreensivelmente belo e moderno. Não é pela capa com a foto de Bob Wolfenson, que conseguiu produzir mais uma imagem fantástica e icônica de Gracinha. Não é pela produção e direção artística impecáveis de Moreno Veloso, Kassin e Marcus Preto. É por causa das faixas-bônus deste trabalho. Estratosférica ganhou três edições: uma em LP, uma em CD e outra digital. Por uma estratégia de marketing errônea da Sony Music, gravadora da artista, o LP não ganhou nenhuma faixa bônus, o CD ficou com apenas uma (uma releitura belíssima de Gal para “Ilusão à Toa”, de Johnny Alf – originalmente gravada para a trilha sonora da novela Babilônia, da Rede Globo) e edição digital concentrou duas gravações que são praticamente inéditas do grande público: “Átimo de Som”, parceria de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik e “Vou Buscar Você Pra Mim”, canção que Guilherme Arantes compôs especialmente para a intérprete que, por sinal, nunca tinha gravado nada do autor de “Meu Mundo e Nada Mais”.



Estratosférica é o testemunho definitivo que a cantora mais moderna deste país responde pelo nome artístico de Gal Costa. Muitas cantoras tentam imitar, outras tentam copiar, algumas tentam posar de “moderninha”, mas o fato é que gravações como “Muita Sorte”, “Casca” e “Anuviar” fazem com que se torne ainda mais difícil chegar aos pés do Gracinha já fez e ainda irá fazer. Enquanto a concorrência e os haters chegam de circular, Gal voa por um céu de brigadeiro em sua nave estratosférica zumbindo eternamente por nossos ouvidos...

21 de março de 2017

TROVA # 115

MANY THANKS, CHUCK!


Em memória de Chuck Berry (1926-2017)

"All of us are footnotes to the words of Chuck Berry."
(Leonard Cohen)
"If they were to rename Rock 'n' Roll, it would be called Chuck Berry."
(John Lennon)
"The beautiful thing about Chuck Berry's playing was it had such an effortless swing (...)."
(Keith Richards)


O Rock não tinha mãe, mas tinha um pai dedicado, zeloso e bastante presente. Seu nome: Charles Edward Anderson Berry, um nome de monarca; para nós, mortais: Chuck Berry. 


A morte de um dos principais criadores do Rock 'n' Roll em março de 2017 marca o desaparecimento de um dos maiores influenciadores da música popular do século XX. Vários músicos que alcançaram a fama a partir da primeira metade dos anos 1960 apontam a importância de Chuck Berry para que eles conseguissem coragem e empunhassem uma guitarra para viver através da sua arte. John Lennon, Keith Richards, Bob Dylan, Jimi Hendrix, Leonard Cohen, os Beach Boys, os irmãos Young do AC/DC, os mascarados do Kiss, Rod Stewart, Lenny Kravitz e Kurt Cobain são apenas alguns dos músicos que viam Chuck como uma de suas referências principais. Rita Lee e Raul Seixas, os pais do Rock por estas bandas, nunca esconderam a sua admiração pelo autor de "Johnny B. Goode".


Cantor e guitarrista, Chuck Berry misturou elementos do blues, do country, do R&B e do bom e velho boogie para gerar uma das criações mais diabólicas do mundo da música, o Rock 'n' Roll. A lembrança mais frequente que tenho do astro é de vê-lo empunhando uma guitarra em riste e fazendo a sua indefectível "duck dance", copiada por Angus Young e tantos outros guitarristas. O passo de dança, um dos clichês mais famosos da música, surgiu por volta de 1956: sempre preocupado com sua elegância e com a qualidade visual de seus ternos, Chuck decidiu investir em um novo passo de dança para esconder as partes amarrotadas de seu figurino. Quem diria que uma roupa amarrotada faria história?


O maior feito de Chuck Berry não foi apenas a invenção de um dos estilos musicais mais versáteis e populares de todos os tempos. Se Elvis Presley deu asas ao imaginário feminino graças aos acordes de sua guitarra e aos agitos de sua pélvis indecente, isto se deve aos feitos do homem mais notável de Saint Louis. Canções como "Roll Over Beethoven", "Carol", "Johnny B. Goode", "Memphis, Tennessee", "Maybellene" e "Sweet Little Sixteen" fizeram tanto, mas tanto sucesso que extrapolaram as fronteiras de gênero ou classe social. Além disto, ele introduziu um léxico revolucionário na música popular de seu tempo - falar de "monkey business" (negócio sujo) ou de carros e sexo nos Estados Unidos da década de 1950, fazendo uma crítica social violenta, cantando Rock e ainda sendo negro?! Chuck simplesmente fez a revolução, apesar do mundo não ter se preparado para tal.


Obviamente, Chuck Berry pagou um preço alto por ter sido tão ousado. Antes da fama, já tinha sido preso por roubo e porte de arma de fogo e chegou a ficar em detenção por alguns anos. Anos depois, já consagrado, foi acusado injustamente de aliciar uma menina de 14 anos, quase lhe custando a carreira, além de uns tempos no xilindró. Eu me pergunto se a lei foi mais pesada para Chuck simplesmente pelo fato dele ser negro. O que é fato incontestável é que foi graças aos seus amados pupilos - Beatles e Rolling Stones, especialmente - que o Pai do Rock 'n' Roll reergueu sua carreira, já reconhecido pelo seu status de lenda.


Chuck Berry manteve a simplicidade e fez apresentações até recentemente nos cassinos e clubes de Saint Louis, região onde morava, apesar do peso dos anos. A figura do criador desaparece e deixa uma quantidade sem tamanho de órfãos. Já o seu legado musical permanecerá enquanto os acordes de uma guitarra ecoarem por aí...





16 de março de 2017

DISCOS DE VINIL # 23

TIM MAIA – RACIONAL (1975)


“Quero que tudo saia / como o som de Tim Maia”
(Caetano Veloso, 1983)


Muitos músicos brasileiros disputaram a alcunha de “o músico mais louco do Brasil”. Raul Seixas bem que tentou; Marcos Valle e Erasmo Carlos passaram longe; Sérgio Sampaio e Jards Macalé fizeram alguns esforços dignos; Arnaldo Baptista (se não fosse um caso clínico tão grave) foi o que chegou mais perto. No entanto, nenhum deles conseguiu bater a meta de loucuras artísticas de Tim Maia, o detentor do título: o Síndico redefiniu todos os limites de sensatez e independência artística com este álbum.


Em 1974, Tim Maia era um dos músicos mais consagrados da MPB: seus quatro primeiros discos – lançados pela Philips entre 1970 e 1973 – são registros do que se fez de melhor em termos de música Soul no Brasil. A fina flor do cancioneiro do Síndico se tornou a trilha sonora de muitos casais apaixonados e que gostavam de dançar por aí e fez do gordinho Sebastião Rodrigues Maia, ex-presidiário, ex-suburbano carioca, ex-companheiro de banda de Roberto e Erasmo um astro da canção brasileira. Em suma: Tim era um músico de sucesso, amado pelo público e sentindo os prazeres e armadilhas do sucesso.
No início de 1974, Tim saiu da Philips e foi contratado pela RCA a peso de ouro para que gravasse um álbum duplo (o Brasil queria abocanhar aquela tendência de mercado, pegando carona no sucesso dos vinis rechonchudos que Elton John e os Rolling Stones – para não citar outros – tinham lançado há pouco tempo). Porém, a relação conflituosa do astro brasileiro com as drogas e a bebida, somando-se às desilusões amorosas constantes, fez com que ele fosse em busca da paz e do conforto que nenhum narcótico conseguiria lhe oferecer. Ao ler um dos livros da seita Universo em Desencanto, Tim Maia decidiu que o caminho para se livrar de todos os conflitos que lhe desesperavam era se convertendo à seita de Manoel Jacintho Coelho, grão mestre daquele rebanho localizado em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.


De acordo com aqueles preceitos religiosos, o mundo estava magnetizado por forças maléficas. Para que encontrássemos a salvação (via imunização racional), era preciso acreditar na existência e no poder de um Racional Superior, abolir todas as cores do vestuário em prol do branco e se livrar de todos os excessos de uma vida materialista. Com isso, Tim abandonou as drogas e a bebida, emagreceu consideravelmente e cortou suas longas madeixas ao estilo Black Power, que eram a sua marca registrada. O resultado deste processo foi Racional, um álbum espetacular, com um artista no auge da sua forma vocal (graças ao fato de ter dado uma pausa na bebida e nas drogas), mas no apogeu de sua criatividade em relação ao discurso. “Bom Senso”, a terceira faixa do disco, é o melhor exemplo deste fato:



Já virei calçada maltratada
E na virada quase nada
Me restou a curtição

Já rodei o mundo quase mudo
No entanto num segundo
Este livro veio à mão

Já senti saudade
Já fiz muita coisa errada
Já pedi ajuda
Já dormi na rua

Mas lendo atingi o bom senso
Mas lendo atingi o bom senso
A imunização
Racional

Racional é um trabalho fenomenal no que diz respeito à qualidade musical: os músicos da banda (proibidos por Tim de consumir qualquer tipo de droga) produziram acordes memoráveis e repletos de groove ao lado de um band leader instintivo e de uma inteligência musical ímpar. Funk e Soul se irmanam intensamente com o canto do Síndico em uma simbiose jamais ouvida em seus discos da fase Philips. Por outro lado, o disco é repleto de letras panfletárias, de gosto explicitamente duvidoso e que revelam um esoterismo barato, beirando o tosco (4 das 9 faixas do álbum possuem o termo “racional” no título das canções e quase todas elas pedem para que os ouvintes leiam o livro da seita liderada por Manoel Jacintho Coelho).


Basicamente, a música era incrível, porém o discurso era (infelizmente) de baixa qualidade: apesar de Tim Maia ter largado o vício em comida, álcool e narcóticos, a religião revelara-se como mais uma de suas compulsões – a ferocidade de sua obsessão tinha um outro viés, tão devastador quanto o de alguém que necessitava largar o crack ou a heroína…
Um exemplo da fúria santa de Tim Maia: no auge de seu fervor esotérico, o autor de “Azul da Cor do Mar” e “Réu Confesso” decidiu assinar suas criações como “Tim Maia Racional” e exigiu que todos os músicos que trabalhavam com ele se convertessem ao Universo em Desencanto. A banda foi rebatizada de Seroma Racional e todos os instrumentos musicais deveriam ser pintados de branco. Ingestão de carne vermelha e praticar sexo sem o intuito de procriar estava completamente fora de cogitação. Tim finalmente atingira o ápice de sua maluquice enquanto membro da seita de Belford Roxo: as consequências de sua doideira não tardariam a aparecer…
Quando os executivos da RCA tomaram conhecimento das loucuras religiosas de Tim Maia, decidiram remover o contrato com o artista. Tim aceitou o rompimento com a condição de que levasse consigo todas as bases do disco duplo que já estavam gravadas e que se encontravam em poder da gravadora. Com o sinal verde dos homens de terno e gravata, o Síndico lançou seu quinto álbum de maneira independente através do selo SEROMA (cujo nome veio das primeiras sílabas de Sebastião Rodrigues Maia, nome de batismo do cantor) e fez história na música brasileira como um dos primeiros artistas do mainstream musical brasileiro a lançar um disco de forma autônoma em relação às grandes gravadoras. Racional chegou a ter duas sequências: Racional, Vol. 2 veio a público apenas em 1976, provavelmente porque havia uma enorme dificuldade de Tim para prensar e distribuir o disco. No final da década de 1990, depois que o Síndico já havia morrido, as master tapes de Racional, Vol. 3 foram encontradas e só chegaram aos ouvidos dos fãs em 2011, graças a uma iniciativa conjunta de Carmelo Maia (filho de Tim), Kassin e o falecido maestro/arranjador Lincoln Olivetti em uma parceria entre a Sony Music, a Vitória Régia (da família Maia) e a editora Abril.


Tim Maia pagou um preço altíssimo por sua vontade intensa de autonomia em relação ao mercado: Racional foi sumariamente ignorado pela crítica e pelo grande público na época – ironicamente, esta fase é uma das mais admiradas e veneradas pelos fãs do Síndico. Os shows começaram a ficar vazios e a minguar dramaticamente. A grana e o sucesso desapareceram em um estalar de dedos. No momento enquete o fracasso finalmente encontrara as portas de Tim, descobriu-se que Manoel Jacintho Coelho era um charlatão descompromissado com a fé alheia e interessado apenas em dividendos financeiros. Como consequências, o Síndico decidiu se “magnetizar” novamente e a obra religiosa de Sebastião Rodrigues Maia tornou-se eternamente amaldiçoada pelos olhos de seu criador e foi eternamente renegada enquanto ele esteve vivo.



Racional é o momento mais criativo e polêmico da discografia de Tim Maia. A viagem místico-musical do Síndico merece nossa audição, mas não deve ser levada a sério por se tratar da maior maluquice musical que um artista brasileiro realizara em vida. Tim não deve em nada a um pastor negro norte-americano em termos vocais, porém as letras paupérrimas que pregava a nossa leitura dos mais de 1000 livros da seita Universo em Desencanto. O disco traz um conceito confuso, mas a sobriedade vocal do maior artista negro da música brasileira o coloca também como a maior voz gospel surgida neste país: se os cantores evangélicos ou os padres que se arriscam como cantores que adoram pregar a chamada “palavra de Deus” buscassem inspiração no som produzido por Sebastião Rodrigues Maia, a qualidade do que se ouve por aí seria muito melhor – principalmente porque uma canção como “Imunização Racional (Que Beleza)” nós dá a impressão de que foi gravada anteontem. Este trabalho é a prova mais cabal que a loucura também consegue produzir coisas belas de se ver e também de se ouvir…

14 de março de 2017

TROVA # 114

UM MANTO AZUL & BRANCO PARA UMA NAÇÃO FERIDA


"Salve o samba, salve a santa, salve ela
Salve o manto azul e branco da Portela
Desfilando triunfal sobre o altar do Carnaval"

(Paulo César Pinheiro & Mauro Duarte na voz de Clara Nunes)


O carnaval de 2017 finalmente acabou. Aqui na terra da garoa, começou com um final de semana de antecedência e acabou bem depois do domingo após a quarta-feira de cinzas com muito custo. Os festejos carnavalescos sempre foram negócio sério por aqui: o Nordeste ferve ao som do frevo e do axé, enquanto o Rio de Janeiro e São Paulo são animados pelos blocos de rua, bailes e os desfiles das escolas de samba, por exemplo. Apesar da seriedade, nunca fui um folião, digamos, característico: minha falta de apreço por multidões e meu gosto musical incomum me causavam um certo desprezo por esta época do ano.
Venho, com muito orgulho, de uma família de foliões. Meus pais são apaixonados pelos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro – meu pai, por exemplo, sempre ganha de presente de aniversário o CD com os sambas-enredo que vão cruzar a Sapucaí no ano seguinte todo mês de dezembro; facilitando muito a minha vida, pois o Sr. Orlando faz anos no último mês do ano, época na qual os meus neurônios já deixaram de funcionar normalmente. Meu avô materno sempre levava os filhos para assistir aos desfiles da janela do escritório dele na esquina da Av. Rio Branco na época em que o sambódromo nem sequer existia.
O samba sempre teve seus pés no protesto e nos ideais de libertação do indivíduo. Por isso, o carnaval não deixa de ser uma festa política e de celebração dos prazeres da carne sem restringir classes sociais, etnias ou sexualidade. Como consequência dos últimos acontecimentos no Brasil, os festejos de rua cresceram assombrosamente nos últimos anos. São Paulo, por exemplo, tem vivenciado o florescimento dos blocos carnavalescos e da irreverência dos foliões dispostos a festejar e a protestar contra o status quo. A diversidade, por outro lado, tem marcado as agremiações de rua do Rio de Janeiro, cantando e tocando canções do repertório clássico do samba até as eternas criações do rock ‘n’ roll a plenos pulmões.
Em meio à crise econômica e política que o Brasil tem vivido, a quantidade de pessoas indo às ruas protestar contra o governo golpista e ilegítimo foi tão expressiva que nem as principais redes de TV conseguiram esconder os gritos de “Fora Temer” em rede nacional. A disposição das pessoas para festejar em meio à crise é de fazer vista ao mundo inteiro. Enquanto a Terra da Garoa fervia com os blocos carnavalescos de todos os tipos – os Beatles, Rita Lee, Caetano Veloso, David Bowie, Gal Costa e Beth Carvalho foram alguns dos homenageados –, a Portela reinou soberana durante o carnaval da Cidade Maravilhosa depois de 47 anos sem levar o título para Madureira.
Apesar de não ser uma pessoa necessariamente religiosa, fiz meu pedido em oração para que os foliões fossem protegidos durante os festejos. Infelizmente, não foi o que ocorreu: os relatos de furtos e assaltos eram sem fim (um primo meu teve a infelicidade de ter DOIS celulares roubados no Rio de Janeiro!), as histórias de violência contra mulheres extrapolaram os limites do suportável – a cada três minutos, uma mulher foi agredida –, as ruas de São Paulo eram desocupadas com a truculência, a agressividade e a conivência de um prefeito que se diz preocupado com as belezas da cidade.
Em relação às violências sofridas pelas minorias, duas histórias ocorridas durante o período de carnaval me horrorizaram por completo. A primeira foi o habeas corpus concedido pelo STF ao goleiro Bruno, acusado e condenado de matar, esquartejar e ocultar o cadáver de Eliza Samúdio, mãe de seu filho. O fato de nossa Suprema Corte privilegiar ricos e poderosos já não me causa tanta espécie hoje em dia, porém a reverência de torcedores e clubes de futebol ao ex-craque do Flamengo me surpreenderam bastante: ele recebeu ofertas de clubes de futebol e pedidos de selfies com  torcedores e marias chuteiras (?!). A prova de que o brasileiro médio é fã de bandidos endinheirados como Bruno e Eike Batista é concreta, abençoada pelo GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) e digna da minha náusea mais intensa e sincera.
A segunda história que me tirou do sério foi o assassinato brutal da travesti Dandara dos Santos, espancada por vários homens. O fato da transexual ter entrado para as estatísticas, infelizmente, não me surpreendeu, pois vivemos sob a égide de uma barbárie permanente. O dado que me deixou perplexo foi que o crime foi filmado por um dos agressores: Dandara implorava pela vida, enquanto seus algozes não hesitavam em agredi-la mais e mais. Não bastava bater, era preciso agredir, assassinar e filmar para que houvesse uma prova de afirmação da homofobia travestida com a desculpa de que o homem heterossexual é superior aos que não estariam no mesmo patamar que o dele. A travesti foi tratada com a indiferença dos grandes meios de comunicação, não foi notícia nas primeiras páginas dos jornais, mas foi objeto de comoção daqueles que estão fartos de serem tratados com desdém pelas maiorias.
Quando Clara Nunes ganhou “Portela na Avenida” de presente do marido Paulo César Pinheiro e do violonista Mauro Duarte, ela ficou comovida com a comparação das alas da Portela com o manto azul e branco de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Minha esperança é que este manto sirva não apenas para dar a proteção necessária à escola de samba de Madureira, como também sirva para guardar nosso país tão ferido de valores, de respeito e de compaixão dos males dos reacionários de tocaia e de plantão...