(meu
apreço e minha inveja do lendário Solar
da Fossa)
A partir da segunda metade da década de
1960, a expressão “estar na fossa” adquiriu um sentido distinto do original, ou
seja, nada a ver com desilusão amorosa. Tudo isso ocorreu graças a um lendário
casarão convertido em uma suntuosa pensão que abrigou a nata da arte, do
pensamento da cultura do Brasil daquele período. A Pensão Santa Terezinha, mais
conhecido como Solar da Fossa, foi moradia de artistas e intelectuais antenados
e engajados do porte de Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Ruy
Castro, Naná Vasconcellos, Sueli Costa, Tim Maia, Maria Gladys, Aderbal Freire
Filho, Jards Macalé, Antônio Pedro, Zé Kéti, Abel Silva e mitos outros antes de
alcançarem o reconhecimento e a fama.
Paulinho da Viola em frente ao portão principal do Solar da Fossa na capa de seu disco de 1971
Se eu pudesse pegar o Delorean dos meus
sonhos e voltar ao ano de 1967, eu faria questão de passar uns dias no Solar da
Fossa depois de negociar minha estadia por um precinho bem bacana com D. Jurema
Cavalcanti, a administradora da pensão. Poderia tomar um copo de uísque e
trocar algumas figurinhas com meu amado mestre Ruy Castro sobre música,
literatura e jornalismo. Teria a chance de ouvir Caetano Veloso e Paulinho da
Viola cantarem “Alegria, Alegria” e “Sinal Fechado”, dois clássicos da música
brasileira pela primeira vez. Conheceria o talento imortal de Zé Rodrix, Tim
Maia e de Guarabyra em início de carreira. Assistiria a um show gratuito de
Naná Vasconcellos e seus batuques inconfundíveis no meio do quintal da pensão.
Viveria o deslumbre das belezas juvenis de Gal Costa, Darlene Glória, Maria
Gladys, Betty Faria e Ítala Nandi. E, por fim, poderia xeretar os
relacionamentos amorosos nada discretos de Zé Kéti e Antônio Pedro durante o
meu tempo livre.
O principal celeiro da intelligentsia carioca da época foi
eternizado pelo jornalista Toninho Vaz em Solar
da Fossa: um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias,
publicado em 2011 pela Editora Casa da Palavra. Neste livro, o biógrafo de
Torquato Neto e Paulo Leminski conta como o lendário casarão de Botafogo se
tornou tão conhecido através de centenas de depoimentos de ex-moradores
(ilustres ou não) do Solar da Fossa. Uma leitura deliciosa, que acendeu ainda
mais minha vontade de ter sido um jovem nos anos 1960 só para poder “estar na
fossa”.
Infelizmente, a história do Solar da
Fossa teve os seus altos e baixos, tal qual a trama de qualquer novela global: as
disputas judiciais entre Frederico Mello, o arrendatário do casarão e dos
terrenos e os proprietários do imóvel renderam longas batalhas nos tribunais,
deixando as vidas de várias pessoas em um limbo de incertezas. A guerra entre
Mello, Jurema Cavalcanti, os moradores e os donos do imóvel se findou em 1971
quando a justiça determinou que todos deveriam ser despejados da pensão sob
escolta policial.
Pouco tempo depois, o Solar da Fossa
foi demolido para dar início à construção do Shopping Rio Sul, um dos maiores
templos de consumo da Zona Sul carioca. Era o encerramento de mais um capítulo
das batalhas entre liberdade e capital, entre o conservadorismo da direita
elitista e o sentimento libertador das esquerdas do período, entre a ditadura
militar e a intelligentsia disposta a
resistir contra o regime de exceção. A demolição do casarão e o não-tombamento
pelo patrimônio histórico-cultural do Rio de Janeiro é mais um exemplo de que nossa
tradição em renegar nossa história é muito maior do que o instinto de
preservá-la.
Por outro lado, nem a ditadura, nem os
paladinos do capitalismo, tampouco os militares xucros que comandaram o Brasil
por mais de 20 anos conseguiram que a história do Solar da Fossa fosse legada
ao esquecimento. Afinal, é impossível demolir os edifícios da memória de quem
viveu um momento histórico tão significativo para a história da humanidade como
foi a segunda metade da década de 1960. Para aqueles, a fossa sempre será
libertadora e ensolarada...
Não creio na existência de alguém
mais produtivo e criativo na história do Rock do que o Sr. Neil Percival Young:
são mais de quarenta álbuns em cinco décadas de atividades musicais
ininterruptas. Dentre os títulos mais expressivos de sua ampla discografia, estão
os três álbuns que compõem a chamada Ditch Trilogy(em português: Trilogia do Fundo do Poço): o ao vivo Time Fades Away(lançado
em 15 de outubro de 1973), o irrepreensível On the Beach (lançado em 16 de julho de 1974) e o sombrio Tonight’s the Night(lançado
em 20 de junho de 1975).
Apesar de ter desfrutado de enorme (e
surpreendente) sucesso com o belíssimo álbum Harvest (1972), Neil
Youngvivia
momentos de profunda tristeza e desespero em meados dos anos 1970: seu
relacionamento com sua namorada na época e mãe de seu primeiro filho, a atriz
Carrie Snodgress, estava em frangalhos e próximo do fim; Danny Whitten,
ex-guitarrista da Crazy Horse (banda que acompanha o cantor e compositor
canadense nos palcos até hoje), morrera de uma overdose de heroína no início da
década; Bruce Berry, roadie e amigo
pessoal de Neil fora encontrado morto por abuso de drogas em junho de 1973,
completando o círculo de tragédias pessoais que rondavam o artista. Em meio a
tantas notícias ruins, o autor de “Heart of Gold” abusava dos limites de seu
organismo ao consumir toda espécie de narcóticos para aliviar toda a dor e o
sofrimento, enquanto compunha e produzia com um fervor impressionante.
Último dos três títulos da Ditch Trilogya vir a públicoTonight’s the Night, na verdade, foi o primeiro dos três álbuns a ser produzido. As sessões
de gravação que geraram mais de 80% das canções do disco foram realizadas por
Neil e os músicos do Santa Monica Flyers (Ben Keith – Guitarra / Nils Lofgren –
Piano e Guitarra / Billy Talbot – Baixo / Ralph Molina – Bateria) em Hollywood
entre agosto e setembro de 1973. As demais faixas foram gravas entre março de
1970 e dezembro de 1973 no Broken Arrow Ranch (propriedade particular de Young
localizada em Redwood City, California, EUA) e em uma apresentação ao vivo
feita em Nova York. No entanto, o álbum levou mais de um ano para ser lançado
graças a uma decisão tomadas em conjunto por Neil Young e sua gravadora, a
Reprise.
Os motivos que devem ter feito com
que Tonight’s
the Night levassem tanto tempo para ser lançado são plenamente
compreensíveis: trata-se da coleção de canções mais pesadas (no sentido
psíquico do termo) que um artista jamais poderia ter lançado. A ilustração da
capa mostra um Neil Young morbidamente retratado em preto e branco, envolto em
um mar de sombras com pouquíssimas (ou nenhuma) chances de encontrar a
redentora luz no fim de um infindável túnel de sofrimento. Neil escreveu para
este disco os retratos mais cruéis de sua desilusão com os dias pós-movimento
hippie, nos quais o idealismo da Contracultura tornou-se uma utopia sem fim. As
mortes dos amigos Whitten e Berry fizeram com que as letras fossem influenciadas
pela depressão daquele que sobreviveu para testemunhar o desaparecimento
repentino de seus pares.
Os versos de “Mellow my Mind”, canção
gravada pelo grupo inglês Simply Red no final da década de 1990, resumem com
perfeição o espírito depressivo de Tonight’s the Night:
I’ve been down the road
and I’ve come back
Lonesome whistle
on the railroad track
Ain’t got nothing on those feelings
That I had.
A canção que dá o nome ao sétimo
álbum solo de Neil Young recebeu duas versões e são elas que aparecem como
primeira e última faixas do disco. Neil faz uma ode para o recém-partido Bruce
Berry, relatando um episódio típico da rotina corriqueira e cansativa da
estrada:
Well, late at night
when the people were gone
He used to pick up my guitar
And sing a song in a shaky voice
That was real as the day was long.
A quinta faixa de Tonight’s the Nightfoi
gravada de um trecho de um show de Neil Young com a Crazy Horse no lendário
Fillmore East, casa de shows situada em Nova York, realizado em março de 1970.
Neil divide os vocais de “Come on Baby, Let’s Go Downtown” com Danny Whitten
(homenageado pelo compositor canadense em uma das mais belas faixas de Harvest,
“The Needle and The Damage Done”), canção que expõe as mazelas do vício em
drogas, ignorando qualquer possibilidade de diversão:
Sure enough,
They’ll be sellin’ stuff
When the moon begins to rise
Pretty bad when
you’re dealin’ with the man
And the light shines in your eyes.
Em meio à solidão inevitável de um
sobrevivente que segue seu caminho sem encontrar nenhuma espécie de amor, Neil
Young deixa bastante evidente a sua necessidade de falar, de forma que ele
possa expor seus conflitos e encará-los frente a frente. “Speaking Out”,
segunda faixa do álbum, trata justamente deste fato:
I’ve been a searcher, I’ve been a fool
But I’ve been a long time comin’ to you
I’m hopin’ for your love to carry me through
You’re holdin’ my baby, and I’m holdin’ you
And it’s all right.
No entanto, viver em um mundo
completamente tomado pela dor e pela melancolia tornou-se uma tarefa
extremamente dolorosa para Neil Young na primeira metade da década de 1970.
“World on a String” e “Borrowed Tune” (terceira e quarta faixas de Tonight’s the Night) apontam a ausência de esperanças em um momento de plena exaustão, de
crise desesperadora, na qual a música dos Rolling Stones serve de inspiração
para combater a solidão reinante:
It’s not all right
to say goodbye,
And the world on a string
Doesn’t mean a thing.
(“World on a
String”)
I’m singin’ this borrowed tune
I took from the Rolling Stones,
Alone in this empty room
Too wasted to write my own.
(“Borrowed
Tune”)
“Lookout Joe”, gravada em dezembro de
1972, é um encontro de Neil Young com o grupo The Stray Gators, que participou
das gravações de Harvest. As guitarras em fúria de Neil e de Ben Keith
encontram os pianos do tecladista e arranjador Jack Nitzche, resultando em uma
das melhores faixas de Tonight’s the Night. A letra elenca típicos personagens junkies em uma tragédia pós-hippie
(“a hip drag queen”, “a side walkin’ streetwheeler”, “Millie from down in
Philly” e “Bill from up the hill”) que parecem ter saído do universo de sexo,
drogas e paranoias ilusórias tão bem cunhadas por Lou Reed em Transformer
(1972). Se, em certos momentos, Reed optou por um olhar paródico-corrosivo do
underground, Young estilhaça sem dó o saudosismo em acordes furiosos de
guitarra:
Lookout Joe, you’re comin’ home
Old times were good times
Old times were good times.
Neil ao lado da Crazy Horse em 1975
Ao ouvirmos as canções do sétimo
álbum de Neil Young, temos a impressão de que ele não apenas possuía o desejo
de prestar um tributo aos que foram embora cedo demais por causa das drogas,
como também era um pedido de socorro ou um alerta aos ainda presentes de que
havia perigos implacáveis a nos espreitar. “Tired Eyes”, a penúltima faixa de Tonight’s the Night, versa sobre este conflito:
Well, it wasn’t
supposed to go
down that way
But they burned his brother,
you know,
And they left him lying
in the driveway.
They let him down with nothin’
He tried to do his best
but he could not.
A saída para os conflitos e o
sofrimento, de acordo com Neil Young, consiste em colocar o pé na estrada,
fugir das tentações e sair em busca do tão cobiçado conforto nos braços da
pessoa amada ou na independência tão desejada. “New Mama”, “Roll Another
Number” e “Albuquerque” são exemplos dos quais Neil parece ir em busca de um
idílio em meio à loucura inevitável:
New Mama’s got a sun in her eyes
No clouds are in my changing skies
Each morning when I wake up to rise
I’m livin’ in a dreamland.
(“New Mama”)
It’s too dark
to put the Keys
in my ignition,
And the mornin’ sun is yet
to climb my hood ornament.
But before too long I might
see those flashing red lights
Look out, mama,
‘cause I’m comin’ home tonight.
(“Roll
Another Number”)
I’ve been flyin’
down the road
And I’ve been starvin’ to be alone,
And independent from the scene
that I’ve known
Albuquerque.
(“Albuquerque")
O disco se encerra com a segunda
versão de “Tonight’s the Night”, que chega a ser ainda mais pesada do que a
versão da abertura. Podemos interpretar esta escolha de Neil como um exemplo de
que a vida é feita de círculos que repetem a mesma série de conflitos e
fantasmas a nos assombrar intensamente. O testemunho musical oferecido por Neil
Young aponta um beco com pouquíssimas saídas, entretanto ainda existe beleza em
meio a dor e ao sofrimento que brotam das trevas e da escuridão.
Para que você, leitor e ouvinte,
possa desfrutar de tudo isto, ouça abaixo Tonight’s the Nighte
embarque na noite sem fim de Neil Percival Young, um dos músicos mais
brilhantes da história do Rock.
Para Ciça Carvalho, uma das fortalezas que me inspiram “Sim, minha força está na solidão. Não tenho
medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também
sou o escuro da noite.”
(Clarice Lispector)
Desde que a vida começou a me ensinar
as lições mais amargas da existência que eu ouço o velho e surrado ditado: “Após
a tempestade, vem a bonança”. Apesar de sempre carregar uma pontinha de
otimismo dentro de mim, sempre odiei chuvas – as verdadeiras e as simbólicas. O
desconforto se sente no corpo e na alma, todavia só construímos nossas
fortalezas depois de muitas crises e sem direito a sombrinha ou guarda-chuva
para nos reconfortar.
Tempestades são cursos intensivos de
aprendizagem e autoconhecimento, pois nos ensinam a juntar os cacos de mundos
que são desfeitos com a agressividade do vento e dos raios. Tempestades nos
fazem aprender sobre a importância da dor e do sofrimento para cada um de nós. Tempestades
são dolorosamente necessárias, pois são instrumentos de amadurecimento.
As intempéries doem simplesmente pelo
fato de que não possuem tempo determinado para acabar: podem durar minutos,
horas, dias, anos ou uma vida inteira. No entanto, sempre haverá o momento no
qual o frio passa e o céu se abre para que tudo se renove, se transforme e
novos caminhos se abram. Nem sempre as trilhas são lógicas. As trilhas nunca são
em linha reta. Porém, elas nunca falham. E, por isso, devemos sempre agradecer
aos astros por cada coisa boa e ruim que nos acontece.
Sempre me julguei uma pessoa forte. No entanto,
ao tomar conhecimento da vida de uma de minhas amigas, concluí de que preciso
de muito arroz, feijão e experiência de vida para ter metade da força que ela
tem. Minha amiga é uma verdadeira fortaleza: sempre disposta a superar seus
próprios limites, é corajosa, determinada, guerreira e dona de uma gargalhada
inconfundível. Mãe coragem, profissional dedicada e sempre aberta ao
aprendizado. Vítima do mal que assola milhares de brasileiras, foi vítima de violência
de um antigo companheiro. Tem expiado a dor e a decepção se mostrando ainda
mais forte por dentro, mesmo que fragilíssima por fora e sem se esquecer de seu
belo sorriso. E ainda consegue tempo para participar de uma bateria de um bloco
de Carnaval.
Já que falei de festividades, os dias
de fevereiro são geralmente de bastante celebração por causa do Carnaval que
arrasta milhões de pessoas para as ruas de todo o Brasil. Ótima oportunidade
não apenas para deixar nossos dilemas de lado, como também é um momento e tanto
para exorcizar nossos demônios e protestar contra o que existe de mais torto em
matéria de política neste país. E, em meio ao calor acachapante do verão
brasileiro, a chuva que cai nas nossas costas é sinal de refresco e de
purificação.
Este Vinícius que vos escreve, hoje tão
avesso aos excessos carnavalescos (calor e muita gente não me fazem bem!), pede
ao Rei Momo para que muitas pessoas se animem a pular, dançar e cantar o Carnaval
a São Pedro para que muita chuva seja enviada para as terras de cá. Afinal de
contas, promessas de vida são precisas para que as fortalezas humanas floresçam
e resistam diante das tempestades que vem por aí...
Desde que ouvimos os anúncios de que o
terceiro álbum de Tulipa Ruiz já estava a caminho, criou-se um tremendo frisson
nas redes sociais em torno da questão da velha e batida questão “será que este
álbum vai superar o anterior?” que estamos enfastiados em ter que ler e
responder.
Para os ouvintes que agiram como
abelhas atentas do pólen musical deixado por Tulipa após os cultuados álbuns Efêmera (2010) e Tudo
Tanto(2012), não ficaram
muito surpresos com os rumos musicais que a cantora decidiu trilhar em seu
terceiro CD. O single “Megalomania” e o EP Tulipa Ruiz Remixes já eram pistas
claríssimas de que a flor cantante iria fazer como David Bowie fez conosco em
1983 e iria literalmente colocar a gente para dançar…
Sejamos diretos ao assunto: Dancê (2015), como diz o título, é um CD
para o ouvinte bater o pé, tirá-lo do chão, mexer a cabeça de um lado para o
outro e sair dançando, embarcando na levada loucamente musical (Sorry, Ivete!)
para a qual Tulipa nos convida, sem deixar de nos fazer refletir em uma série
de coisas, tal qual em “Prumo”, faixa de abertura do disco, assinada por ela em
parceria com Gustavo Ruiz:
Começou
Agora você vai tomar conta de si
Das tuas minhocas, caraminholas,
das encucações, dos teus pepinos
Das pérolas, das abobrinhas,
dos abacaxis, dos nós, dos faniquitos.
Se você está na dúvida se ouvir o CD
realmente vale a pena ou não, Dona Tulipa e banda enviam um recado muito claro
para os indecisos em “Reclame” (Tulipa Ruiz, Gustavo Ruiz, Caio Lopes, Marcio
Arantes e Luiz Chagas):
Trato azedume, mau-olhado, ‘quebrante’, vício
Trato treta de trabalho
Trabalho com amarração
Resolvo o seu problema com baralho, com pôquer,
bingo
Pra bituca de cigarro eu tenho a solução
Trago seu amor de volta se me fizer uma visita
A gente faz uma combinação, você acerta e acredita
No duro, dá certo
Nunca houve reclame.
Enquanto bailamos entre sons de metais
e brasa e acordes de guitarra capitaneados por Luiz Chagas e Gustavo Ruiz,
Tulipa segue disparando seu arsenal de provocações aos ouvintes de Dancê. “Jogo do Contente”, outra parceria
dela com Gustavo, traz uma sequência interessante de cutucadas àqueles que
insistem em viver dentro de uma determinada zona de conforto:
Todo motivo te leva a querer
Todo querer te faz ter vontade
Toda vontade te faz ter impulso
Todo impulso sempre me estimula
Toda sequência tem uma rotina
Toda rotina te causa estrago
Todo estrago merece um conserto
Todo conserto te modifica.
“Proporcional” questiona, com bom
humor, as diferenças entre as medidas das pessoas e aponta que não existem (ou
deveriam existir) obstáculos entre as diferenças:
Cada um tem seu formato
Apertado, colado, justo
Largo, folgado, amplo, vasto
Cheio, graúdo, forte, farto
Esguio, fino, compacto.
Visto GG, você P
Você P, eu GG
Visto GG, você P
Você P, eu GG.
“Expirou”, mais uma parceria dos
irmãos Tulipa e Gustavo Ruiz, traz a nostalgia de eventos dos quais não tivemos
a oportunidade de participar pelo simples fato de que ainda não vivíamos por
estas bandas. Alguns exemplos: os barulhentos festivais da canção brasileira
nos anos 1960 e 1970, São Francisco, Woodstock e a Swinging London, “Carcará”, “Aquele
Abraço” e “Divino Maravilhoso”, os Novos Baianos, as Dunas da Gal, FA-TAL e
Cantar, Itamar Assumpção e a Isca de Polícia, Grupo Rumo, Madame Satã são
apenas alguns exemplos de coisas que nós, nascidos após 1975, faríamos de um
tudo para ter ouvido e vivido na época de seu surgimento. Embalada pela
guitarra mítica de Lanny Gordin (que acompanhou Gal Costa em sua também mítica
turnê de 1971-72), Tulipa Ruiz saúda a alquimia dos mestres com o devido
respeito:
Sinto falta de um tempo que ouvi dos amigos
Tava escrito num livro
Tocou numa vitrola
Foi dançado, cantado, recitado, falado
Publicado, sentido, decupado, contado
Mas eu não tava ali
Quando é que a saudade daquilo que a gente não
viveu passa?
Se passa, parece que já foi, mas quando você vê
volta
Volta porque tem a sua cara, tem a ver com a sua
história.
“Elixir”, quarta faixa do disco, é um
petardo para uma sociedade que acorda com Prozac e dorme com Rivotril e
acredita que vive um fluxo extremamente natural de sua existência. Fruto de uma
noite em claro da própria Tulipa, a canção nos indica o sonho dourado de muitos
notívagos angustiados por aí:
Apaga, filtra, manera
Massageia o esqueleto
A cuca, a cabeça, a traqueia
Cotovelo do esqueleto
A lombriga, clavícula, pé e a costela do esqueleto
Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir
Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
E entra no estado zen.
Uma das faixas mais divertidas de Dancê é “Físico”, mais uma parceria de
Tulipa e Gustavo assumidamente inspirada no hit “Physical”, eternizado por
Olivia Newton-John em 1981. Para resgatar a sonoridade disco do início dos anos
1980, a trupe contou com a participação especial de Kassin, que tocou baixo,
guitarras e sintetizadores. O desejo de Tulipa Ruiz, ao contrário do que sugere
a tendência apontada pela estrela de Grease
e por pessoas obcecadas em viver relações baseadas somente em atributos
físicos, descreve alguém que vai além do que é obviamente esperado nas típicas
atrações sexuais:
Tudo que eu gosto tá em você
É puramente físico
(…)
O formato do nariz
Osso pontudo do pescoço
Lóbulo da orelha
Desenho da sobrancelha
Pintas pela pele
Pelos, tornozelo
Dedo, nuca, calcanhar, cabelo
Da boca pra fora
Fora de fora pra dentro
(…)
Você veio assim sem defeito.
“Old Boy”, décima faixa do disco, fala
sutilmente sobre a importância do viver com a certeza de que teremos um
aprendizado em relação ao que foi vivido. Em outras palavras: uma bela canção
sobre a morte, com versos singelos e uma interpretação sóbria de Tulipa:
Vai ter tempo de sobra
Mesmo sendo velho, sabe sobre tudo
Sempre pra valer
Volta e meia, cê volta
Nunca é tarde, pelas tantas recomeça
Vence em convencer
Não tem fim, nem começo
O agora é agora, voa
Já passou, olha, passou
E fica também na sua memória
Sempre você
O tempo e você.
O brilho de Dancê
também está nos convidados especiais que participam do disco. A elegância e a
jovialidade de João Donato fazem de “Tafetá” um dos momentos mais belos do
disco. Balada ao estilo do balancê inconfundível do criador de “A Rã” sem
deixar de incorporar o balancê frenético das produções musicais da flor
cantante, a faixa é uma ode à beleza masculina capitaneada pelos vocais em
canto e contracanto Donato e Tulipa, pontuados pelos metais, violão, percussão
e pelo piano fender rhodes em menos
de 4 minutos de duração:
Fino
Só você
Elegante
Sabe bem
Muito trato
Combinar
Na lapela
Tem o dom
Tem um padrão
Já que tem
Desenhado
Sabe usar
Tem casaco
Dégradé
Engomado
Tafetá
“Virou”, parceria de Tulipa Ruiz com
Felipe Cordeiro, Gustavo Ruiz, Manoel Cordeiro e Luiz Chagas, é uma colaboração
que contou com a participação de Felipe Cordeiro, dividindo os vocais com
Tulipa e de Manoel Cordeiro (pai de Felipe) que tocou guitarra na faixa. Os
versos do refrão já garantem a memorização do ouvinte já a partir das primeiras
audições de uma das faixas mais alegres de Dancê:
Era pra ficar no chão
Deu pé, decolou
Era pra ter sido em vão
Como é que durou?
Era pra ficar ali e por aí caminhou
Era pra ser menos sério
Mais cara-de-pau
Era para ser só nuvem e precipitou
Podia não ter dado em nada
Então como é que virou?
No entanto, a participação especial
mais intrigante de Dancê foi a do Metá Metá (Juçara Marcal – Voz, Kiko Dinucci
– Guitarra, Marcelo Cabral – Baixo, Sergito Machado – Bateria, Thiago França –
Sopros em “Algo Maior”, parceria de Tulipa Ruiz, com Gustavo Ruiz e Luiz
Chagas. As vozes fortíssimas e distintas de Tulipa e Juçara resultam na
sensação angustiante de uma tormenta que está a caminho, mas nunca chega – algo
típico para uma interpretação de um grupo de balé contemporâneo, com
coreografias típicas de Deborah Colker:
Tá pra nascer algo maior
que vá tirar do lugar as coisas que cismam em não
andar
Tá pra nascer algo maior
que tudo o que você já viu, leu, sentiu, soube ou
ouviu
Não sinta medo nem dó de ser feliz e se soltar,
de saber bem o que lhe convém
Tá pra nascer quem viva só,
pois de me,
myself and I já basta eu, você e nada
mais.
Ao ser encerrado com este épico de cinco
minutos e trinta e nove segundos, Dancê
deixa muito claro que Tulipa Ruiz não é uma cantora que segue os caminhos
óbvios já traçados pelo Pop e pela MPB recentes. Também revela um grande disco,
feito com inteligência acima do comum. E o melhor de tudo: ele consolida de vez
a parceria Tulipa Ruiz – Gustavo Ruiz, que tem um potencial gigantesco para já
constar no rol de parceiros célebres de nossa música como Marina Lima – Antonio
Cícero (irmãos e parceiros, tal qual Tulipa e Gustavo), Roberto Carlos – Erasmo
Carlos e tantas outras…
Enquanto isso, aproveite para afastar
os móveis da sala, abrir um espaço bem amplo para que você dar o play e colocar
Dancê para rodar na sua cabeça e sair
bailando sem a menor vergonha de dançar alegremente. Se Tulipa nos diz que um
bom estímulo pode nos trazer boas influências, deixe-se levar por este CD que,
para nós, já nasceu clássico.