“Some people
go to priests; others to poetry; I to my friends. The beauty of the world,
which is so soon to perish, has two edges, one of laughter, one of anguish,
cutting the heart asunder. If you do not tell the truth about yourself, you
cannot tell it about people.”
(Virginia
Woolf)
Estou longe de ser um tipo, digamos,
popular: não tenho um milhão de amigos, porém sou bastante grato a cada uma das
amizades que tenho e não posso deixar de agradecer aos que um dia me concederam
doces momentos em parceria. Afinal, devo muito do que sou hoje aos encontros e
desencontros que a vida me proporcionou em 30 e poucos anos de caminhada.
Quando era mais jovem, meu temperamento
forte, introspectivo e sensível contrastava com a tendência expansiva de
membros de minha família: eu vivia em meus universos paralelos que cabiam
dentro do meu antigo quarto, enquanto o mundo de meu irmão mais novo não cabia
dentro das quatro paredes de nosso velho apartamento, já que ele vivia na rua e
era uma das pessoas mais populares do pedaço, enquanto eu sempre colecionei os
frutos da minha impopularidade.
Amizades são como pontes: elas sempre
te levam para algum lugar, seja o destino final bom ou ruim. Quando há um
sentimento verdadeiro, podemos alcançar lugares infinitos dentro das relações
humanas. Por outro lado, no momento em que o interesse, a conveniência e a
falsidade entram em cena, falsos amigos possuem máscaras de péssima qualidade e
que, um dia, caem. Depois dos 35 anos de idade, busco relações mais sólidas,
maior qualidade de vida, amigos com a possibilidade de agregar algo de bom. Quero
um amigo inteiro e não pela metade.
Como eu sempre fui um ancião
aprisionado em um corpo de jovem, meu desconforto com o mundo diminuiu um pouco
quando fui para a Faculdade de Letras, um terreno supostamente livre de
preconceitos de quaisquer tipos. O fato de pessoas de variadas faixas etárias
estudarem juntas me fez sentir mais à vontade dentro da sala de aula, algo inédito
para mim até então. Carrego amizades, colegas e umas duas ou três paixões um
tanto secretas no meu convívio pessoal e dentro do meu peito até hoje.
Ao trocar o Rio de Janeiro por são
Paulo no início de 2006, pensei que não sobreviveria à mudança para uma cidade
tão diferente da minha terra natal. Consegui me adaptar completamente graças às
amizades que fiz e aos velhos companheiros que não me abandonaram apesar da
distância. Foi a partir da vida adulta que pude entender o sentido do ditado “Quem
tem amigos não morre pagão”.
O mundo da música, por exemplo, já nos
ofertou amizades inesquecíveis: John Lennon e Paul McCartney fizeram a trilha
sonora de várias gerações à frente dos Beatles. Mick Jagger e Keith Richards
colocaram os egos e às mágoas de lado em nome de mais de cinco décadas de
carreira dos Rolling Stones. Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes fizeram
de sua relação uma parceria que levou a música brasileira para o mundo inteiro.
Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Caetano Veloso e Gilberto Gil modernizaram a
canção brasileira graças a mais de 50 anos de amizade.
Estes exemplos nos mostram que amizades
genuínas sobrevivem a brigas, cobranças, disputas de ego, distâncias e o
próprio tempo. É preciso buscar inspiração nestas pessoas para que possamos
viver de maneira mais leve, alegre e plena. Isso acontece se tivermos amizades
que podemos contar nas pontas dos dedos ou um milhão de amigos...
No final da década de 1990, a indústria musical foi
impulsionada em fazer listas e mais listas das canções mais importantes do
século XX e do novo milênio que os americanos achavam que começava em 2000 - na
verdade, isso se daria apenas no ano de 2001. George Michael utilizou a
oportunidade para fazer um projeto diferente: um disco de covers com as canções
mais belas do século XX entitulado Songs from the
Last Century, lançado em dezembro de 1999.
Quarto disco de estúdio do Pop Star, Songs...foi
uma produção de George Michael feita em parceria com o lendário produtor Phil
Ramone, um dos fundadores da A&M Records e que já trabalhou em discos de
Frank Sinatra, Natalie Cole, Paul McCartney, Aretha Franklin, Burt Bacharach e
Billy Joel, para não citarmos outros. George decidiu reunir clássicos do jazz,
standards da canção americana e duas faixas mais recentes do universo Pop Rock
com direitos a orquestras e metais de big
band.
O número escolhido para a abertura de Songs...foi
a bela “Brother, Can You Spare a Dime?” (E. Y. "Yip" Harburg &
Jay Gorney), um dos maiores clássicos da grande depressão norte-americana. O contexto
da canção retrata um mendigo reclamando com o sistema político-econômico a
respeito do emprego perdido por causa da Crise de 1929. George Michael, ao se
apropriar destes versos, dirige sua crítica à indústria fonográfica com a qual
sempre brigou avidamente por causa de contratos profissionais.
Versão
de Bing Crosby
Versão
de George Michael
Duas escolhas surpreendentes de George Michael para
este projeto foram “The First Time Ever I Saw Your Face” (Ewan MacColl) e “I
Remember You” (Victor Schertzinger & Johnny Mercer). A primeira foi composta
no final da década de 1950, foi um grande sucesso na voz de Roberta Flack em
1972. George manteve o mesmo tom delicado e quase sussurrado utilizado por
Flack, o que contrasta com o tom grandiloquente do restante do disco. A segunda tinha sido gravada por nomes de peso
da música norte-americana como Dinah Washington, Doris Day e Sarah Vaughn – em Songs..., ouve-se apenas a voz do cantor
embalada pelo belíssimo som de uma harpa.
Versão
de Roberta Flack
Versão
de George Michael
Versão
de Sarah Vaughn
Versão
de George Michael
Do repertório da imortal Nina Simone, George selecionou a sexy “My Baby
Just Cares For Me” (Walter Donaldson & Gus Kahn) e a emblemática “Wild is
the Wind” (Dimitri Tiomkin & Ned Washington). A primeira foi gravada com um belo arranjo de metais,
enquanto a melancolia da segunda foi embalada por uma orquestra. A voz de
George Michael soa bastante contida, porém não menos emotiva, em ambas as
gravações – o que nos faz esquecer dos originais de Nina nem que seja por
alguns minutos.
“My Baby Just Cares for Me”
Versão
de Nina Simone
Versão
de George Michael
“Wild is the Wind”
Versão
de Nina Simone
Versão
de George Michael
Da safra mais recente de criações do século XX, uma
leitura jazzística surpreendente de "Roxanne" (Sting) e uma
regravação da balada "Miss Sarajevo" - originalmente gravada pelo
grupo U2 em dueto com o tenor Luciano Pavarotti. A primeira canção chegou a
ganhar um videoclipe gravado nas ruas do Red
Light District de Amsterdam, com personagens reais. As duas faixas em
questão foram escolhidas como singles
daquele trabalho, porém sem muito sucesso: Songs...é o único disco de George Michael até o final de
2016 a não alcançar o topo das paradas de sucesso britânicas.
Versão
do The Police
Versão
de George Michael
Versão
do U2 + Luciano Pavarotti
Versão
de George Michael
As três canções restantes do disco são clássicos
consagrados dos standards norte-americanos. “You’ve Changed” (Bill Carey &
Carl Fischer) é uma das assinaturas musicais mais marcantes de Billie Holiday. “Secret
Love” (Sammy Fain & Paul Francis Webster) se tornou conhecida do grande
público na voz de Doris Day. “Where or When”, por sua vez, é um dos maiores
clássicos dos musicais compostos pela dupla Richard Rodgers – Lorenz Hart.
George Michael fez versões bastante sensíveis para cada uma destas chansons d’amour, com muita elegância e
discrição, sem apresentar nenhuma nota dissonante.
Versão
de Billie Holiday
Versão
de George Michael
Versão
de Doris Day
Versão
de George Michael
Versão
de Ella Fitzgerald
Versão
de George Michael
George Michael ao lado do produtor Phil Ramone durante as gravações de Symphonica (2014)
Songs...se encerra com uma versão instrumental de “It’s All
Right with Me” (Cole Porter). É um belíssimo epílogo para um dos trabalhos mais
sensíveis de um dos cantores mais talentosos da música Pop. George Michael não apenas optou por caminhos óbvios para fazer um
grande disco de cantor, ele traçou um caminho bastante autêntico para a sua
carreira musical e gravou um dos discos mais bonitos da década de 1990. É um
trabalho que merece ser ouvido no volume mais alto do seu aparelho do som para que possamos compreender a
grandiosidade de um artista sensível e extraordinário e para que as gerações mais jovens conheçam 10 das canções mais belas do século XX.
Passem longe bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
(...)
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
(Carlos Drummond de Andrade, 1945)
O noticiário dos primeiros dias do ano
novo me traz a sensação de que 2017 seria, na verdade, 2016S, um modelo levemente aprimorado do ano teoricamente já
terminado, mas que ainda ecoa escandalosamente pelos nossos ouvidos, deixando
qualquer pessoa com um mínimo de sanidade política fora do prumo.
Os
paulistanos, por exemplo, são obrigados a conviver com as ações de marketing de uma gestão municipal que
pretende embelezar a cidade ao torná-la fria e acinzentada, sem as cores
quentes e vivas do grafite de vários de seus muros. A arte de rua, com seu
discurso abertamente anárquico, está sendo sufocada por um oportunismo com
ampla cobertura da mídia golpista e enquanto milhares de cidadãos não conseguem
sequer adquirir remédios, por exemplo.
Em menos de um mês da troca de poderes
municipais, minha náusea já se faz presente, enquanto o nobre prefeito se
traveste com os figurinos mais bizarros (lixeiro, pintor de muros, cadeirante)
para fazer proselitismo eleitoral e ignorar a natureza genuína dos problemas de
São Paulo.
*
Nos primeiros dias de 2017, o Rio de
Janeiro ainda padece com a crise das finanças do Estado. Dentre todas as
instituições sucateadas pelo governo de Luiz Fernando Pezão, uma delas me deixa
em pânico: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), impossibilitada
de funcionar graças à falta de pagamento dos salários de servidores e
funcionários terceirizados. Sinto uma dor profunda na alma ao ver o
sucateamento de um dos locais que mais visitei no final da minha adolescência e
no início de minha vida acadêmica por conta da irresponsabilidade dos políticos
cariocas. O GAFE, evidentemente, faz pouco caso com a tragédia que se alastra pelo Rio de Janeiro. Náusea interminável...
Enquanto as elites econômicas
esbravejam clamando a privatização do ensino público, a Uerj agoniza em praça
pública e recebe o abraço desesperado da comunidade local para que o pior não
aconteça. Em menos de um mês do início de 2016S, o ilustríssimo senhor
governador ainda tenta sanar as dívidas de seu governo incompetente ao tentar
privatizar alguns dos bens da população para fechar o rombo financeiro.
*
Em uma pausa para o café de uma tarde
bastante ocupada de quinta-feira recebo a notícia chocante: o avião bimotor que
levava um Ministro do Supremo Tribunal Federal tinha caído no mar de Paraty
(RJ). O acontecimento trágico não teria me chocado tanto se o ocupante mais
ilustre da aeronave não fosse o Ministro Teori Zavascki, relator da Operação
Lava-Jato no STF. O magistrado já tinha recebido ameaças de morte por conta do
desdobramento das investigações de corrupção na PETROBRAS e tinha planos de
homologar dezenas de delações premiadas que colocariam centenas de políticos e
empresários atrás das grades.
Ao tomar conhecimento da morte do
Ministro Teori, o Brasil ficou com a suspeita de que o ocorrido não teria sido
uma mera fatalidade. Enquanto membros do governo golpista não deixaram de
demonstrar alívio com o suposto acidente, pois daria mais tempo para que os notáveis
pudessem se blindar contra as denúncias de corrupção. Em pouco menos de 20 dias
do início de 2017, a náusea diante dos ocorridos só aumenta...
*
Tenho o mesmo sentimento do sujeito
lírico do poema “A Flor e A Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, ao ver os anúncios
dos noticiários e ler as primeiras páginas dos jornais. Ainda estou à procura
de algo que possa nos redimir do tédio, do nojo e do ódio das coisas. Por isso,
em momentos de pura descrença e desespero, penso na figura de uma flor: quem
sabe ela nos remedia contra a náusea generalizada?
O ano
de 1972 foi bastante significativo para a chamada “Música Popular Brasileira”
graças a artistas que lançaram discos essenciais para qualquer um que aprecie o
que há de melhor em matéria de canção brasileira. Elis Regina é uma das
artistas que merecem sem lembradas não apenas pela qualidade de seu trabalho em
1972, mas por todos os serviços prestados pelas artes no Brasil.
No
entanto, Elis não era uma figura tão benquista no início da década de 1970 para
algumas pessoas no Brasil. Muitos entenderam suas declarações contra as
turminhas da Jovem Guarda e da Tropicália como reacionárias e retrógadas. Seu
temperamento explosivo e espalhafatoso lhe rendeu uma aura de diva – fato que
também era realçado pelo seu casamento com Ronaldo Bôscoli, um dos artífices da
Bossa Nova. Sua apresentação no Encontro Cívico Nacional, evento organizado
pelo governo militar em 21 de abril de 1972, regendo um coral de artistas que
entoaram o Hino Nacional Brasileiro foi um amargo passaporte para a galeria de
artistas que “apoiavam o regime”. Anos depois, ficou esclarecido de que a
Pimentinha estava sendo ameaçada pelos militares a fazer a tal apresentação
para que pudesse, enfim, dormir em paz e sem se preocupar com a possibilidade de
ser presa e/ou torturada.
A
esquerda e outros reacionários de plantão não hesitaram em levar Elis Regina
para o limbo dos artistas malditos por supostamente apoiarem o regime militar,
o que exigiu uma resposta imediata da cantora: seu repertório precisava ser
mais jovem, mais engajado, menos sisudo. Para a execução desta missão de honra,
a Philips (gravadora da Pimentinha na época) convocou Roberto Menescal para
produzir o disco e o talentoso pianista César Camargo Mariano para fazer os
arranjos. Elis tratou de operar o restante das mudanças necessárias: separou-se
de Bôscoli (desfazendo a parceria de trabalho com o marido e seu fiel
companheiro, Luiz Carlos Miéle), rompeu seu contrato com a Rede Globo de
Televisão e deu início à sua parceria (musical e amorosa) com César.
Elis, segundo disco de uma série de discos que levavam o primeiro nome
da artista na década de 1970, foi lançado em 1972. A partir deste disco, Elis
Regina sentiu-se finalmente livre para explorar limites nunca antes explorados
até aquele momento em sua carreira: sua interpretação tornou-se mais sóbria e menos
exagerada; seu repertório passou a ser mais ousado, mais diversificado, mais
juvenil, porém sem deixar de reverenciar o que há de melhor na tradição de
monstros sagrados da canção brasileira. Enfim, este é o primeiro disco que
reflete a virada musical da carreira da cantora mais importante do Brasil.
O time
de compositores jovens reunidos por Elis e Roberto Menescal para este álbum é
um verdadeiro escrete de talentos musicais invejáveis: Sueli Costa & Vitor
Martins, João Bosco & Aldir Blanc, Milton Nascimento & Ronaldo Bastos,
Fagner & Belchior, Zé Rodrix & Guarabyra, Chico Buarque & Francis
Hime, Ivan Lins & Ronaldo Monteiro de Souza, Zé Rodrix & Tavito… Além
de uma faixa inédita de Tom Jobim, o repertório deste disco se compõe também de
regravações de dois clássicos da nossa Era do Rádio: “Vida de Bailarina”
(Américo Seixas – Dorival Silva) e “Boa Noite Amor” (José Maria de Abreu –
Francisco Matoso).
Elis Regina ao vivo no Teatro da Praia (RJ) em 1972
Veja a tracklist do disco, com uma breve explicação para cada faixa e entenda o
porquê deste trabalho de Elis ser considerado um verdadeiro clássico da música
brasileira:
1) “Vinte
Anos Blue” (3:11) - Parceria da cantora e pianista Sueli Costa com o
letrista Vitor Martins (que se tornaria célebre graças a sua parceria musical
com Ivan Lins anos mais tarde), esta canção é uma balada melancólica que ganha
uma força bastante significativa na voz de Elis, que tinha 27 anos ao gravar
este clássico. O disco abre com a constatação de que a voz que canta já passou
de seus 20 anos de idade e que existe uma série de “perguntas sem respostas”… O
piano de César Camargo Mariano e o arranjo de cordas que surge ao final da
canção conferem a esta gravação uma melancolia típica do Brasil de 1972.
2) “Bala
com Bala” (3:12) - Elis Regina já era conhecida em 1972 como uma verdadeira
caçadora de jovens talentos musicais. Neste disco, não foi diferente ao lançar
uma nova dupla de compositores: o engenheiro, cantor e compositor João Bosco e
seu parceiro, o letrista e psiquiatra Aldir Blanc. “Bala com Bala” é um jazz
arrebatador, pontuado pelo piano elétrico de César e permitindo vários dribles
vocais de Elis, que narra duelos inacabados, batalhas implacáveis e concluindo
(de maneira brilhante!) que “Toda fita em série que se preza, dizem, reza /
Acaba sempre no melhor pedaço”.
3) “Nada
Será Como Antes” (2:45) - Uma das canções mais populares (e políticas) do
disco, esta canção é uma parceria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. As
notícias de pessoas “distantes” devido à ditadura militar, a falta de utopias
no presente e a crença de que o futuro jamais abrigaria as glórias do passado.
Há uma curiosidade em relação à versão de Elis: os versos “Alvoroço em meu
coração / Amanhã ou depois de amanhã / Resistindo na boca da noite um gosto de
sol” foram suprimidos para dar lugar aos versos pessimistas “Sei que nada será
como está / Amanhã ou depois de manhã”. Pergunto-me o porquê de Elis ter feito
esta omissão de trechos da canção de Milton. Seria por esquecimento? Seria por
desconhecimento do original do Clube da Esquina? Seria intencional? Seria para
deixar seu pessimismo bem claro? De qualquer maneira, a interpretação de Elis
Regina de “Nada Será Como Antes” tornou o clássico de Milton menos esperançoso,
o que, em 1972, era necessário para que as pessoas se conscientizassem a
respeito do verdadeiro clima que pairava nos ares deste país.
4) “Mucuripe”
(2:27) - A quarta faixa do disco é uma toada composta por Fagner e Belchior.
Apesar de ter sido gravada por Roberto Carlos e seu antológico disco de 1975,
foi a versão de Elis que ajudou a popularizar os compositores desta canção, que
pouco tempo depois, gravaram seus primeiros LPs. A interpretação de Elis é
contida, porém não deixa de ser dramática e emocionante.
5) “Olhos
Abertos” (2:37) - Rock rural de Zé Rodrix e Gutemberg Guarabyra (dois
integrantes do trio Sá, Rodrix e Guarabyra). Em um mundo dividido entre
comunistas e capitalistas, hippies alienados e militantes engajados, jovens e
velhos, o canto de desejo de Elis Regina pregava união em um momento no qual o
sistema queria que tudo e todos estivessem reduzidos a fragmentos.
6) “Vida
de Bailarina” (2:25) - A sexta faixa do disco é uma regravação de um dos
maiores hits de Ângela Maria. Tributo composto por Américo Seixas e Dorival
Silva (também conhecido como Chocolate), “Vida de Bailarina” foi a primeira
canção escolhida pela jovem Elis Regina para interpretar nas primeiras vezes em
que participou de concursos de calouros da Rádio Farroupilha, de sua Porto
Alegre natal. A versão que foi registrada nos sulcos do vinil revela uma interpretação
discreta de Elis – fugindo a tradição dos cantores da geração de Ângela e Cauby
Peixoto, que cantavam casos e desenlaces amorosos a plenos pulmões, isto é, a
partir de notas altíssimas! –, conduzida pelo dedilhar jazzístico do piano de
César Camargo Mariano, baixo, bateria e um arranjo singelo de cordas.
7) “Águas
de Março” (3:05) - O Lado B se inicia com a esperançosa “Águas de Março”,
uma dos maiores composições de Antônio Carlos Jobim. Lançada originalmente por
Tom em maio de 1972, em um compacto (dividido com João Bosco) encartado no
lendário semanário underground O Pasquim, a canção foi oferecida a Elis logo
depois. A versão de Elis para a canção de Jobim se tornou tão emblemática que
recebeu uma releitura da Pimentinha ao lado do Maestro Soberano dois anos
depois, quando ambos gravaram Elis & Tom em Los Angeles, nos Estados
Unidos.
As referências literárias e musicais,
escolhidas por Tom foram as mais variadas. No entanto, os versos mais
emblemáticos de “Águas de Março” são justamente os que encerram esta belíssima
canção: (“São as águas de março / fechando o verão / É promessa de vida / no
seu coração”). Através da voz de Tom, Elis Regina lançava em sua viagem de
trevas uma (merecida) fagulha de esperança. A temporada de chuvas que fecha o
verão é símbolo de esperança e renovação, apesar das trevas, dos pregos e do
desgosto.
8) “Atrás
da Porta” (2:48) - Obra-prima da parceria entre Chico Buarque e Francis
Hime, “Atrás da Porta” foi escrita sob medida para a voz de Elis Regina. O que
existe de curioso a respeito da história da gravação deste clássico é que Chico
não havia completado apenas a primeira parte da letra desta canção quando Elis
começou a gravá-la. Ao ouvir a fita que continha estes versos gravados, Chico
emocionou-se e escreveu o resto da letra… O que fez de “Atrás da Porta” uma
canção antológica foi o fato de que Elis a interpretou com o conformismo
desesperado de uma mulher que vivia em crise amorosa permanente. Elis conhecia
muito bem este circuito de trevas, pois, aos 27 anos, já tinha vivido vários
amores frustrados (Solano Ribeiro, Ronaldo Bôscoli e, anos mais tarde, o
próprio César Camargo Mariano).
9) “Cais”
(3:17) – Parceria musical de Milton Nascimento & Ronaldo Bastos, é um
acalanto para a mulher abandonada descrita na faixa anterior. A invenção
torna-se a única arma que restava para a viagem a qual Pimentinha trilhava. O
suntuoso arranjo de cordas e o cravo tocado por César Camargo Mariano conferem
um tom épico e dão à interpretação de Elis uma força de um gigante. Milton,
definitivamente, conseguiu em Elis Regina sua intérprete mais singular, mais
completa e mais competente graças a gravações como esta.
10) “Me
Deixa em Paz” (2:10) - A décima canção que faz parte deste disco de Elis é
uma parceria entre Ivan Lins e seu primeiro parceiro musical, o letrista
Ronaldo Monteiro de Souza. “Me Deixa Em Paz”, destaca-se neste pacote não
apenas pelo piano elétrico de César Camargo Mariano, como também pela elegante
interpretação de Elis, que lembra um pouco as canções que interpretava em suas
lendárias temporadas no Beco das Garrafas.
11) “Casa
no Campo” (2:45) - Outro Rock rural de Zé Rodrix, desta vez em parceria com
Tavito. No entanto, a gravação de Elis Regina para “Casa no Campo” é tão
lembrada pela memória afetiva dos brasileiros que torna-se difícil para
qualquer pessoa que faça música neste país gravá-la… A letra da canção descreve
o desejo que todos nós temos em ter uma casa repleta de amigos, animais,
discos, paz, calmaria, esperança… Além disso, Elis desejava uma “esperança de
óculos” e seu “filho de cuca legal” (João Marcello Bôscoli), desejo que todos
nós que temos filhos também compartilhamos…
12) “Boa
Noite, Amor” (2:23) - O Elis 1972 se encerra com um dos
maiores sucessos de Francisco Alves. Composta por José Maria de Abreu e
Francisco Matoso, trata-se de uma belíssima cantiga de ninar para a pessoa
amada entoada por uma voz contida, precisa, porém sem deixar de ser emocionada.
Pimentinha escolheu para finalizar seu disco uma belíssima declaração de amor
para seu novo marido e parceiro musical por nove anos, César Camargo Mariano. A
participação deste músico foi um dos elementos-chave na produção de um dos
álbuns mais marcantes da discografia de Elis Regina.
*
Se você
nunca ouviu este disco de Elis Regina e quer saber o porquê deste trabalho ser
um dos discos mais importantes não só de 1972, mas de toda a história da música
brasileira, não hesite mais de uma vez e ouça-o! Mas, se você sonha com uma
reedição Deluxe Edition, com todos os
ônus e bônus acoplados, aí vai uma boa notícia: a gravadora Trama, de João
Marcello Bôscoli (filho de Elis), está preparando uma bela reedição deste disco
em CD.
De
acordo com o A & R da gravadora, a proposta deste trabalho consiste em
replanificar o som estéreo do álbum, abrindo os quatro canais da gravação
original em fita analógica e mixá-los através das mais altas tecnologias com o
intuito de eliminar os incômodos ruídos do vinil. Para a execução desta mission impossible, foi convocado um dos
melhores engenheiros de som neste país: Luís Paulo Serafim.
No
entanto, se eu pudesse fazer um pedido ao pessoal da Trama, faria apenas um: o
de que a versão de luxo deste Elis tivesse um encarte maior, uma
ficha técnica detalhada e a inclusão da foto de Elis se espreguiçando na bela cadeira de vime, disponível apenas na
versão original em LP: Discos como este fazem com que qualquer um de nós
entenda o porquê do Brasil ainda necessitar ouvir Elis Regina, afinal ela
sempre terá muito a nos dizer…
“She is an
observer and a thief. She waits to share what she has stolen on that sacred
place, which is the screen. She makes the most heroic characters vulnerable,
the most known familiar, the most despised relatable. Dame Streep. Her artistry
reminds us of the impact of what it means to be an artist, which is to make us
feel less alone.”
(Viola Davis, 2017)
"Disrespect invites disrespect, violence incites
violence. And when the powerful use their position to bully others we all
lose."
(Meryl Streep, 2017)
Meryl Streep & Viola Davis em Doubt (2008)
Se eu tivesse um mínimo de talento
para a atuação, gostaria de ter um décimo, ou um centésimo do dom de Meryl
Streep. Atriz mais consagrada de Hollywood nos últimos 40 anos, essa senhora de
67 anos já acumulou, até janeiro de 2017, 19 indicações para o Oscar e 30 para o Globo de Ouro, sendo que ela já levou três estatuetas douradas e
nove globinhos dourados para casa, além de já ter participado de mais de 60
películas.
Meryl Streep & Woody Allen em Manhattan (1979)
Meryl Streep já foi várias mulheres na
sétima arte: já viveu executiva de moda, uma mãe solteira que abandona o único
filho, uma roqueira desgarrada da família, uma freira obcecada pela sua
definição de verdade, uma professora de música que faz arte a partir do lado
esquerdo do peito, uma atriz de musicais em plena decadência que descobre como
a morte lhe caía muito bem, uma polonesa fugida de um campo de concentração
atormentada pela escolha mais difícil de sua vida, a autora de A Festa de Babette, uma editora de
livros preocupada com a festa em homenagem ao amigo artista que estava morrendo
de AIDS, uma escritora de best-sellers
que enfrenta a ira da diabólica ex-mulher de seu marido, a bonachona cozinheira
que encantou os EUA nos anos 1950/1960, a temida Dama de Ferro, dentre tantas
outras.
Meryl Streep como a famigerada editora de moda Miranda Priestley em The Devil Wears Prada (2005)
Diziam algumas línguas há uns tempos atrás de que ela
viveria Clarice Lispector no cinema, para meu deleite e de tantos outros
leitores apaixonados pela ucraniana mais brasileira já surgida por estas
bandas. Infelizmente, era um boato. Mas a esperança ainda permanece...
Meryl Streep como Florence Foster Jenkins (2016)
Preciso acrescentar um valioso detalhe: em vários
desses papeis, precisou cantar. E, sim: Meryl possui uma voz belíssima e canta
muitíssimo bem! Mesmo quando teve que interpretar Florence Foster Jenkins,
considerada a pior cantora do planeta, Dame Streep o fez com perfeição:
cantava muitíssimo mal com uma perfeição gigantesca, absurda! Ou quando teve
que dar voz à bruxa amargurada de Caminhos
da Floresta (Into the Woods), nos
brindando com alguns dos raros momentos de brilhantismo daquela película. Ou ainda quando teve que fazer a nata do repertório do ABBA em Mamma Mia! (2008)...
Meryl Streep em Into the Woods (2014)
Meryl Streep & Clint Eastwood em The Bridges of Madison County (1995)
Comecei a prestar atenção nos filmes
de Meryl Streep já na adolescência, apesar de ter algumas memórias remotas das
exibições de Ela é o Diabo (She Devil) na Sessão
da Tarde na época em que eu era criança. Fiquei encantado quando
a vi ao lado de Clint Eastwood em As
Pontes de Madison (The Bridges of
Madison County) e infernizando as vidas dos personagens de Goldie Hawn e
Bruce Willis em A Morte lhe Cai Bem (Death Becomes Her). Rolei de dar risadas
com cada desmando de Miranda Priestley em O
Diabo Veste Prada (The Devil Wears
Prada). Fiquei tenso em cada segundo de sua atuação surpreendente ao lado
de Philip Seymour-Hoffman, Amy Adams e da extraordinária Viola Davis em Dúvida (Doubt).
Meryl Streep, Bruce Willis & Goldie Hawn em Death Becomes Her (1992)
Dustin Hoffman & Meryl Streep em Kramer vs. Kramer (1979)
No entanto, foi no momento em que vi
sua atuação comovente de Joanna Kramer em Kramer
vs. Kramer no qual descobri o quão Meryl é uma atriz muito especial. Ela
consegue te fazer rir e chorar com uma facilidade tão impressionante quanto que
ela tem de encarnar personagens tão distintos entre si. Daquele momento em
diante, sempre procurei assistir seus filmes na telona do cinema. De algumas
produções gostei muito, de outras nem tanto. Porém, sempre tinha alguma coisa
boa a dizer acerca do talento de Dame Streep, minha atriz preferida.
*
Meryl Streep em Sophie's Choice (1982)
Ao ser reconhecida pelo conjunto da
obra e pelos 40 anos de carreira completados em 2017, Meryl Streep foi
agraciada por ter recebido o Prêmio Especial
Cecil B. DeMille na septuagésima-quarta cerimônia do Globo de Ouro. Diante do
redemoinho político no qual os EUA se encontram, Meryl Streep fez um discurso
contundente sobre o presidente eleito Donald Trump e da intolerância cada vez
mais reinante. Falou de preconceitos, da arrogância dos poderosos, de
xenofobia. Uma fala histórica, surpreendente e que deixa claro o posicionamento
da maioria dos trabalhadores de Hollywood em relação ao novo chefe da nação
norte-americana.
Meryl Streep vivendo a ex-Primeira Ministra Margaret Thatcher em The Iron Lady (2011)
As reações foram energéticas de ambos
os lados: os detratores do presidente enalteceram o discurso incendiário de
Meryl Streep com citações, inúmeros likes
e vários compartilhamentos nas redes sociais. O GAFE vibrava com a polêmica do momento. Do outro lado, a atitude deselegante
já esperada de Donald Trump, alegando que Streep é uma atriz supervalorizada,
dentre outras baixezas. O mais impressionante foi ver pessoas as quais eu
considerava sãs e respeitáveis endossando o discurso fascista e conservador de
Trump acusando Meryl de hipocrisia e oportunismo. Hollywood promete travar
quatro anos de disputas verbais e batalhas com Washington. No meio desta
confusão, alguns princípios democráticos, interesses pessoais, artísticos e
econômicos. E com direito à ampla cobertura da mídia, sedenta por notícias em
meio à mediocridade dos tempos de hoje.
Em meio à avalanche de informações, de
meias-verdades e de muita arrogância, saber da existência de ideias tão
libertárias quanto as de Meryl Streep serve como alento para aguentarmos as
insanidades dos medíocres com a cabeça erguida, sem desistir de lutar por
aquilo que acreditamos: a liberdade irrestrita para todos, para justificar o
nome da estátua que atrai milhões e milhões de pessoas para Nova York a cada
ano. Ou, como diz Suzanne Vale (uma de suas personagens mais célebres): a vida não deveria imitar a arte, a vida deveria ser arte.
Shirley MacLaine & Meryl Streep em Postcards From the Edge (1990)
Salve, Dame Streep! Que o seu
exemplo seja seguido por todos os cidadãos revoltados com os desmandos dos
canalhas tanto dentro como fora das telas...
Meryl Streep com suas três estatuetas do Oscar nas mãos - 1979, 1982 e 2011