28 de dezembro de 2017

DISCOS DE VINIL # 48

THE ROLLING STONES – TATTOO YOU (1981)


Os anos 1980 foram bem bicudos para muitos músicos e bandas de Rock. John Lennon tinha sido brutalmente assassinado por um fã desequilibrado; O Led Zeppelin foi abatido fatalmente com a morte do baterista John Bonham; o Punk já era uma expressão musical em pura decadência, para citar apenas alguns exemplos daqueles dias difíceis. Infelizmente, a crise de meia-idade musical também tinha atingido os Rolling Stones: a parceria de Mick Jagger e Keith Richards já davam os primeiros sinais de desgaste, visto que as relações entre eles começavam a azedar cada vez mais.


Com a morte do guitarrista Brian Jones e com a saída do empresário Andrew Oldham do controle criativo dos Rolling Stones, Mick Jagger tomou para si o papel de direcionar os passos da banda. Enquanto Keith Richards vivia às voltas com Anita Pallenberg, a heroína, o álcool, algumas prisões e muita (mas muita!) confusão, Jagger conseguiu fazer dos Stones, enfim, um negócio bastante lucrativo. As turnês da década de 1970 se tornavam cada vez maiores, gerando mais discos, mais popularidade e um fluxo de caixa mais gordo para um grupo de músicos que, anos antes, tiveram que abandonar o Reino Unido às pressas por estarem afundados em dívidas com o governo britânico. A principal consequência deste processo foi a inflação do ego de Sir Jagger em escalas exponenciais, o que foi fatal para o equilíbrio das boas relações com Richards.


No final dos anos 1970, Keith estava finalmente se livrando da dependência em heroína, o que lhe motivou a querer retomar a sua participação como co-líder da banda. Mick, influenciado pelo tipo de música que se produzia na última metade daquela década, teve voz decisiva na realização dos álbuns Some Girls (1978) e Emotional Rescue (1980), dois sucessos de crítica e público, que deixaram Richards insatisfeito com os rumos musicais que os Rolling Stones trilhavam naquela época. No entanto, era preciso sair em turnê no ano seguinte - os Stones tinham programado duas excursões gigantescas: a primeira passaria pelos EUA no segundo semestre de 1981 e a segunda etapa levaria os músicos pela Europa até julho do ano seguinte -, por isso, todos os ressentimentos deveriam ser varridos para debaixo do tapete para que a máquina voltasse a rodar com todo o vigor necessário.



Como a parceria Jagger-Richards estava paralisada devido aos choques de egos entre Mick e Keith, a solução foi garimpar os arquivos de gravações dos Stones e criar um álbum "novo" para poder promover durante as turnês norte-americana e europeia. O resultado deste garimpo musical foi Tattoo You, lançado em 24 de agosto de 1981. Último álbum da banda a alcançar o topo das paradas musicais dos EUA até o presente momento, o disco abre com "Start Me Up", canção obrigatória em todas as apresentações dos Rolling Stones e um dos maiores sucessos de toda a história do Rock 'n' Roll. O videoclipe foi dirigido por Michael Lindsay-Hogg, o mesmo que dirigiu o documentário Let it Be (o canto do cisne dos Beatles), e mostra os músicos tocando em formato de playback com direito às piruetas de Mick Jagger em calças legging - uma das imagens mais icônicas do astro.



Os 44 minutos e 23 segundos de Tattoo You revelam a excelente disposição dos Rolling Stones em fazer música de qualidade. Das canções mais antigas desta coleção estão "Tops" e "Waiting On A Friend", compostas durante as sessões de gravação de Goat's Head Soup (1973). Enquanto a primeira é sobre um relacionamento intenso entre um homem e uma mulher, a segunda é um dos tratados poéticos mais sinceros e belos sobre a amizade - sentimento que Jagger e Richards não conseguiam cultivar naquele momento. Da safra 1975-1976, fazem parte "Worried About You" (uma das poucas faixas nas quais Mick Jagger toca piano elétrico), "Slave" (com direito a improvisações estilo Free Jazz do lendário tecladista Billy Preston) e a primeira versão de "Start Me Up", que teria sido um reggae se não tivesse ido para o arquivo das gravações do álbum Black and Blue (1976).


"Hang Fire", "Neighbours" e "Black Limousine" (parceria entre Jagger, Richards e o guitarrista Ron Wood) foram três números compostos e/ou descartados de Some Girls e que cumpriam um ótimo papel nos setlists de apresentações ao vivo dos Stones na época. O videoclipe de "Neighbours", por exemplo, faz referências ao filme Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock) e ao fato incômodo de Keith Richards ter tido problemas jurídicos com vizinhos do prédio onde morava com Patti Hansen (segunda esposa do guitarrista) em Nova York por causa do volume alto da música que vinha de seu apartamento. "Hang Fire", infelizmente, não é um número tão executado nas turnês da banda: a batida rápida de Watts aliada às guitarras incandescentes de Richards e Wood são o combustível perfeito para a energia inesgotável de Jagger nos vocais. "Black Limousine", por outro lado, foi bastante tocada durante as apresentações do período 1981-1982.


Do período das gravações de Emotional Rescue, os Rolling Stones resgataram "Heaven", "Little T & A" e "No Use In Crying". "Little T & A" é uma declaração de amor de Keith Richards à então futura esposa, a modelo Patti Hansen, e mãe de suas duas filhas mais jovens: Alexandra e Theodora. Nos sets onde Keith assume o microfone principal para que Mick vá para o backstage renovar as energias para a segunda parte do espetáculo, a quarta canção de Tattoo You é uma presença constante ao lado de números mais consagrados como "Happy" e "You Got The Silver". "Heaven" é um número típico das ambições de Jagger no período - impressionado (ou ameaçado) por Prince, gravou uma faixa inteira com vocais em falsete com o objetivo de superar as atenções dadas ao autor e intérprete de "Kiss" e "Purple Rain". Já "No Use In Crying" é uma bela balada dos Stones, com direito aos riffs marcantes de Keith e a rara colaboração da dupla de compositores nos vocais - digamos que este é um dos últimos momentos de união entre os líderes da banda antes da guerra épica de egos que quase destruiu a banda na década de 1980.



Considerado pela crítica e pelos fãs como um dos melhores discos de Rock de todos os tempos, Tattoo You recebeu muitas críticas positivas e é considerado pelos admiradores mais ferrenhos dos Rolling Stones como o último grande momento da banda (foi o último disco dos Stones a alcançar o topo das paradas norte-americanas até o presente momento). Se levarmos em conta o time de músicos que tocaram nestas faixas - Nicky Hopkins, Ian Stewart e Billy Preston (piano e teclados), Wayne Perkins e Mick Taylor (guitarras), Sonny Rollins (sax), Pete Townshend (vocais de apoio em "Slave"), Ollie Brown, Jimmy Miller e Chris Kimsey -, Mick Jagger e cia conseguiram criar um punhado de grandes canções e que dificilmente deixarão de estar na memória dos amantes de Rock 'n' Roll. Afinal de contas, as palavras de ordem destes músicos sempre foi e sempre será: "Never Stop!"...


25 de dezembro de 2017

TROVA # 143

O DIA DA BADERNA


Na linha do horizonte
Do alto da montanha
Por onde quer que eu ande
Esse amor me acompanha
A luz que vem do alto
Aponta o meu caminho
É forte no meu peito
Eu não ando sozinho

Te vejo pelos campos
Te sinto até nos ares
Te encontro nas montanhas
E te ouço nos mares

Você é meu escudo
Você pra mim é tudo
Minha fé me leva até você

Pra quem te traz no peito
O mundo é mais florido
A vida aqui na Terra
Tem um outro sentido

Eu ando e não me canso
Esqueço a minha cruz
Firme nesse rumo
Que a você me conduz

Em todos os momentos
Que eu olho pro espaço
Sou forte e minha fé
Me faz um homem de aço

Você é meu escudo
Você pra mim é tudo
Minha fé me leva até você

Em todos os momentos
Que eu olho pro espaço
Sou forte e minha fé
Me faz um homem de aço

Você é meu escudo
Você pra mim é tudo
Minha fé me leva até você

Você é meu escudo
Você pra mim é tudo
Minha fé me leva até você

Você é meu escudo
Você pra mim é tudo
Minha fé me leva até você
Até você!
(Roberto Carlos & Erasmo Carlos na voz de Rita Benneditto)


         Em tempos de crise, fica difícil encontrar motivação para celebrar qualquer coisa. Especialmente quando se trata de festividades deslavadamente incentivadas pelo mercado. Os shopping centers ficam repletos de gente em busca de presentes em um frenesi que leva o nosso suado décimo-terceiro salário em um rabo de foguete. A excitação em comprar, comprar e comprar e ganhar, ganhar e ganhar presentes recebe o nome de “espírito natalino”.
         Jesus Cristo, o aniversariante do dia 25 de dezembro, era o que hoje chamaríamos de comunista bolivariano, tal qual foi brilhantemente alardeado por Gregório Duvivier em sua coluna da Folha de S. Paulo: “não acumulou riqueza, não se formou, ao invés disso vivia descalço cercado de leprosos defendendo bandido... O sujeito tava mais pra Marighella que pra Gandhi (...)”.
A “celebração” do aniversário de Jesus Cristo faz com que as pessoas organizem comilanças babilônicas, regadaas a litros e litros de bebida; a televisão seleciona o que há de mais bisonho em termos de música antes de exibir a Missa do Galo e os parentes com os quais nos encontramos pouquíssimas vezes ao ano e que mal nos conhecem, ora se animam com a sua presença figurativa no sofá, ora se ressentem da sua ausência. O aniversariante do dia fica ofuscado pelo Funk carioca, pelo pagode e pela sofrência das meninas do “feminejo” ou de outros ritmos musicais na crista da onda...



Para o seu lugar, entrou o imbatível Papai Noel (mais conhecido como Santa Claus) distribuindo presentes na pele dos chefes de família, fazendo a festa da criançada e movendo a roda do Capitalismo, tão bem lembrado pelo escritor Gabriel García-Márquez em uma crônica sobre esta época do ano: “O menino Jesus foi destronado pelo Santa Claus dos gringos e dos ingleses, que é o mesmo Papai Noel dos franceses e aos que conhecemos de mais. Chegou-nos com o trenó levado por um alce e o saco carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve.”.


         Cristo era um defensor dos fracos, dos oprimidos, era o maior dos justos. Pensando na essência de seu legado e também por puro comodismo, passei a me questionar a necessidade de tanta pompa e circunstância prescrita pelo credo capitalista para esta época do ano. Decidi que o Natal deste ano deveria ser um momento de reflexão, de agradecimento e, principalmente, de descanso: como só tive férias a partir do dia 22 de dezembro, achei mais prudente e mais proveitoso ficar em casa, sem um pingo de ostentação: desfrutei de uma ceia natalina mais simples e cercado apenas das pessoas mais íntimas; nada de troca de presentes ou de seleções de amigo secreto; nada de ter que me obrigar a ser simpático com pessoas que desconheço ou quase nunca vejo; nada de roupa nova para a ocasião – ganhei um pijama de uma amiga minha e adorei passar a virada de 24 para 25 de dezembro assim. A conta bancária agradece e o bom humor também!



         Infelizmente, as postagens nas redes sociais me levam a crer que muitos se esqueceram do verdadeiro legado deste perturbador da ordem chamado Jesus Cristo e só ficaram com a baderna de comidas, bebidas e presentes com direito à trilha sonora da TV ligada. Se a crise obrigasse a maioria dos indivíduos a crescerem diante da escassez de recursos e da desunião entre os homens, já seria um bom (re)começo para a humanidade. No entanto, muitos preferem a letargia confortável do consumismo...

27 de novembro de 2017

TROVA # 142

A MÚSICA, AS MEMÓRIAS E A MAGIA DE BARBRA STREISAND



If you see me in the alley
Looking like I don't belong
You can put me in your greenest valley
I'll still be singing the same old song
(Barbara Keith na voz de Barbra Streisand, 1971)


         Barbra Streisand surgiu para os meus ouvidos quando eu estava entrando na adolescência. Enquanto as pessoas da minha idade piravam no som das bandas descoladas como Nirvana, Red Hot Chilli Peppers ou Pearl Jam, eu me encantava com sucessos como “Guilty”, “Woman in Love” e “The Way We Were”. Achava o primeiro disco que ela gravou com o Barry Gibb dos Bee Gees o verdadeiro máximo e fiquei super feliz quando eu adquiri uma versão comemorativa de 25 anos de Guilty para a minha coleção. Era mais um sinal de que o meu ouvido musical era anormal em comparação às pessoas da minha idade.


         O que me encantava tanto no trabalho de Barbra Streisand? A voz. Seu talento estupendo de atriz lhe fazia uma performer seja de canções dos musicais da Broadway, seja de canções pop contemporâneas. Apesar dela ser odiada pelos daqui de casa e de seu gosto do que os falantes de língua inglesa chamam de corny para o seu repertório mais recente e de seus excessos de Diva, não deixei de comprar seus álbuns. Eu sempre digo para qualquer um que se há mais de três discos de um mesmo artista é porque estamos diante de um fã. Daqui da mesa do escritório, vejo mais de dez CDs e um LP da artista de quem escrevo hoje.


         Devo confessar por aqui que, apesar de gostar bastante dos serviços de streaming, não sou muito afeiçoado ao Netflix. Minha preguiça em acompanhar novelas e séries de TV se tornou uma parte congênita de mim desde que minha rotina tem sido tomada pela minha vida profissional e dos meus estudos. Porém, ao saber que The Music... The Mem’ries... The Magic!, a turnê de 2016-2017 em que Barbra Streisand comemorou 6 décadas de uma carreira de sucesso, aproveitei a solidão de uma noite de quarta-feira e fui conferir o resultado.


Aos 75 anos de idade, Barbra Streisand infelizmente não possui a mesma extensão vocal (os agudos eram uma de suas marcas registradas) de outros tempos. Por outro lado, a teatralidade que ela imprimiu a clássicos como “People” (Bob Merrill & Jule Styne) e “I Didn’t Know What Time It Was” (Rodgers & Hart) ou a canções pop como “Being At War With Each Other” (Carole King), “The Way We Were” (Marvin Hamlisch, Alan & Marilyn Bergman) ou “Evergreen” (parceria bissexta de Streisand com Paul Williams) é simplesmente comovente. Ao contrário de turnês anteriores, onde poderíamos notar a presença de orquestras repletas de cordas e sopros, Barbra é acompanhada por um número restrito e competente de músicos no palco.



Apesar das excelentes interpretações, The Music... The Mem’ries... The Magic! possui momentos, digamos, um tanto over para os não-admiradores de Barbra Streisand: o diálogo entre Barbra e o gerente do restaurante no qual ela pede o seu jantar pareceu fake demais até para este que vos escreve; a homenagem à cadelinha Sammy (companheira fiel da estrela durante as turnês), comovente para os amantes de pets, e suas aparições forçadas no palco deviam ser um desgaste para a pobre criaturinha – os donos de cãezinhos sabem que eles possuem audição extremamente sensível; imaginem o desconforto de milhares de pessoas aplaudindo e berrando por sua dona em plena boca de cena...


No entanto, pouquíssimas mulheres na história da música sabem encantar, entreter e provocar uma plateia como Babs: Madonna, Beyoncé, Adele e muitas outras mulheres que se aventurarem pelo showbiz devem aprender um pouquinho com ela em matéria de como se interpretar uma canção, como se vestir com sensualidade e elegância, como se dirigir ao público contando histórias, piadas e anedotas de cunho político e por aí vai... Dois detalhes a respeito de sua história profissional me deixaram boquiaberto: Barbra tem pavor de palco e só fez apenas cem concertos públicos até hoje. Chega a ser impactante saber que uma das figuras femininas mais longevas do entretenimento mundial não fez um centésimo de apresentações ao vivo do que todas as estrelas da música Pop juntas e mesmo assim tem muito a ensinar a todas elas.



E torço para que Barbra sempre consiga dominar o medo do palco para não apenas ensinar aos seus pares com quantos refletores e notas musicais se fazem um bom espetáculo, como também tenha canções belíssimas para cantar para o mundo por bastante tempo. Afinal de contas, precisamos de belas vozes para que possamos ainda acreditar na beleza de nosso cotidiano. Como a boa nos redime e nos salva dos males do dia-a-dia, a música, as memórias e a magia de Barbra Streisand nos fazem crer em um mundo um pouco melhor. Mesmo que este efeito tenha a duração de apenas duas horas... 


20 de novembro de 2017

TROVA # 141

O DIA DA CONSCIÊNCIA



A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história
Segurando esse país no braço
O cabra aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento
Mas muito bem intencionado
E esse país
Vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado

Mas mesmo assim
Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
(Marcelo Yuka, Seu Jorge & Wilson Cappellette na voz de Elza Soares, 2002)


         Há pouco tempo que foi instituído o Feriado do Dia da Consciência Negra. Infelizmente, não para todas as cidades do país e sem o reconhecimento unânime de toda a população brasileira (alguns acham que precisamos de mais “consciência humana” e não de mais conscientização a respeito da luta e das mazelas da população negra). Zumbi dos Palmares (morto em 20 de novembro de 1695), se estivesse entre nós, teria um trabalho e tanto para acalmar a turba xucra e insensível de cidadãos que expõem os seus pensamentos mais horrendos pela Internet afora.


O que os detratores do feriado de 20 de novembro ignoram ou não reconhecem é que a população negra trazida da África à força para o Brasil ajudou a construir as bases deste país debaixo de muito suor, dor, sangue e chicote. Se levarmos em conta que o racismo nunca deixou de estar presente nas relações entre nós e se faz cada vez mais gritante em tempos nos quais vivemos uma retirada constante de direitos civis, é preciso declaramos apoio incondicional a momentos como este.
Ao acordar mais tarde na manhã de 20 de novembro de 2017, aproveitei para descansar mais um pouco e tomar um café da manhã mais demorado na frente da televisão: vejo a lendária atriz Ruth de Souza, no alto dos seus 96 anos de idade, sendo homenageada em um programa de variedades, assistido por milhões de brasileiros. Senti uma pontinha de orgulho e esperança ao ver uma atriz de um pioneirismo tão grande como Ruth em cadeia nacional, depois de mais de quatro décadas de carreira nas artes cênicas.
Entretanto, a minha euforia foi para as cucuias quando tive a infeliz ideia de acessar as redes sociais e ver comentários de profissionais de educação criticando o Dia da Consciência Negra. Um detalhe importante: são colegas de profissão que, como eu, convivem com uma quantidade expressiva de alunos e pais negros e que possuem muito menos privilégios do que qualquer um de nós que teve a chance de ouro de estudar em boas universidades.


Pausa para as trivialidades do Instagram e do Facebook para ir até a janela ver a origem do barulho ensurdecedor que invade o meu quarto em um passe de mágica: vejo um trânsito absurdo na Rodovia Raposo Tavares para um dia normal (imagine para um feriado...) e dois helicópteros fazendo a ronda da região onde moro. Ao investigar pelo noticiário, descubro que um carro tinha sido interceptado pela polícia com um carregamento de drogas. Vi a figura do criminoso pela televisão sentado no meio-fio perto do ponto de ônibus de frente para a minha janela. Detalhe importante: o meliante estava sem algemas. Perguntei-me: e se ele fosse negro? Estaria provavelmente algemado e espancado pelos meganhas ou até morto, dependendo de sua (falta de) sorte...


Depois da sessão “mundo cão”, fui almoçar enquanto assistia o noticiário do dia. Ao assistir a notícia de um rapaz negro que foi perseguido, acusado de roubo e espancado por seguranças de um terminal de ônibus de São Paulo, senti a comida começando a embrulhar no estômago. Apesar de não ser negro, tenho a compaixão mínima de me colocar no lugar da pessoa que foi agredida. Poderia ser um aluno meu. Poderia ser um amigo meu. Não poderia ter sido eu, pelo fato das pessoas olharem para a cor da minha pele, para as roupas que eu visto e ver que jamais estaria sob suspeita de qualquer delito.


A solução para o mal-estar era dormir um pouco depois do almoço para ver se o desconforto passava. Não passou... Antes de me preparar para as tarefas do dia, caí na infelicidade de ler um texto escrito por um projeto mal-acabado de filósofo, intelectual reacionário, defendendo o jornalista William Waack, flagrado em um vídeo praticando o racismo da forma mais deplorável e abjeta que já vimos nos últimos tempos na TV.


Enquanto arrumava a casa, decidi ouvir música. Escolhi dois CDs dos Rolling Stones para me animar a fazer a faxina da semana. Enquanto ouvia aqueles rocks entremeados de blues clássicos de Howlin’ Wolf e Willie Dixon, fui me lembrando de passagens da biografia das pedras rolantes: o que teria sido de Mick Jagger e Keith Richards se eles não tivessem bebido no manancial poderoso da música negra norte-americana? Duvido que eles teriam tido metade da relevância que possuem para o mundo do entretenimento se Mick e Keith não reverenciassem os negros com tanto respeito...


E teve gente que pensou que Madonna era negra quando surgiu para o mundo do Pop em 1982. Levaram um susto ao ver que a voz de “Everybody” não era de uma “afro-americana” e sim de uma branquela de Michigan recém-radicada em Nova York.  Em mais de 35 anos de carreira, Madge é o que é graças à contribuição da musicalidade dos negros (Rap, Soul, Hip-Hop, etc.) e porque preconceito nunca esteve em seu dicionário musical. Aprendeu mais uma das lições mais importantes de seu guru David Bowie, que fez discos maravilhosos nos quais misturou Soul, Funk com androginia, narcóticos e Rock ‘n’ Roll. Dois exemplos de artistas brancos que sempre trataram os negros com enorme respeito.


Se formos falar em matéria de música brasileira, temos um material gigantesco de músicos brancos que reverenciaram os negros com todo o respeito. Elis Regina, para citar um exemplo feminino, encontrou em “Upa, Neguinho!” um de seus maiores sucessos: a canção de Edu Lobo & Gianfrancesco Guarnieri fala do infante Zumbi dos Palmares e o retrata como uma alternativa para a liberdade que os negros tanto procuraram em séculos de exploração.



Apesar dos negros terem encontrado uma parcela de liberdade e uma boa dose de respeito dentro do universo da música, eles ainda ganharão menos do que os brancos (fato que contribui para o atraso da economia brasileira) e estarão no topo das estatísticas de pessoas assassinadas no Brasil. Enquanto os brancos ainda torcerem o pescoço com medo ou repulsa daqueles que escravizaram no passado, teremos milhares de motivos para que todo dia 20 de novembro seja lembrado dos horrores que nós e nossos antepassados já cometeram por pura maldade, burrice e ignorância... 


2 de novembro de 2017

DISCOS DE VINIL # 47

LED ZEPPELIN – HOUSES OF THE HOLY (1973)


     Em 1973, o Led Zeppelin já era uma das maiores bandas de toda a história do Rock ‘n’ Roll. Jimmy Page (guitarra e produção), Robert Plant (voz), John-Paul Jones (baixo e teclados) e John Bonham (bateria) precisaram de quatro discos para que seus nomes constassem no panteão dos gênios do Rock: Led Zeppelin I, Led Zeppelin II, Led Zeppelin III e o álbum sem título com um velhinho em meio às ruínas de uma moradia abandonada, que ficou conhecido pelos fãs e críticos como Led Zeppelin IV.


        
         Entre janeiro e agosto de 1972, Page, Plant, Jones e Bonham gravaram uma quantidade assombrosa de material inédito para o que seria o quinto álbum da banda. Além de realizaram gravações no estúdio de gravação móvel dos Rolling Stones (administrado por Ian Stewart, o pianista e tecladista que teria sido o sexto Stone), os músicos gravaram nos estúdios mais badalados da época – o Olympic de Londres e o Electric Lady em Nova York. Definitivamente, Jimmy Page não estava disposto a jogar baixo e queria repetir o sucesso do quarto álbum do Zeppelin, lançado um ano antes: apesar de terem registrado várias canções, apenas OITO ficaram para a seleção final do quinto álbum da banda, batizado como Houses of the Holy, lançado em 28 de março de 1973.



         (Antes de tratarmos das faixas que fazem parte do quinto álbum do Led Zeppelin, cabe um parêntesis sobre duas das canções que ficaram de fora do disco: a faixa-título, “Night Flight” e “Boogie with Stu” [Ian Stewart, ele mesmo!] foram três preciosidades que teriam figurado em Houses of the Holy se a tesoura do produtor Jimmy Page não tivesse sido tão implacável!)



         O disco abre com um dos melhores números da história do Led Zeppelin: “The Song Remains the Same” pode ser interpretada como uma canção que relata um sonho que reconstitui os desejos de uma banda em ser ouvida pelos quatro cantos do planeta. A comunhão entre artistas e público se faz através do poder unificador das canções que se tocam e se ouvem por aí – Master Page, em um ápice de seu virtuosismo, fez uso de simplesmente OITO guitarras diferentes para gravar esta faixa.


         Depois dos cinco minutos e meio da faixa de abertura, o Zeppelin propõe o seu ouvinte para um momento de calmaria e reflexão: “The Rain Song” é pontuada pela guitarra e pelo violão de Page, pelo mellotron de Jones (que consegue simular uma orquestra sinfônica com perfeição!), pela batida inconfundível de Bonham e pela voz de Robert Plant, que consegue ser feroz, doce, agressiva e solene na medida certa, o que o torna em um dos maiores cantores da história da música do planeta! A segunda canção de Houses of the Holy é um dos melhores números acústicos da história do Rock ‘n’ Roll e chegou a ser revivida no especial No Quarter, gravado por Page e Plant para a MTV em 1994, sem o talento de John-Paul Jones e sem as baquetas extraordinárias de Bonzo.



         A terceira faixa, “Over the Hills and Far Away” é um clássico típico do Led Zeppelin: os violões de Jimmy Page levam mais de 40 segundos para introduzir a voz de Robert Plant e nos transporta a ambientes místicos, mágicos. Quando o baixo de John-Paul Jones e a bateria de Bonzo atacam junto com a guitarra de Page, o vocalista abandona o tom solene e quase romântico para declarar sem pudor: “Many have I loved / And many times been bitten / Many times I’ve gazed / Along the open road”. Afinal, o sujeito poético deixa bem claro que a sua razão de viver é o seu sonho e um bolso repleto de ouro. Viver intensamente é o que realmente vale a pena, não colocar o pé na estrada e encarar os obstáculos sem medo e desconhecer o que pode haver de melhor nesta vida.




         As duas faixas seguintes de Houses of the Holy, “The Crunge” e “Dancing Days” são dois números nos quais a banda demonstra uma sintonia impressionante. Juntos, Page, Plant, Jones e Bonham conseguiram escrever os princípios do Rock com riffs cortantes, vocais rasgados, uma certa dose de irreverência e deboche, baixo e teclados para trazer mais camadas de som e uma batida ligeira para formatar o andamento. Confesso que teria ficado muito feliz se o Led Zeppelin tivesse incluído “Dancing Days” no lendário concerto de 2007, por se tratar de um B-Side admirado por uma série de fãs.
        
         

     “D’Yer Maker”, sexta faixa de Houses of the Holy, é uma das canções mais irreverentes de todo o repertório do Led Zeppelin: o título da canção é uma alusão à contração da frase em Inglês “Did You Make Her?” [Você trepou com ela?] e “Jamaica” tal qual pronunciada no inglês britânico Robert Plant canta sobre uma figura feminina estonteante que faz seu macho de gato e sapato, apesar dele lhe jurar amor eterno. A canção foi redescoberta em 1994 quando Sheryl Crow, na época um artista em ascensão, regravou esta canção para o álbum-tributo Encomium, com um toque Folk pontuado pelo acordeom da moça.


         A penúltima faixa do disco, “No Quarter”, é, sem sombra de dúvidas, o momento mais sombrio do disco. A voz de Robert Plant nos dá a impressão de que tinha sido congelada pelo frio aterrorizante da letra da canção. Os teclados e o piano de John-Paul Jones deixam o virtuosismo de Jimmy Page um pouco de lado para que o mundo tivesse a certeza de que o baixista e o tecladista do Led Zeppelin é um dos músicos mais talentosos, brilhantes e injustiçados de toda a história do Rock. Apesar de Page e Plant terem reinterpretado este número em 1994, a versão ao vivo que permanecerá nas memórias afetivas dos fãs e críticos musicais é a de 2007, na qual o vocalista e o guitarrista da banda trouxeram Jones de volta para o mesmo palco que eles para que tocar esta canção juntos, como sempre deveria ter sido.



A última canção de Houses of the Holy é “The Ocean” (a minha preferida do disco!) é introduzida por John Bonham conclamando os músicos para o número final depois de atacar com o seu “1, 2, 3, 4” para que o zepelim prateado voasse mais alto do que nunca através da velocidade do som... Geralmente utilizada para encerrar as apresentações ao vivo da banda durante a turnê de 1973, “The Ocean” é um resumo das imagens mais poéticas deste disco do Led Zeppelin em quatro minutos: traz imagens solares (“The Song Remains the Same”), de montanhas (“Over the Hills...”), de chuva e destruição (“The Rain Song” e “No Quarter”) e de figuras femininas marcantes (“The Crunge”, “Dancing Days” e “D’Yer Maker”). O tal oceano da canção é o mar de gente que peregrinava alegremente para ver os quatro cavaleiros do zepelim prateado em ação em cima de um palco e que transmite a energia para que seja possível cantar sobre o amor e as coisas mais simples da vida. De acordo com Robert Plant, um excelente modo de estabelecer um recomeço é cantar para quem se ama – no caso sua filha, Carmen Jane, uma menininha naquela época.



Houses of the Holy é um retrato e tanto do que existe de melhor do Led Zeppelin: uma aula de Rock ‘n’ Roll ousado, poético e infinitamente energético. Se eu fosse indicar um disco do Led para que um desconhecido ouvisse, seria este. Assim, o oceano de peregrinos do zepelim de Page, Plant, Jones e Bonham sempre teria novos integrantes.


UM BÔNUS PARA QUEM ACREDITA QUE OS ÁLBUNS DO LED ZEPPELIN SÃO REPLETOS DE SATANISMO: