27 de novembro de 2016

TROVA # 100

O MESTRE CENTENÁRIO
(uma declaração de amor ao samba no dia de seus 100 anos)



Meu bem, perdoa
Perdoa meu coração pecador
Você sabe que jamais
Eu viverei sem o seu amor
(Paulinho da Viola, 1976)


A primeira coisa que eu deveria fazer pelo samba, este mestre centenário, é lhe pedir perdão. Quando eu era mais jovem, no auge da minha sanha elitista e arrogante de pobre de direita, achava que a coisa mais chique do mundo era ouvir música em inglês. Ledo engano: no momento em que eu entendi o meu lugar de fala, de onde eu venho e tudo o mais, entendi que ser sambista é também ser chique e elegante, é nobreza de altíssimo nível, da patente das mais elevadas.
Um dos pouquíssimos orgulhos que ainda possuo de ser carioca de nascimento é o de ter nascido na mesma cidade que foi um dos berços principais do samba. Foi em um fundo de quintal de uma casa nas imediações da Praça Onze e do bairro do Estácio que o ritmo musical trazido pelos africanos para as bandas de cá começou a sua trajetória. Todo sambista carrega a ancestralidade dos escravos em seu DNA e deve agradecer à Tia Ciata por ter aberto as portas de sua residência para os primeiríssimos sambistas.


É também preciso pedir a benção de Donga por ter gravado “Pelo Telefone”, a primeiríssima gravação jamais feita de um samba em disco. E não podemos nos esquecer de pedir a proteção de Ismael Silva por ter sido o grande criador da primeira escola de samba. Por fim, não devemos nos esquecer que nossa ginga e malemolência é fruto da malandragem dos sambistas que faziam música e fugiam da polícia nos anos 1930 para poder ter o seu direito de expressão artística garantido. Sim, sambista brasileiro já teve cara de bandido...



É claro que alguns me dirão que o samba nasceu lá na Bahia, porém meu coração carioca sempre irá discordar ou ignorar esta tese. No entanto, isto é assunto para outro texto, que um dia prometo escrever...

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Samba sempre foi assunto seríssimo lá dentro de casa. Meu tio Silvio Bertho, irmão mais velho de meu pai, foi advogado, boêmio e radialista dos bons – dizem que ele era dono de vastíssimo conhecimento de música e de um acervo de discos de samba de fazer inveja a muita gente; meu tio Celso Bertho também foi radialista e adorava um partido alto. Já do lado da família de minha mãe, os Rangel, não havia muita diferença: guardo a eterna referência musical dos discos dos meus avós – meu avô Adhemar, por exemplo, era um grande admirador da obra de Paulinho da Viola; já D. Magaly, minha avó, me apresentou à música de Bezerra da Silva. Foi graças a ela que eu descobri que o embaixador dos morros e favelas era mais Rock ‘n’ Roll do que muitos roqueiros juntos e enfileirados.



Por fim, não posso deixar de mencionar a contribuição do Sr. Orlando Bertho, meu Pai, para os meus ouvidos: ex-integrante da ala de bateria da União da Ilha do Governador, era chamado de “O Rei do Tamborim” por vários de seus amigos e colegas de escola de samba. O instrumento ainda existe e, se não me engano, volta à ativa todo mês de fevereiro durante as festas de Carnaval. Foi graças ao seu acervo de LPs, CDs e fitas K7 que eu ouvi falar em mestres do samba como Mestre Marçal, Beth Carvalho, Grupo Fundo de Quintal, Jorge Aragão e todos os clássicos do samba-enredo que passaram por metros e mais metros de avenida.




Diante dos exemplos familiares que citei, só posso chegar a uma conclusão hoje em dia: não tinha como fugir da batucada, pois ela já estava dentro do coração e dos ouvidos dos dois lados da família.

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         Foi depois dos meus 20 anos de idade – época em que ingressei na Faculdade de Letras – que o meu interesse pelo samba se deu de vez. Graças a Ney Matogrosso descobri a obra de Cartola graças a dois discos belíssimos com a fina flor da obra do Divino Mestre da Estação Primeira de Mangueira. Clara Nunes e Paulinho da Viola, estandartes da Portela, surgiram para mim neste período e me incentivaram a amar o azul e branco da principal escola de samba de Madureira. Logo depois da graduação, Maurício Martins do Carmo, meu ex-professor e ex-orientador de TCC, me pediu uma encomenda: uma pesquisa para um seminário comemorativo homenageando um dos maiores bambas do samba, Lamartine Babo. Fui nocauteado pela genialidade do grande criador de marchinhas carnavalescas de todo o Brasil e apresentei (modéstia à parte!) um belo trabalho no evento organizado pela Universidade Estácio de Sá.




         [Preciso fazer um adendo importante e necessário: se eu não tivesse me envolvido tão intensamente com o objeto de pesquisa da minha Dissertação de Mestrado e que resultou em meu primeiro livro – a obra musical do grupo Secos & Molhados –, creio que teria dado continuidade às minhas pesquisas sobre o samba. Quando eu for mais velho e um pouquinho mais sábio, espero poder oferecer minha contribuição para um dos temas mais debatidos em matéria de canção popular].



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         Em 2006, dei um dos meus giros de 180 graus nesta vida e troquei o Rio de Janeiro por São Paulo. Troquei a Cidade Maravilhosa pela Terra da Garoa. Saí do berço em rumo ao “túmulo do samba”. Meu choque anafilático da troca de uma capital pela outra foi aliviado graças à obra de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa, uma das paixões musicais do Sr. Leonildo Moreira Serra, meu segundo pai – ele adorava ouvir as canções de um disco dos Demônios que eu converti para MP3 no carro enquanto dirigia. Nenhum compositor soube captar a alma paulistana com a sensibilidade apurada e irreverente de Adoniran, a voz principal do samba paulistano.


         Foi quando me converti em cidadão paulistano que os meus ouvidos se abriram de vez para o legado de outros bambas do samba: Noel Rosa & Aracy de Almeida, Carmen Miranda, Wilson Baptista & Mário Reis, Elza Soares, Martinho da Vila, Clementina de Jesus & Jovelina Pérola Negra, Carlos Cachaça & Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Alcione & Beth Carvalho, João Nogueira & Zeca Pagodinho... Sim, meus ouvidos já estavam escolados em matéria de batucada, não tanto quanto os ouvidos do meu pai, dos meus avós ou dos meus tios, todavia nada mal para quem odiava o som de um cavaquinho...


         Diante de um marcado fonográfico cada vez mais comercial e menos cultural, o samba continua agonizando em praça pública, mas nunca morre. Em um século de vida, o mestre centenário já fez parcerias das mais inusitadas com a MPB: Nara Leão foi a primeira artista de seu núcleo musical elitista a buscar inspiração para cantar o Brasil através da obra de Zé Kéti e Cartola; Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil sempre foram extremamente respeitosos e reverentes com o legado de seus colegas sambistas; Divas da canção brasileira como Maria Bethânia, Marisa Monte, Zélia Duncan, Simone e Adriana Calcanhotto (re)gravaram clássicos e/ou renovaram a linguagem do samba com muita classe e propriedade; Tereza Cristina e Fabiana Cozza, por sua vez, conseguiram extrapolar os limites das rodas de samba e flertam constantemente com outros gêneros musicais; Mart’Nália e Diogo Nogueira, por exemplo, são muito mais do que “filhos de peixe” e conseguem sambar com seus próprios pés, sem a necessidade de depender do legado ou da força dos próprios pais. Por outro lado, outros músicos não necessariamente ligados às raízes do samba ou à elite da MPB conseguiram parcerias memoráveis com o samba: Marcelo D2 e Paula Lima são dois exemplos dos quais eu gosto bastante.


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         Este mestre centenário não possui quaisquer preconceitos ou cerimônias. Adora fazer dobradinhas com a já citada MPB, com o Soul, o Jazz e o Funk. O pagode romântico que tanto se ouve nas rádios mais popularescas só existe por causa dos velhos bambas que um dia fugiram da polícia e do governo. Nossa batucada nos ensinou a importância de nosso valor cultural não apenas para nós mesmos, como também para o resto do planeta. Não apenas por mero entretenimento ou diversão, mas principalmente por ser reflexo da luta de um povo contra quaisquer formas de injustiça e desigualdade. É a lição que vem da voz das ruas, não das rodinhas insossas de intelectuais repletas de empáfia e arrogância. É o samba o nosso primeiro e maior mestre em matéria de música popular.


E é, por isso e muito mais, que este jovem Vinícius pede ao mestre centenário não apenas a benção, como também lhe pede o seu mais sincero perdão. Sem pieguice ou oportunismo, mas com toda a sinceridade e amor...