20 de novembro de 2016

TROVA # 99

ALGUNS SEGREDOS MUSICAIS AO SOM DE ZÉLIA DUNCAN


Para Nilton Serra, no dia de seus 35 anos

You taught me precious secrets of the truth withholding nothing
You came out in front and I was hiding
But now I’m so much better
And if my words don’t come together
Listen to the melody
‘Cause my love is in there hiding

I love you in a place where there’s no space in time
I love you for in my life
You are a friend of mine
And when my life is over
Remember when we were together
We were alone and I was singing a song for you.
(Leon Russell, 1970)

Primeira vez que eu te vi
Meu coração não fez clique
Se ouvi ou vi, não vivi
Seu pique seu trique trique

Não vi sushi, sashimi
Nem Eros nem Afrodite
Primeira vez que eu te vi
Primeiro vi seus limites
(Christiaan Oyens & Itamar Assumpção, 2005)


Certa vez o sábio e saudoso poeta Torquato Neto escreveu: “Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas”. Se o co-autor de “Geleia Geral” tivesse escrito um texto sobre Zélia Duncan, ele diria que ela preferiria todas e mais uma. Não me recordo de nenhum artista cujo trabalho musical seja tão marcado pela diversidade quanto o de Zélia. É uma cantora, compositora e intérprete de uma coragem e dignidade impressionantes, qualidades raríssimas de ver por aí...



Devo confessar publicamente que demorei um bocado para fazer parte da festança musical de Dona ZD. Tenho alguns motivos: 1) minha dificuldade em compreender que o repertório dela era muito além da “Catedral” ou os lençóis do reggae que lhe fizeram famosa pelo Brasil inteiro; 2) uma boa dose de ciúmes desta nobre escorpiana; afinal de contas, o aquariano com ascendente em touro que vos escreve sempre demandou por atenção e exclusividade...



Nilton Serra, outro escorpiano obstinado e insistente, me ensinou não só a gostar do trabalho de Zélia, como também me ensinou a admirá-la profundamente. Aprendi que ser famoso e ser reconhecido não é fruto de mera celebridade ou dos reflexos dos louros colhidos de um sucesso na trilha sonora de uma das novelas de Silvio de Abreu. É resultado de muito trabalho, de várias parcerias e do amor de “um milhão de amigos”. Zélia Duncan é uma operária da canção, uma formiguinha sempre disposta a espalhar o seu canto por toda a parte. Despojada de quaisquer atributos ou cacoetes das “Divas da Música Brasileira”, compõe, produz, toca violão, guitarra, bandolim e canta com um dos registros vocais graves dos mais belos que eu já ouvi.



A primeira vez em que eu vi Zélia cantando ao vivo foi durante a gravação de um DVD ao vivo de Rita Lee, em 2004. Interpretou “Pagu” lado a lado da Rainha do Rock brasileiro e teve de fazer o número duas vezes para que a filmagem ficasse perfeita. Melhor para nós, mortais espectadores, que pudemos presenciar uma das parcerias mais bacanas da música nacional duas vezes em uma mesma noite. Nada mal para um carioca que sempre morreu de amores por São Paulo e viajava para a Terra da Garoa durante os feriados prolongados. Apesar de ter gostado muito, eu ouvia aquela voz grave com uma certa desconfiança...



Anos depois, já morando em São Paulo, fomos curtir um sábado em outra gravação de DVD, desta vez de Pré-Pós-Tudo-Bossa-Band, de Zélia. Tudo transcorria muito bem quando senti algo muito estranho dentro da boca ao comer um salgadinho. Resultado: tinha quebrado um dente minutos antes de chegar ao Auditório Ibirapuera. Por não se tratar de um dente da frente e por não estar sentindo nenhuma dor (apenas um desconforto gigantesco!), decidimos ir para o show mesmo assim. Assistimos Zélia Duncan em um dos momentos mais inspirados e produtivos de sua carreira diretamente da segunda fila do auditório e interpretando compositores de primeiríssima linha como Itamar Assumpção, Alice Ruiz e Paulinho Moska com muita competência e à frente de uma banda de músicos extraordinários.




Como toda filmagem tem lá os seus imprevistos, ficamos dentro da sala de espetáculos até 3 ou 4 da madrugada com ZD repetindo números de seu setlist, ralhando (coberta de razão!) com membros da equipe técnica para que o trabalho se concluísse a tempo dela não se sentir obrigada a servir o café da manhã para os heróicos espectadores ainda presentes no Auditório Ibirapuera. Ah, se todas as cantoras brasileiras tivessem este tipo de bom humor ao enfrentar imprevistos em cima do palco...



Poucos anos depois, retornamos a mais uma gravação de CD e DVD ao vivo no Auditório Ibirapuera: desta vez, em Amigo é Casa, no qual Zélia dividia o espetáculo com a cantora Simone. Duas noites de shows, duas noites virados na rua esperando pela abertura das catracas do metrô às 5 da manhã, pois (pobres e fodidos que éramos na época) não tínhamos carro ou sequer dinheiro para pegar um táxi para casa. Acima de tudo, nós éramos jovens de vinte e poucos anos felizes e topávamos qualquer noitada na rua ao lado de nossos queridos amigos. A formiga e a cigarra da música brasileira foram a trilha sonora daqueles tempos – canções de Gonzaguinha, Roque Ferreira, Guilherme Arantes e tantos outros fizeram a nossa cabeça e abriram ainda mais os meus ouvidos para o trabalho de Zélia Duncan.




Foi graças ao excelente disco Pelo Sabor do Gesto que Zélia Duncan finalmente conquistou este chato e exigente coração! Depois de ouvir todos os seus discos, creio que foi em 2009 que ZD achou o auge de sua forma – suas parcerias, sua voz e o seu repertório me atingiu em cheio. Fiquei um pouco triste por ela ter mudado a letra de “Ambição” – uma das minhas favoritas de Rita Lee –, mas adorei a escolha de uma canção obscura do cancioneiro da Rainha do Rock brasileiro. “Tudo Sobre Você” ficou impregnada nos meus ouvidos por um bom tempo. “Esporte Fino Confortável”, parceria de Zélia com Chico César, serve como piada interna entre nós e alguns de nossos amigos até hoje.




E foi graças ao show baseado em Pelo Sabor do Gesto que Nilton e eu cometemos a maior maluquice de toda a nossa história de frequentadores de shows: ir de São Paulo até Niterói para assistir a mais uma gravação de DVD de Zélia - dois shows em um mesmo dia no Teatro Municipal de Nikiti (um às 15h e outro às 18h), uma verdadeira maratona musical. Quando vi Lady Duncan linda e esplendorosa dentro de um vestido colorido de Ronaldo Fraga no palco daquele teatro aconchegante, deixei todo o mau humor da viagem de lado e curti aquele dia de domingo. Depois de algumas emoções e surpresas, voltamos para São Paulo, exaustos como nunca.





Fiquei encantado e emocionado com Tudo Esclarecido, CD e show no qual Zélia interpretava as canções do indefectível Itamar Assumpção. Entendi como o Jimi Hendrix conseguia ser um artista de inteligência e intensidade através da gigantesca reverência e competência de ZD – ninguém conseguirá me convencer da inexistência de outra gravação mais bela para “Noite Torta” do que a da filha de D. Loïse Duncan. Na mesma época, tivemos a oportunidade de vislumbrar a obra de Luiz Tatit com outros olhos através de ToTatiando. Zélia Duncan conseguiu a improvável façanha de deixar Tatit menos hermético através de uma perspectiva encantadoramente dramática de seu cancioneiro. Confesso que perdi as contas de quantas vezes assisti a este espetáculo, como também nem consigo me lembrar de quantas vezes já fui ao seu camarim e fomos recebidos com um sorriso largo que não parece ter mais fim.






Os excessos de compromissos profissionais, somados a algumas chegadas e partidas familiares nos tiraram de circulação por um bom tempo. Consequência direta: deixamos de acompanhar as gravações de DVD mais recentes de ZD. Por outro lado, fiquei bem contente quando surgiu a oportunidade de ver um show inédito de Zélia Duncan depois de um bom tempo. A felicidade dobrou quando soube que o espetáculo era baseado em Quando o Mundo Acabar, CD no qual Lady Duncan nos concedeu o luxo de ouvirmos alguns sambas consagrados e outros de sua própria autoria. No entanto, estávamos bem longe do palco e acomodados nas últimas cadeiras do teatro do SESC Vila Mariana. Deixei-me surpreender ao ver a cortina se abrir e me deparar com a artista saindo justamente do nosso lado para dar início a um espetáculo alegre e inteligente.



Zélia Duncan nunca tinha soado tão bela e jovial em cima de um palco para mim: em menos de duas horas de show, meu coração batucou com cavacos e cuícas que choravam com elegância. A moça em cena nem se parecia com aquela que substituiu Rita Lee no grupo Os Mutantes entre 2005 e 2007, com quem eu ralhava tanto, mas fui assistir no Parque da Independência mesmo assim... Minha implicância com ZD se transformou em uma admiração confessa, acrescida de uma inveja branca sem tamanho: como alguém que consegue fazer tanta coisa boa em termos de música tem a capacidade de escrever crônicas tão belas para o jornal O Globo toda sexta-feira?!






Aqui estão algumas de nossas historinhas tão particulares e preciosas com Zélia Duncan, a artista que mais tem contribuído para a intimidade dos nossos sons de alguns anos para cá. Existem outras anedotas a serem ditas, mas é melhor deixá-las para outro texto por questões de espaço – afinal, o amor e a admiração por ZD ultrapassam quaisquer limites. Quando eu conseguir me exprimir em palavras com um décimo da classe e da competência de Lady Duncan, eu escrevo outra crônica. "Por hoje é só"...




“Nem que eu contasse as gotas do mar, todos os dias
Pra me acalmar do que eu nunca fiz
Nem que eu parasse as ondas do ar, dia após dia
Descansaria as horas em mim,
Por hoje é só
Bruxas e reis sorriram pra mim,
Sei que é assim
Certo é errar, mas quando acordei corri devagar
Sem perceber cheguei aqui”
(Christiaan Oyens & Zélia Duncan, 1998)