4 de setembro de 2016

TROVA # 83

AS LIÇÕES DO MESTRE
(o que Chico Buarque me ensinou sobre a política do Brasil)


A minha tristeza não é feita de angústias
A minha tristeza não é feita de angústias
A minha surpresa

A minha surpresa é só feita de fatos
De sangue nos olhos e lama nos sapatos
Minha fortaleza

Minha fortaleza é de um silencio infame
Bastando a si mesma, retendo o derrame
A minha represa
(Chico Buarque & Ruy Guerra, 1973)

Dormia a nossa Pátria Mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações
(Chico Buarque, 1984)

 
 

     Foi em 2000, ano em que ingressei na Faculdade de Letras, que comecei a me interessar de vez pelos clássicos da MPB e descobri a obra de Chico Buarque de Hollanda. Graças à minha avó, D. Magaly, garimpei uma coletânea de Chico em seu quarto de som e minha maneira de olhar o Brasil e o mundo se modificou por completo. Ao ler sobre a biografia do filho de Sérgio Buarque de Hollanda e a importância de seu papel durante os anos de chumbo, constatei o quanto que este já fez e ainda faz por nossas artes e por nosso país ao ser reconhecido como um dos maiores estandartes de resistência contra a ditadura militar.



Em matéria de canção popular, nenhum artista escreveu melhor o Brasil “em versos e trovas” dos anos 1960 até agora do que Chico Buarque. Sua obra musical, suas peças teatrais e sua obra ficcional revelam um homem talentoso, íntegro, coerente e engajado com o processo de redemocratização do país e com os direitos básicos e essenciais dos pobres e necessitados. Uma referência artística, intelectual e moral para mim e para muitos. Um inimigo público de fôlego daqueles que odeiam o povo e a democracia. Não me encantam os seus belos olhos azuis (que realmente são lindos!), ou a sua voz “horrorosa” (discordo!), mas a beleza de seu caráter e talento. Chico foi um dos artistas que me inspiraram a fazer o que mais gosto na vida: escrever sobre literatura e música popular.


*
A campanha presidencial de 2014 me rendeu inúmeras inimizades através das redes sociais. Nenhuma postagem me rendeu tamanhas críticas e agressões gratuitas quanto um meme que colocava Chico Buarque e alguns intelectuais em oposição a Alexandre Frota, Lobão e outros notáveis defensores do antipetismo. Era uma provocação gratuita, dando a entender que apenas os que votavam no projeto de Dilma eram inteligentes e tinham bom gosto musical, por exemplo. Recebi desaforos de dar nojo por defender Chico pelo simples fato dele ser um militante de esquerda.


A internet se tornou um palco político e instrumento de guerra virtual e ver Chico Buarque ser enxovalhado em praça pública como um judas tem sido uma gigantesca ofensa pessoal. Falem mal de Ney Matogrosso perto de mim, falem mal de Maria Bethânia, condenem Caetano, Gil e Gal Costa, mas jamais ataquem a honra e a integridade de Chico em minha presença. Não por mera “chicolatria” e sim por causa do meu imenso respeito e admiração por ele, além do meu desprezo incansável por qualquer forma de injustiça.
Chico Buarque me ensinou três lições básicas: 1.ª) a palavra é algo de suma importância para a arte da escrita e da canção; 2.ª) coerência política é um princípio inquestionável, por isso, jamais devemos abrir mão dela; 3.ª) coragem é fundamental para tudo que se faz.



Um exemplo de como eu fiz uso da terceira lição para minha própria vida foi quando driblei temporariamente minha timidez e (depois de algumas aulas de canto e poucos ensaios) me apresentei cantando para um público aproximado de 50 pessoas em junho de 2014. Procurei várias facetas das canções de Chico para a ocasião: o amante, o lírico, o compositor que traduz a sensibilidade feminina, o malandro, o político... Foi bem legal “brincar” de cantor de palco por apenas uma noite, pois escolhi a obra de um dos artistas mais completos e engajados de nossa canção popular.

Foto: Mayra Peres Lima

A coragem tem sido o traço que Chico Buarque mais tem nos legado nestes anos mais recentes: enfrentou seus algozes de tendências fascistas na imprensa e nas ruas e não deixou de apoiar Dilma, Lula e o PT nem mesmo quando a base governista se esfacelava a olhos vistos e os ataques ao Governo Federal se intensificavam nas vésperas do Golpe de 2016. Driblou a turba fascista com classe e a malandragem digna de um Garrincha. Mesmo quando milhares de pessoas foram às ruas como massa de manobra de uma mídia irresponsável contra Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores. Mesmo quando uma parcela significativa dos intelectuais e da classe artística foi covardemente atacada pelos setores mais reacionários da sociedade brasileira. Mesmo nos momentos nos quais artistas foram abertamente comparados a vagabundos dependentes da Lei Rouanet.



Foi por tudo isso que eu não me surpreendi quando soube que Chico foi para Brasília com o intuito de assistir o discurso histórico de Dilma Rousseff na ocasião do julgamento do impeachment no Senado Federal na manhã de 29 de agosto de 2016. Afinal, tratava-se de um gesto solidário e coerente com as suas (e nossas) convicções sociopolíticas. Ele não estava lá para fazer “um samba bem pra frente” ou para pedir pela enésima vez que lhe afastassem o velho cálice repleto de sangue inocente. Ele estava na Capital Federal para assistir os últimos estertores da democracia que ele ajudou a reestruturar há mais de três décadas. Dilma foi agredida tal qual uma das personagens buarqueanas mais célebres, a Geni: levou pedras por ter desafiado os interesses das elites e dos corruptos, por ser uma mulher à frente de vários homens, por seus erros e por seus acertos políticos, pelo antipetismo fascista.



Consumado o golpe parlamentar que tirou Dilma Rousseff do poder em 31 de agosto de 2016, precisamos andar com a cabeça pelas tabelas de tão aflitos que andamos com o golpe fatal que nossa democracia sofreu. Voltamos a andar olhando pro chão e para os lados, preocupadíssimos com a repressão da polícia nas manifestações contra os golpistas que usurparam o poder sem a chancela do voto popular. Além disso, temos que manter muito cuidado e o bico calado pois o homem vem aí com medidas impopulares e perversas, tais como a reforma da previdência e a “modernização” da CLT, além de outros crimes hediondos contra o povo. Enquanto buscamos abrigo em uma bela canção e aguentar o tranco com dignidade, lutamos para que o estandarte do sanatório geral passe logo de uma vez por nós: afinal, um novo capítulo da História do Brasil precisa ser inaugurado com fatos mais justos e dignos da grandeza de nossa gente...


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Obrigado por tudo, querido Chico!
Você é mais do que meu caro amigo.
Você é a bússola e o alento daqueles que escolheram o lado mais justo da História. Afinal de contas, a coisa por aqui voltou a ficar preta. Haja mutreta para engolirmos esta situação e segurar este maldito rojão...