25 de julho de 2016

TROVA # 77

A HONESTIDADE NA TERRA DA CONFUSÃO

Grande Otelo como Macunaíma no filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade 



O seu dinheiro nasce de repente
E embora não se saiba se é verdade
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e felicidade

(...)

E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?
(Noel Rosa, 1933)
“There’s too many men, too many people
Making too many problems
And there’s not much love to go around
Can’t you see this is a land of confusion?

This is the world we live in
And these are the hands we’re given
Use them and let’s start trying
To make it a place worth living in”
(Tony Banks, Phil Collins & Mike Rutherford, 1986)

Se Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade vivesse por aqui em 2016, ele iria vociferar e repetir sem pestanejar: “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. A vida política brasileira sofreu um abalo sísmico profundo com o golpe que destituiu Dilma Rousseff no segundo ano de seu segundo mandato. Os responsáveis? As formigas comilonas que sempre busca(ra)m saciar a sua eterna gula.


Quem são as tais saúvas que seriam citadas por Macunaíma hoje? Os políticos desonestos e golpistas eleitos por nós para nos apunhalar abertamente no exercício de seus mandatos, um judiciário corrupto e conivente com a injustiça deste país e a grande mídia, pertencente às oligarquias econômicas brasileiras que distorcem os fatos e exploram a população. Estou bem longe de ser uma formiguinha gulosa: não pertenço ao rol daqueles que tiveram o privilégio de ter nascido em berço de ouro, tampouco fui vítima da ascensão social que me trouxe estabilidade financeira e ausência de senso crítico. Sou um trabalhador que ouve e pensa basicamente através da música que ouço e dos livros que leio. Mesmo assim, sei que sou, dentre a realidade de grande maioria dos brasileiros, um afortunado, por ter curso superior, pós-graduação em uma universidade federal e ter uma parcela considerável de conforto sem ter que roubar, enganar poucas pessoas ou desejar o mal de quase ninguém. Procuro ostensivamente por uma virtude que raramente se vê no Brasil: HONESTIDADE.


A inimiga número 1 da honestidade é a hipocrisia. As saúvas que devoram o nosso país todo dia são hipócritas por excelência. Vide o exemplo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, majoritariamente investigada por crimes de corrupção, julgando um processo de impeachment de uma governante eleita com 54 milhões de votos e que não enriqueceu, nem possui dinheiro público em paraísos fiscais na Suíça ou nas Ilhas Cayman. Membros do STF são acusados de receberam propina do PSDB e seus colegas juízes estão sempre dispostos a protegerem os malfeitos dos tucanos e maximizarem os erros de membros do PT, às vezes, sem provas concretas. A polícia reprime negros, pobres e honestos indiscriminadamente enquanto milhares de bandidos estão tranquilamente soltos por aí. Tudo isso recebe a bênção do quarto poder: a nata da imprensa brasileira – ou o GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão), uma nomeação alternativa cunhada por mim para que o renomado jornalista Paulo Henrique Amorim chama de PiG (Partido da Imprensa Golpista) – defende os interesses de uma dúzia de famílias oligarcas (Marinho, Civita, Frias e Mesquita entre elas) ao se revelar tendenciosa e afirmar descaradamente que o jornalismo que pratica é justo e imparcial.


A hipocrisia que se faz soberana em muitas salas de jantar deste país faz com que uma expressiva parcela da sociedade ignore as suas verdadeiras prioridades. Remover os petistas do governo federal (um projeto obsessivo e antigo das elites) tornou-se mais importante do que combater a crescente cultura do estupro e da homofobia, que faz milhares de vítimas enquanto uma agenda político-social conservadora toma conta do Brasil, majoritariamente orientada por políticos evangélicos. A privatização das Universidades públicas com a desculpa de que são um alto custo para os governos locais não merecem a mesma atenção do que o projeto de lei estapafúrdio de uma “escola sem partido” – lembremos, mais uma vez da frase antológica de Darcy Ribeiro: “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” – enquanto o legado de Paulo Freire é amaldiçoado por vários brasileiros enquanto o autor de Pedagogia da Autonomia é respeitadíssimo no exterior. Corruptos muito mais nocivos foram postos no poder no lugar de um grupo político supostamente desonesto. Enquanto o Rio de Janeiro está moral e financeiramente falido, um falso clima de euforia é embutido na rotina da população através de uma tocha olímpica que recebe mais atenção policial do que muitos criminosos à solta por aí. Delações premiadas se tornaram mais valorizadas do que demonstrações cabais de honestidade. Os hipócritas seguem animados com o seu projeto: o de inverter os valores mais básicos para nós.


Ao contrário do que aconteceu por aqui pós-1964, o Brasil ficou insuportavelmente polarizado entre “coxinhas” e “mortadelas”, deixando a inteligência literalmente de lado. O debate intelectualizado e qualificado foi substituído por ataques verbais (físicos, às vezes) de todos os tipos. A capacidade de análise tem sido sumariamente delegada aos meios de comunicação, que trazem seus juízos de valor para uma extensa parcela de indivíduos que mal leem ou interpretam e vestem a camisa da CBF para bater panelas em suas varandas gourmet, destilar seu fascismo contido dentro de si e protestar nas ruas e avenidas aos domingos. O resultado desta catástrofe? Grande parte da classe média e trabalhadora, que deveria litar pelos seus princípios e necessidades (educação e saúde de qualidade, segurança pública decente, meios de transporte dignos e decentes, etc.), passa a defender o discurso dos mais ricos (a não criação da CPMF, que atingiria diretamente quem tem mais dinheiro, não os mais pobres!) ao serem induzidos pela irresponsabilidade e conivência do GAFE. É a supremacia da hipocrisia. A honestidade se torna cada vez mais um mito a ser devorado pelas saúvas.


As redes sociais se converteram no palco principal de debates, agressões e busca de informações relevantes sobre políticas nos últimos anos, visto que órgãos de imprensa alternativa encontraram no Twitter e no Facebook terrenos férteis para a disseminação ética e responsável de notícias. Cabe ao usuário educar o seu olhar para “filtrar” o que lê para ter uma visão menos tendenciosa dos fatos ocorridos em nosso país. Com o intuito de ser mais uma alternativa de propagação responsável da informação, de protestar contra o golpe, a corrupção e a hipocrisia, além ser uma oposição irreverente ao GAFE e outros pilares da hipocrisia brasileira, Nilton Serra e eu idealizamos um “evento” fictício chamado Constantino, nos inclua na sua lista, baseado na lista “caça às bruxas” criada pelo macarthista anêmico Rodrigo Constantino, antigo pau mandado da revista Veja e do jornal O Globo. O sucesso da página nos surpreendeu imensamente, pois muitos de nós queríamos ser “boicotados” ao lado de gente ilustríssima como Chico Buarque e muitos outros. Compramos algumas brigas e fizemos novas amizades. Passamos a dividir a moderação do “evento”, pois não tínhamos tempo hábil (e ainda não temos, porque as salas de aula demandam muito de nossa vida útil) para dar conta de tudo sozinhos.


Às vésperas do golpe que tirou Dilma Rousseff do poder, o Cafeína – página coletiva de amantes de café da qual participamos desde sua criação e brilhantemente capitaneada por nossa querida amiga Ana Paula Raulickis, em 2006 – publicou uma carta de repúdio à crise política em nossa página no Facebook. Apesar de alguns protestos coxinhas bem agressivos dizendo que iriam “descurtir” nossa  página por causa de nossa virada à esquerda (que Dilma deveria ter dado assim que foi reeleita, mas não deu!), milhares de adesões ocorreram nos dias seguintes à publicação de nosso protesto coletivo. As explicações para isso? Café também rima com mortadela. Necessitamos de discussões de fôlego nas redes sociais, apenas isso.


Por fim, decidimos criar uma page para todos os que queriam ter seu nome na lista negra do anêmico MacCarthy à brasileira. Cerca de 17 mil pessoas acompanham as postagens do Coletivo Vozes Dissonantes – nome adotado por nós, após um longo período de discussões –, enquanto cerca de 132 mil já deram o seu “Like” na página do Cafeína. Já o evento fictício Constantino, nos inclua na sua lista possui em julho de 2016 a adesão de 20 mil revoltados genuínos com a situação calamitosa que o Brasil se encontra. Algo impressionante para quem luta contra o GAFE e outros “movimentos” de direita que distribuem suas “revoltas” online e são financiados pelo que existe de pior na política conservadora brasileira.



Ao ler uma das crônicas de Fernanda Torres incluídas em Sete Anos, encontrei algo bem interessante e que diz bastante acerca do momento político-cultural brasileiro no século XXI: “(...) eu guardo a suspeita de que o Brasil é um país que se situa entre a Veja e a CartaCapital”. Em outras palavras, nosso país está entre um filme de catástrofe e uma produção de ficção científica. Em uma época extremamente confusa e delicada politicamente, sinto cada vez mais a necessidade de parar de ler jornais e seguir rumo à ignorância para o que mais de honesto em mim não me leve ao encontro da loucura. No entanto, o desejo recorrente de me resguardar é apenas benéfico para os hipócritas de plantão. Graças à hipocrisia, assistimos a olhos vistos a mitificação da honestidade na terra da confusão. Enquanto eu puder cantarolar o samba do Noel e o rock do Genesis sem correr risco à minha integridade, haverá luta permanente contra a injustiça.


PÁGINAS:

Cafeína – 


Constantino, nos inclua na sua lista https://www.facebook.com/events/939298339519775/