15 de maio de 2016

TROVA # 70

A ANORMALIDADE NECESSÁRIA DE MARIA ALCINA


De normal batam os outros
É preciso ter coragem
Venha a nós o vosso reino
Quem não pode se sacode
Eu aceito só metade
E a família como vai?
(Arnaldo Antunes – “De Normal”, canção que deu o nome para o álbum De Normal Bastam os Outros, lançado por Maria Alcina no final de 2013)


Ainda me emociono bastante quando vejo determinados artistas do mundo da música que conseguem realizar seu ofício com extrema paixão. O público deixa de ser uma simples horda de pessoas que pagaram por um ingresso que lhe garante uma hora e meia ou duas de simples entretenimento. O palco deixa de ser um mero local de trabalho para se transformar em um santuário musical que reflete nossos desejos e sensações mais genuínas. Todos os presentes se tornam cúmplices de uma estrela que deseja fazer daquela noite um evento memorável. A isto damos o nome de arte.

Maria Alcina no SESC Belenzinho - SP,  18/02/2016
Foto: Nilton Serra

Maria Alcina é uma tradução e tanto para o que foi descrito acima. Tive a oportunidade singular de presenciar seu retorno definitivo ao mainstream com o CD e DVD De Normal Bastam os Outros, lançados entre 2013 e 2015. Quem pensa que os seus shows são um mero desfile de irreverência, confete e serpentina está plenamente enganado. Por trás de toda a purpurina e maquiagem pesada, há uma cantora de voz potente é poderosíssima, dona de um timbre vocal único e que consegue imprimir tratamentos distintos a canções da dupla João Bosco / Aldir Blanc como o antológico samba “Kid Cavaquinho” e o chocante blues “O Chefão”. Seu estilo inconfundível, nem um pouco sintonizado com os arroubos das Divas da MPB, é o diferencial de Alcina em um país de cantoras tão talentosas e bem-dotadas de talento.


De acordo com o produtor musical Thiago Marques Luiz, Maria Alcina é uma “artista singular que o Brasil entende e desentende, lembra d esquece, mas jamais deixa de aplaudir”. Descaradamente influenciada por Carmen Miranda, sua música faz uma conexão do presente com o passado, sem nenhuma presença de nostalgia. Sua arte é pautada em viés carnavalizante, cuja marca registrada é a sua voz bem-humorada e a sua personalidade esfuziante que tem cativado os brasileiros desde a sua consagração com “Fio Maravilha”, do Festival Internacional da Canção de 1972, ou de álbuns mais recentes como Confete & Serpentina (2009).




O que mais me impressionou a respeito da presença de palco de Maria Alcina foi justamente a sua brejeira simplicidade – típico de qualquer bela mineira de Cataguases – perante os músicos que a acompanhavam em cena, em relação ao público e até com as funcionárias da comedoria do SESC Belenzinho (o local do show), que ela fez questão de convidar ao palco para dançar junto dela ao som de “Prenda o Tadeu”, para delírio de todos os presentes. Além disso, o repertório do CD e DVD De Normal Bastam os Outros – composto por nomes de peso como Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, Karina Buhr e Anastácia – consegue dialogar com canções já clássicas do repertório de Alcina como “Fio Maravilha”, “Doida, Bonita e Gostosa” e “Bacurinha”. Não se trata apenas de uma grande cantora comemorando 40 anos de carreira musical, e sim o retorno de uma grande artista ao spotlight depois de algum tempo longe de seu público.



Karina Buhr & Maria Alcina no Theatro Net Rio - RJ, 10/06/2014
Foto: Mauro Ferreira

Injustiçada pela censura e pelo ostracismo das décadas de 1980 e 1990, Maria Alcina conseguiu se manter viva enquanto artista graças aos programas de auditório e de sua vontade incessante de querer cantar onde houvesse trabalho. Graças à Internet, às redes sociais (a cantora de “Kid Cavaquinho” pode ser facilmente encontrada no Facebook e no Instagram), à memória musical coletiva de seus fãs e dos esforços hercúleos do produtor musical Thiago Marques Luiz, o devido reconhecido foi concedido a um dos nomes mais inquietos da música brasileira.




Alcina é uma cantora que olha para a frente sem deixar de reverenciar o que foi produzido de melhor no passado. Resgatar o repertório de Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola em tempos nos quais muitos pouco conhecem o básico do cancioneiro popular brasileiro é mais do que um ato de reverência: é um serviço de utilidade pública! Em uma era na qual o “politicamente correto” e a “falsa inocência” na música brasileira, a anormalidade do canto de Maria Alcina é fundamental para o Brasil de hoje.



Nós dois ao lado de Maria Alcina após seu show no SESC Belenzinho - SP,  18/02/2016