30 de novembro de 2016

DISCOS DE VINIL # 9

ARETHA FRANKLIN – ARETHA IN PARIS (1968)


Enquanto os franceses estavam tomando as ruas para fazer as grandes revoluções e tentar derrubar o então presidente Charles de Gaulle do poder, a bela Aretha Louise Franklin, de 26 anos, estava levando a sua revolução para um dos palcos mais célebres da capital francesa: o Olympia de Paris.
Recém-saída de uma grande gravadora – a Columbia, que não tinha explorado o potencial da filha do Reverendo Franklin como deveria – Aretha modernizou sua imagem e passou a cantar Soul Music da melhor qualidade. A Atlantic Records lhe deu a chance de gravar três discos que lhe renderam hit singles de relativo sucesso e que, finalmente, apresentaram o que aquela jovem de vinte e poucos anos tinha de oferecer ao planeta.
Aretha in Paris reúne o sensacional repertório que Aretha Franklin gravou em seus três primeiros trabalhos na Atlantic: o seminal I Never Loved a Man The Way I Loved You (1967), o menos conhecido (e não menos importante) Aretha Arrives (1967) e o ES-SEN-CI-AL Lady Soul (1968). O canto de Aretha (alto, límpido, rascante, intenso, dramático) cresce a cada nota, a cada scat, a cada interpretação inconfundível que leva a assinatura de uma artista que estava redefinindo as bases da música negra que se fazia no planeta em 1968.



A banda que acompanha Aretha merece uma menção honrosa: além das imprescindíveis vocalistas de apoio (Carolyn Franklin – uma das irmãs da cantora -, Charnessa Jones e Wyline Ivey), que ofereciam o suporte necessário para que Lady Soul pudesse fazer com o que o seu canto voasse bem alto, havia o quarteto competentíssimo formado por Jerry Weaver (guitarra), Gary Illingworth (Piano), George Davidson (Bateria) e Rodderick Hicks (Baixo) e um time de, nada mais, nada menos do que OITO músicos que tocam instrumentos de sopro (sax tenor, sax barítono, trompete, trombone…). Em um total de QUINZE músicos no palco, todos eles estavam a serviço de uma das vozes mais belas e versáteis que os Estados Unidos da América já ofertaram ao resto do mundo: a de Aretha Franklin!


Ao ser anunciada para entrar no palco, os músicos começam a tocar uma versão Soul de “Satisfaction”, de Mick Jagger & Keith Richards, cuja letra e interpretação não possuem muito a ver com as insinuações libidinosas que os Rolling Stones deixavam claro no original. A releitura de Aretha, com metais em brasa, retira a conotação sexual e dá a sugestão de uma garota insatisfeita sentimentalmente. É a deixa perfeita para o próximo número “Don’t Let Me Lose This Dream”, parceria de Franklin com seu primeiro marido, Ted White: uma canção romântica, que fala de amor, que dá a oportunidade para que casais apaixonados se abracem e comecem a dançar pelo salão…


Terceiro número: acorde prolongado da guitarra de Jerry Weaver enquanto Aretha introduz, via vibratos, o primeiro verso de “Soul Serenade”, de Luther Dixon e Curtis Ousley: “Only you can hear my soul serenade”… Logo após, os metais entram discretamente, enquanto o quarteto prossegue com a batida e provocando, surpreendentemente, palmas do público. Na medida em que a canção evolui, os metais são soprados cada vez mais alto e Lady Soul, sem se intimidar, vai cantando com mais energia e volume, com mais e mais scats e fazendo vibrar cada sílaba da canção, fazendo de suas releituras obras-primas, principalmente por se tornarem irreconhecíveis em relação ao original. O mesmo processo ocorre no número seguinte, o soturno blues “Night Life”, de Willie Nelson, no qual Aretha consegue arrancar aplausos da plateia em cena aberta devido à intensidade de sua interpretação. Depois destes números, o público parisiense já estava literalmente nas mãos da filha do Reverendo Franklin.
A próxima faixa do disco foi o único hit single de Aretha Arrives: “Baby I Love You”, de Ronnie Shannon, autor de outro clássico da Rainha do Soul que trataremos logo a seguir. Com direito a metais em brasa e as vocalistas de apoio cantando e dançando num jogo que complementava a interpretação de Franklin, é um dos números mais dançantes do show do Olympia! Logo depois, o álbum segue com a releitura que Aretha fez para “Groovin” – que fez sucesso com The Young Rascals e com o Booker T. & the M.G’s em 1967 – em Lady Soul.
O Lado A de Aretha in Paris se encerra com uma das criações mais emblemáticas do repertório da canção de todos os tempos: “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”, parceria do casal Carole King e Gerry Goffin a partir de uma ideia do produtor de Aretha na Atlantic Records, Jerry Wexler. A canção, que se tornou um hino do feminismo moderno (pois retratar o sentimento amoroso feminino em uma década na qual normas de comportamento estavam sendo revistas) faz parte do repertório de Lady Soul e se tornou em uma das marcas registradas do trabalho de Aretha Franklin.
O Lado B do primeiro registro ao vivo de Aretha Franklin em disco se inicia com uma versão eletrizante de “Come Back Baby”, de Ray Charles, mais um número rápido com direito a arranjos de sopros incandescentes e vocais de apoio frenéticos. O show prossegue com Aretha sentada ao piano para tocar mais uma pareceria dela com Ted White, o pérfido blues “Dr. Feelgood (Love is a Serious Business)”, com direito a alguns grunhidos, scats lancinantes e interações com as vocalistas de apoio e com a própria plateia.
Mais uma faixa de Lady Soul coloca o show em um ritmo frenético e alucinante: “(Sweet Sweet Baby) Since You’ve Been Gone”, outra parceria de Aretha Franklin e Ted White, é outra canção que não deve ter deixado nenhuma pessoa no Olympia imóvel em seus assentos na medida em que a Rainha do Soul revela em pouco menos de dois minutos e meio. O final do disco reserva mais três pérolas que redefiniram a imagem e o som de Aretha; mais do que isso: trata-se de uma trinca de ases que fizeram da filha do Reverendo Franklin uma das maiores personalidades da música universal dos últimos tempos.
A primeira delas, “I Never Loved a Man (The Way I Love You)”, refaz uma das gravações mais emblemáticas de Aretha Franklin. A letra e melodia de Ronnie Shannon, na qual Aretha relata – com seu fraseado indefectível – os desencontros e as desventuras amorosas com o objeto de seu desejo, é uma das canções mais belas de todo o repertório da Soul Music. A segunda é a demolidora “Chain of Fools”, de Don Covay, cuja versão original também é de Franklin e está no emblemático Lady Soul, foi suficiente para incendiar a plateia e quem estiver ouvindo Aretha in Paris em qualquer parte do mundo.
A última das três é a ultra incendiária releitura de “Respect”, clássico de Otis Redding, que se tornou um dos emblemas mais significativos da liberação feminista no final dos anos 1960. A interpretação que Aretha Franklin deu para a canção é extremamente marcante pelo fato de que, na versão de estúdio, a Rainha do Soul, ao lado de suas irmãs de Erma e Carolyn, fizeram do estribilho original “But all I’m askin’ is for a little respect when I come home” algo inteiramente explosivo ao incluir ideias como a repetição da expressão “Sock it to me” (que, em Português, significa algo como “Pode me encarar, não tenho medo de você) e das letras da palavra RESPECT exasperadamente, com o intuito de vencer o algoz pelo cansaço, talvez.
O disco chega ao fim com a certeza de ter registrado uma das maiores cantoras de todos os tempos no auge de sua forma e de seu talento. A Aretha Franklin que o mundo ouvia em 1968 era uma cantora de Soul Music que tinha todo um background de cantora de Jazz e de standards e de uma infância na qual aprendeu o seu ofício (ou o seu dom divino, segundo a própria cantora) dentro do universo Gospel da Igreja na qual seu pai era Reverendo. Sem deixar de estar atenta às tendências musicais que ocorriam no ambiente musical de sua geração (Willie Nelson, Ray Charles, Otis Redding, The Rolling Stones) e de compor belas canções, Aretha tinha se tornado em uma das artistas mais modernas e ousadas de todos os tempos.


Aretha in Paris é um dos títulos mais importantes da discografia de Miss Franklin não apenas por ser um retrato de uma artista no melhor do exercício de seu ofício. Ao contrário do que foi dito sobre este disco na época, é um trabalho que deve ser ouvido e reouvido mais vezes por se tratar de um item raro e esgotado nas lojas de discos e para que as pessoas possam se lembrar e/ou saibam como são os princípios do bel-canto sem levar em consideração os enlatados que os reality shows tentam nos fazer digerir goela abaixo. 




27 de novembro de 2016

TROVA # 100

O MESTRE CENTENÁRIO
(uma declaração de amor ao samba no dia de seus 100 anos)



Meu bem, perdoa
Perdoa meu coração pecador
Você sabe que jamais
Eu viverei sem o seu amor
(Paulinho da Viola, 1976)


A primeira coisa que eu deveria fazer pelo samba, este mestre centenário, é lhe pedir perdão. Quando eu era mais jovem, no auge da minha sanha elitista e arrogante de pobre de direita, achava que a coisa mais chique do mundo era ouvir música em inglês. Ledo engano: no momento em que eu entendi o meu lugar de fala, de onde eu venho e tudo o mais, entendi que ser sambista é também ser chique e elegante, é nobreza de altíssimo nível, da patente das mais elevadas.
Um dos pouquíssimos orgulhos que ainda possuo de ser carioca de nascimento é o de ter nascido na mesma cidade que foi um dos berços principais do samba. Foi em um fundo de quintal de uma casa nas imediações da Praça Onze e do bairro do Estácio que o ritmo musical trazido pelos africanos para as bandas de cá começou a sua trajetória. Todo sambista carrega a ancestralidade dos escravos em seu DNA e deve agradecer à Tia Ciata por ter aberto as portas de sua residência para os primeiríssimos sambistas.


É também preciso pedir a benção de Donga por ter gravado “Pelo Telefone”, a primeiríssima gravação jamais feita de um samba em disco. E não podemos nos esquecer de pedir a proteção de Ismael Silva por ter sido o grande criador da primeira escola de samba. Por fim, não devemos nos esquecer que nossa ginga e malemolência é fruto da malandragem dos sambistas que faziam música e fugiam da polícia nos anos 1930 para poder ter o seu direito de expressão artística garantido. Sim, sambista brasileiro já teve cara de bandido...



É claro que alguns me dirão que o samba nasceu lá na Bahia, porém meu coração carioca sempre irá discordar ou ignorar esta tese. No entanto, isto é assunto para outro texto, que um dia prometo escrever...

*


Samba sempre foi assunto seríssimo lá dentro de casa. Meu tio Silvio Bertho, irmão mais velho de meu pai, foi advogado, boêmio e radialista dos bons – dizem que ele era dono de vastíssimo conhecimento de música e de um acervo de discos de samba de fazer inveja a muita gente; meu tio Celso Bertho também foi radialista e adorava um partido alto. Já do lado da família de minha mãe, os Rangel, não havia muita diferença: guardo a eterna referência musical dos discos dos meus avós – meu avô Adhemar, por exemplo, era um grande admirador da obra de Paulinho da Viola; já D. Magaly, minha avó, me apresentou à música de Bezerra da Silva. Foi graças a ela que eu descobri que o embaixador dos morros e favelas era mais Rock ‘n’ Roll do que muitos roqueiros juntos e enfileirados.



Por fim, não posso deixar de mencionar a contribuição do Sr. Orlando Bertho, meu Pai, para os meus ouvidos: ex-integrante da ala de bateria da União da Ilha do Governador, era chamado de “O Rei do Tamborim” por vários de seus amigos e colegas de escola de samba. O instrumento ainda existe e, se não me engano, volta à ativa todo mês de fevereiro durante as festas de Carnaval. Foi graças ao seu acervo de LPs, CDs e fitas K7 que eu ouvi falar em mestres do samba como Mestre Marçal, Beth Carvalho, Grupo Fundo de Quintal, Jorge Aragão e todos os clássicos do samba-enredo que passaram por metros e mais metros de avenida.




Diante dos exemplos familiares que citei, só posso chegar a uma conclusão hoje em dia: não tinha como fugir da batucada, pois ela já estava dentro do coração e dos ouvidos dos dois lados da família.

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         Foi depois dos meus 20 anos de idade – época em que ingressei na Faculdade de Letras – que o meu interesse pelo samba se deu de vez. Graças a Ney Matogrosso descobri a obra de Cartola graças a dois discos belíssimos com a fina flor da obra do Divino Mestre da Estação Primeira de Mangueira. Clara Nunes e Paulinho da Viola, estandartes da Portela, surgiram para mim neste período e me incentivaram a amar o azul e branco da principal escola de samba de Madureira. Logo depois da graduação, Maurício Martins do Carmo, meu ex-professor e ex-orientador de TCC, me pediu uma encomenda: uma pesquisa para um seminário comemorativo homenageando um dos maiores bambas do samba, Lamartine Babo. Fui nocauteado pela genialidade do grande criador de marchinhas carnavalescas de todo o Brasil e apresentei (modéstia à parte!) um belo trabalho no evento organizado pela Universidade Estácio de Sá.




         [Preciso fazer um adendo importante e necessário: se eu não tivesse me envolvido tão intensamente com o objeto de pesquisa da minha Dissertação de Mestrado e que resultou em meu primeiro livro – a obra musical do grupo Secos & Molhados –, creio que teria dado continuidade às minhas pesquisas sobre o samba. Quando eu for mais velho e um pouquinho mais sábio, espero poder oferecer minha contribuição para um dos temas mais debatidos em matéria de canção popular].



*

         Em 2006, dei um dos meus giros de 180 graus nesta vida e troquei o Rio de Janeiro por São Paulo. Troquei a Cidade Maravilhosa pela Terra da Garoa. Saí do berço em rumo ao “túmulo do samba”. Meu choque anafilático da troca de uma capital pela outra foi aliviado graças à obra de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa, uma das paixões musicais do Sr. Leonildo Moreira Serra, meu segundo pai – ele adorava ouvir as canções de um disco dos Demônios que eu converti para MP3 no carro enquanto dirigia. Nenhum compositor soube captar a alma paulistana com a sensibilidade apurada e irreverente de Adoniran, a voz principal do samba paulistano.


         Foi quando me converti em cidadão paulistano que os meus ouvidos se abriram de vez para o legado de outros bambas do samba: Noel Rosa & Aracy de Almeida, Carmen Miranda, Wilson Baptista & Mário Reis, Elza Soares, Martinho da Vila, Clementina de Jesus & Jovelina Pérola Negra, Carlos Cachaça & Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Alcione & Beth Carvalho, João Nogueira & Zeca Pagodinho... Sim, meus ouvidos já estavam escolados em matéria de batucada, não tanto quanto os ouvidos do meu pai, dos meus avós ou dos meus tios, todavia nada mal para quem odiava o som de um cavaquinho...


         Diante de um marcado fonográfico cada vez mais comercial e menos cultural, o samba continua agonizando em praça pública, mas nunca morre. Em um século de vida, o mestre centenário já fez parcerias das mais inusitadas com a MPB: Nara Leão foi a primeira artista de seu núcleo musical elitista a buscar inspiração para cantar o Brasil através da obra de Zé Kéti e Cartola; Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil sempre foram extremamente respeitosos e reverentes com o legado de seus colegas sambistas; Divas da canção brasileira como Maria Bethânia, Marisa Monte, Zélia Duncan, Simone e Adriana Calcanhotto (re)gravaram clássicos e/ou renovaram a linguagem do samba com muita classe e propriedade; Tereza Cristina e Fabiana Cozza, por sua vez, conseguiram extrapolar os limites das rodas de samba e flertam constantemente com outros gêneros musicais; Mart’Nália e Diogo Nogueira, por exemplo, são muito mais do que “filhos de peixe” e conseguem sambar com seus próprios pés, sem a necessidade de depender do legado ou da força dos próprios pais. Por outro lado, outros músicos não necessariamente ligados às raízes do samba ou à elite da MPB conseguiram parcerias memoráveis com o samba: Marcelo D2 e Paula Lima são dois exemplos dos quais eu gosto bastante.


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         Este mestre centenário não possui quaisquer preconceitos ou cerimônias. Adora fazer dobradinhas com a já citada MPB, com o Soul, o Jazz e o Funk. O pagode romântico que tanto se ouve nas rádios mais popularescas só existe por causa dos velhos bambas que um dia fugiram da polícia e do governo. Nossa batucada nos ensinou a importância de nosso valor cultural não apenas para nós mesmos, como também para o resto do planeta. Não apenas por mero entretenimento ou diversão, mas principalmente por ser reflexo da luta de um povo contra quaisquer formas de injustiça e desigualdade. É a lição que vem da voz das ruas, não das rodinhas insossas de intelectuais repletas de empáfia e arrogância. É o samba o nosso primeiro e maior mestre em matéria de música popular.


E é, por isso e muito mais, que este jovem Vinícius pede ao mestre centenário não apenas a benção, como também lhe pede o seu mais sincero perdão. Sem pieguice ou oportunismo, mas com toda a sinceridade e amor...


23 de novembro de 2016

DISCOS DE VINIL # 8

CARTOLA – CARTOLA (1974)

Angenor de Oliveira: também conhecido como Divino; ou chamado de Poeta das Rosas; foi também o marido de Dona Zica da Mangueira e um dos fundadores da Escola de Samba de sua comunidade. Para o resto do mundo, ficou conhecido apenas como Cartola.
Não podemos escrever a história da Música Brasileira sem mencionarmos a importância da obra deste gênio para todos nós. Cartola é considerado o maior sambista de toda a história da nossa canção: influenciou gerações e gerações, foi regravado por artistas que fazem parte do universo do Samba e da chamada “MPB” e gravou quatro discos antológicos na década de 1970 e que são fundamentais na coleção de qualquer amante da arte musical.
No entanto, a relação do Divino com o samba vem desde a década de 1920: em 1925 fundou um bloco de Carnaval que seria o embrião da Estação Primeira de Mangueira; na década de 1930 compôs (e vendeu) sambas para Francisco Alves, Mário Reis e Aracy de Almeida. Chegou a atuar como cantor de rádio na década de 1940, mas, aos poucos – motivado por dramas pessoais e por desavenças com a diretoria da Mangueira nos anos 40 – , deixou o meio musical.
A sorte de Cartola mudou em 1952, quando Stanislaw Ponte Preta encontrou o sambista trabalhando em condições modestas como flanelinha em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. O Poeta das Rosas, que tinha sido dado como desaparecido ou morto, foi levado a fazer algumas apresentações em rádios e restaurantes. No entanto, o que lhe trouxe o verdadeiro sucesso foi a união entre música (o samba da Mangueira) e comida (a lendária feijoada de D. Zica): o Zicartola era mais do que um simples restaurante: era um centro cultural no qual a Rua da Carioca fervilhava com encontros entre sambistas do morro, poetas-letristas, jornalistas, novos talentos, velhos bambas: Elizeth Cardoso, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Sérgio Cabral, Nara Leão, Zé Kéti, Carlos Cachaça e João do Vale eram alguns dos nomes que apareciam por lá…
Apesar de ter participado de algumas faixas avulsas de discos coletivos e de ter sido gravado por nomes de enorme prestígio como Paulinho da Viola, Clara Nunes, Nara Leão e Elza Soares, a consagração definitiva ainda estava por vir: prestes a completar 66 anos, Cartola ainda não tinha gravado seu próprio disco. O anjo da guarda que realizou este feito foi o publicitário, pesquisador musical e produtor de discos Marcus Pereira, que decidiu produzir o disco do Mestre Mangueirense.
Este álbum, que já nasceu clássico, reuniu o melhor do cancioneiro que Cartola produziu em uma vida inteira. Afinal, ninguém conseguiu a primazia de reunir no mesmo disco pérolas do naipe de “Acontece”, “Tive Sim”, “Amor Proibido”, “Disfarça e Chora”, “Corra e Olha o Céu”, “Sim”, “O Sol Nascerá (A Sorrir)” e “Alvorada”. Nestas canções, o sambista expôs sua visão, por assim dizer, anticonvencional do sentimento amoroso em versos tão belos e bem escritos – Cartola era leitor de poesia, especialmente de Castro Alves.
A estreia de Cartola em disco é um atestado de que o samba é uma de obra de arte imortal. A poesia deste Mestre fez com que o nome de Angenor de Oliveira transcendesse o universo das escolas de samba para ocupar um lugar dentre os gênios que levaram a música deste país um patamar de inventividade tal qual o fizeram Jobim, Villa-Lobos e alguns outros…

Salve, Cartola!

20 de novembro de 2016

TROVA # 99

ALGUNS SEGREDOS MUSICAIS AO SOM DE ZÉLIA DUNCAN


Para Nilton Serra, no dia de seus 35 anos

You taught me precious secrets of the truth withholding nothing
You came out in front and I was hiding
But now I’m so much better
And if my words don’t come together
Listen to the melody
‘Cause my love is in there hiding

I love you in a place where there’s no space in time
I love you for in my life
You are a friend of mine
And when my life is over
Remember when we were together
We were alone and I was singing a song for you.
(Leon Russell, 1970)

Primeira vez que eu te vi
Meu coração não fez clique
Se ouvi ou vi, não vivi
Seu pique seu trique trique

Não vi sushi, sashimi
Nem Eros nem Afrodite
Primeira vez que eu te vi
Primeiro vi seus limites
(Christiaan Oyens & Itamar Assumpção, 2005)


Certa vez o sábio e saudoso poeta Torquato Neto escreveu: “Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas”. Se o co-autor de “Geleia Geral” tivesse escrito um texto sobre Zélia Duncan, ele diria que ela preferiria todas e mais uma. Não me recordo de nenhum artista cujo trabalho musical seja tão marcado pela diversidade quanto o de Zélia. É uma cantora, compositora e intérprete de uma coragem e dignidade impressionantes, qualidades raríssimas de ver por aí...



Devo confessar publicamente que demorei um bocado para fazer parte da festança musical de Dona ZD. Tenho alguns motivos: 1) minha dificuldade em compreender que o repertório dela era muito além da “Catedral” ou os lençóis do reggae que lhe fizeram famosa pelo Brasil inteiro; 2) uma boa dose de ciúmes desta nobre escorpiana; afinal de contas, o aquariano com ascendente em touro que vos escreve sempre demandou por atenção e exclusividade...



Nilton Serra, outro escorpiano obstinado e insistente, me ensinou não só a gostar do trabalho de Zélia, como também me ensinou a admirá-la profundamente. Aprendi que ser famoso e ser reconhecido não é fruto de mera celebridade ou dos reflexos dos louros colhidos de um sucesso na trilha sonora de uma das novelas de Silvio de Abreu. É resultado de muito trabalho, de várias parcerias e do amor de “um milhão de amigos”. Zélia Duncan é uma operária da canção, uma formiguinha sempre disposta a espalhar o seu canto por toda a parte. Despojada de quaisquer atributos ou cacoetes das “Divas da Música Brasileira”, compõe, produz, toca violão, guitarra, bandolim e canta com um dos registros vocais graves dos mais belos que eu já ouvi.



A primeira vez em que eu vi Zélia cantando ao vivo foi durante a gravação de um DVD ao vivo de Rita Lee, em 2004. Interpretou “Pagu” lado a lado da Rainha do Rock brasileiro e teve de fazer o número duas vezes para que a filmagem ficasse perfeita. Melhor para nós, mortais espectadores, que pudemos presenciar uma das parcerias mais bacanas da música nacional duas vezes em uma mesma noite. Nada mal para um carioca que sempre morreu de amores por São Paulo e viajava para a Terra da Garoa durante os feriados prolongados. Apesar de ter gostado muito, eu ouvia aquela voz grave com uma certa desconfiança...



Anos depois, já morando em São Paulo, fomos curtir um sábado em outra gravação de DVD, desta vez de Pré-Pós-Tudo-Bossa-Band, de Zélia. Tudo transcorria muito bem quando senti algo muito estranho dentro da boca ao comer um salgadinho. Resultado: tinha quebrado um dente minutos antes de chegar ao Auditório Ibirapuera. Por não se tratar de um dente da frente e por não estar sentindo nenhuma dor (apenas um desconforto gigantesco!), decidimos ir para o show mesmo assim. Assistimos Zélia Duncan em um dos momentos mais inspirados e produtivos de sua carreira diretamente da segunda fila do auditório e interpretando compositores de primeiríssima linha como Itamar Assumpção, Alice Ruiz e Paulinho Moska com muita competência e à frente de uma banda de músicos extraordinários.




Como toda filmagem tem lá os seus imprevistos, ficamos dentro da sala de espetáculos até 3 ou 4 da madrugada com ZD repetindo números de seu setlist, ralhando (coberta de razão!) com membros da equipe técnica para que o trabalho se concluísse a tempo dela não se sentir obrigada a servir o café da manhã para os heróicos espectadores ainda presentes no Auditório Ibirapuera. Ah, se todas as cantoras brasileiras tivessem este tipo de bom humor ao enfrentar imprevistos em cima do palco...



Poucos anos depois, retornamos a mais uma gravação de CD e DVD ao vivo no Auditório Ibirapuera: desta vez, em Amigo é Casa, no qual Zélia dividia o espetáculo com a cantora Simone. Duas noites de shows, duas noites virados na rua esperando pela abertura das catracas do metrô às 5 da manhã, pois (pobres e fodidos que éramos na época) não tínhamos carro ou sequer dinheiro para pegar um táxi para casa. Acima de tudo, nós éramos jovens de vinte e poucos anos felizes e topávamos qualquer noitada na rua ao lado de nossos queridos amigos. A formiga e a cigarra da música brasileira foram a trilha sonora daqueles tempos – canções de Gonzaguinha, Roque Ferreira, Guilherme Arantes e tantos outros fizeram a nossa cabeça e abriram ainda mais os meus ouvidos para o trabalho de Zélia Duncan.




Foi graças ao excelente disco Pelo Sabor do Gesto que Zélia Duncan finalmente conquistou este chato e exigente coração! Depois de ouvir todos os seus discos, creio que foi em 2009 que ZD achou o auge de sua forma – suas parcerias, sua voz e o seu repertório me atingiu em cheio. Fiquei um pouco triste por ela ter mudado a letra de “Ambição” – uma das minhas favoritas de Rita Lee –, mas adorei a escolha de uma canção obscura do cancioneiro da Rainha do Rock brasileiro. “Tudo Sobre Você” ficou impregnada nos meus ouvidos por um bom tempo. “Esporte Fino Confortável”, parceria de Zélia com Chico César, serve como piada interna entre nós e alguns de nossos amigos até hoje.




E foi graças ao show baseado em Pelo Sabor do Gesto que Nilton e eu cometemos a maior maluquice de toda a nossa história de frequentadores de shows: ir de São Paulo até Niterói para assistir a mais uma gravação de DVD de Zélia - dois shows em um mesmo dia no Teatro Municipal de Nikiti (um às 15h e outro às 18h), uma verdadeira maratona musical. Quando vi Lady Duncan linda e esplendorosa dentro de um vestido colorido de Ronaldo Fraga no palco daquele teatro aconchegante, deixei todo o mau humor da viagem de lado e curti aquele dia de domingo. Depois de algumas emoções e surpresas, voltamos para São Paulo, exaustos como nunca.





Fiquei encantado e emocionado com Tudo Esclarecido, CD e show no qual Zélia interpretava as canções do indefectível Itamar Assumpção. Entendi como o Jimi Hendrix conseguia ser um artista de inteligência e intensidade através da gigantesca reverência e competência de ZD – ninguém conseguirá me convencer da inexistência de outra gravação mais bela para “Noite Torta” do que a da filha de D. Loïse Duncan. Na mesma época, tivemos a oportunidade de vislumbrar a obra de Luiz Tatit com outros olhos através de ToTatiando. Zélia Duncan conseguiu a improvável façanha de deixar Tatit menos hermético através de uma perspectiva encantadoramente dramática de seu cancioneiro. Confesso que perdi as contas de quantas vezes assisti a este espetáculo, como também nem consigo me lembrar de quantas vezes já fui ao seu camarim e fomos recebidos com um sorriso largo que não parece ter mais fim.






Os excessos de compromissos profissionais, somados a algumas chegadas e partidas familiares nos tiraram de circulação por um bom tempo. Consequência direta: deixamos de acompanhar as gravações de DVD mais recentes de ZD. Por outro lado, fiquei bem contente quando surgiu a oportunidade de ver um show inédito de Zélia Duncan depois de um bom tempo. A felicidade dobrou quando soube que o espetáculo era baseado em Quando o Mundo Acabar, CD no qual Lady Duncan nos concedeu o luxo de ouvirmos alguns sambas consagrados e outros de sua própria autoria. No entanto, estávamos bem longe do palco e acomodados nas últimas cadeiras do teatro do SESC Vila Mariana. Deixei-me surpreender ao ver a cortina se abrir e me deparar com a artista saindo justamente do nosso lado para dar início a um espetáculo alegre e inteligente.



Zélia Duncan nunca tinha soado tão bela e jovial em cima de um palco para mim: em menos de duas horas de show, meu coração batucou com cavacos e cuícas que choravam com elegância. A moça em cena nem se parecia com aquela que substituiu Rita Lee no grupo Os Mutantes entre 2005 e 2007, com quem eu ralhava tanto, mas fui assistir no Parque da Independência mesmo assim... Minha implicância com ZD se transformou em uma admiração confessa, acrescida de uma inveja branca sem tamanho: como alguém que consegue fazer tanta coisa boa em termos de música tem a capacidade de escrever crônicas tão belas para o jornal O Globo toda sexta-feira?!






Aqui estão algumas de nossas historinhas tão particulares e preciosas com Zélia Duncan, a artista que mais tem contribuído para a intimidade dos nossos sons de alguns anos para cá. Existem outras anedotas a serem ditas, mas é melhor deixá-las para outro texto por questões de espaço – afinal, o amor e a admiração por ZD ultrapassam quaisquer limites. Quando eu conseguir me exprimir em palavras com um décimo da classe e da competência de Lady Duncan, eu escrevo outra crônica. "Por hoje é só"...




“Nem que eu contasse as gotas do mar, todos os dias
Pra me acalmar do que eu nunca fiz
Nem que eu parasse as ondas do ar, dia após dia
Descansaria as horas em mim,
Por hoje é só
Bruxas e reis sorriram pra mim,
Sei que é assim
Certo é errar, mas quando acordei corri devagar
Sem perceber cheguei aqui”
(Christiaan Oyens & Zélia Duncan, 1998)