O final da década de 1980 prometia uma
série de mudanças para a música do planeta. Madonna, uma das protagonistas da
música e dos costumes que revolucionaram conceitos e definiram uma era, não
estava incólume a tais ventos de renovação.
No final de 1988, Madge tinha acabado
de completar 30 anos, vivia um casamento em crise com Sean Penn, tentava uma
carreira de atriz séria em Hollywood e na Broadway (sem a mesma repercussão de Desperately Seeking Susan, sua estreia
na telona) e via a necessidade de renovar a sua imagem e som. Ou seja, a música
Pop de Madonna, que lhe rendeu
clássicos como “Everybody”, “Holiday”, “Material Girl” e “Dress You Up”
necessitava se tornar mais adulta, menos voltada para as meninas adolescentes
que imitavam os figurinos e trejeitos explorados por ela nas turnês dos álbuns Like a Virgine True Blue. Abordar temáticas mais maduras
e menos juvenis tornou-se prioridade para a Pop
Star.
A Madonna que surgiu para os olhos do
grande público em 1989 tinha sofrido a mutação camaleônica mais radical que
aquele espécime poderia ter tido até então. Seus cabelos tinham abandonado a
tintura loira platinada de Nikki Finn, sua personagem alter-ego do filme Who’s That Girl?, para assumirem um tom
castanho escuro. Seu figurino era, surpreendentemente, mais recatado e discreto
– justamente para despistar o mundo da música com a grande revolução que já
estava em curso.
O casório com Penn chegava finalmente
ao fim com a alegação de “diferenças irreconciliáveis” em janeiro de 1989
quando, na verdade, todos sabiam que Sean era dotado de um ciúme extremamente
doentio e que chegava por vezes a bater em fotógrafos e submeter a então esposa
em episódios de cárcere privado (isso quando Madonna não apanhava literalmente do
então marido).
A chegada aos 30 anos de idade fez com
que a perda precoce da mãe (levada pelo câncer pouco depois de ter completado 30
anos de idade) e a relação delicada com o pai se tornassem ainda mais doloridas
e agudas e, com tudo isso, junte-se muita sexualidade reprimida pela
religiosidade extrema de uma família católica. Eis a atmosfera que fez do álbum
Like a Prayera obra-prima
de Lady Madonna até aquele momento.
A faixa-título abre o disco com uma
guitarra distorcida, um coral de negros, um órgão Hammond B-3 e Madonna
anunciando que a vida é um mistério e que todos nós deveríamos nos manter de pé
sozinhos, porém ao ouvir um chamado especial, nos sentimos amparados como se
estivéssemos em casa e livres de toda a solidão. A prece de Madonna (uma ode
musical ao grupo Sly & The Family Stone) era muito simples, muito direta, porém
ninguém tinha ideia do quão seria provocante até ver o vídeo dirigido pela
diretora Mary Lambert, a mesma que dirigiu a Pop Star em “Like a Virgin”: Madge aparece como testemunha de um
crime cometido por um rapaz negro, depois convertido em santo religioso.
Nenhum problema se Madonna não tivesse
aparecido beijando lascivamente este símbolo religioso na boca e muito menos se
ela não aparecesse dançando freneticamente à frente de cruzes em chamas
proclamando que através da sua prece, sua voz me leva para onde você quiser que
eu vá, blá blá blá…
A mídia ficou em estado de choque, as
instituições religiosas ficaram revoltadas (o Papa João Paulo II liderou um
boicote contra o videoclipe) e a Pepsi – que patrocinaria a próxima turnê
mundial da Diva – decidiu cancelar o apoio financeiro milionário e Madonna foi
eleita pela MTV americana e outros veículos de mídia da época como a artista da
década. O escândalo, mais uma vez, rendeu imensa popularidade à uma das
artistas que melhor souberam se utilizar da mídia e do marketing para promover
sua imagem e som.
A produção do disco ficou dividida
entre Madonna e seus parceiros produtores/compositores Patrick Leonard
(geralmente responsável pelas baladas do álbum) e Stephen Bray (que ficou a
cargo das faixas mais funky desta
coleção) e ainda contou com a participação especial de Prince, que tocou vários
instrumentos e ainda dividiu os vocais e os créditos de “Love Song”. Em linhas
gerais, Like a Prayeré um marco que redefine os limites do Pop, com as letras
mais confessionais que Madge escrevera até então. “Express Yourself” é um hino
feminista, que aponta para que as mulheres jamais devem se satisfazer com a
possibilidade de ficar em segundo plano. “Oh Father” e “Promise to Try” são
duas baladas tristíssimas e respectivamente dedicadas ao seu pai e à sua mãe.
Já “Keep it Together”, parceria dela com Bray, é uma ode à toda sua família (a Pop Star possui um total de sete irmãos
e meio-irmãos).
Like a Prayerrendeu
seis singles de sucesso para Madonna: “Like a Prayer”, “Express Yourself”,
“Cherish” – que contou com um videoclipe antológico em preto e branco dirigido
pelo fotógrafo de moda Herb Ritts), “Oh Father”, “Dear Jessie” (cantiga
infantil dedicada à filha de Patrick Leonard) e “Keep it Together”. “Till Death
Do Us Part” é uma mensagem clara e feroz ao já ex-marido Sean Penn, “Spanish
Eyes” toca no ainda tema tabu da AIDS, que já tinha começado a dizimar milhares
de pessoas ao redor do mundo e “Act of Contriction” mistura trechos da Bíblia
Sagrada com monólogos de Madonna com a guitarra de Prince e lobos de vocalises
do Andrae Crouch Choir (que cantou na faixa-título) em dois minutos e dezenove
segundos de delírio religioso.
A partir de 1989, o mundo passou a
olhar para Madonna não apenas como uma mulher que realmente tinha o poder de
influenciar pessoas, mas principalmente como o de uma Pop Star que iria mudar o
mundo. Like a Prayerfoi a jogada fundamental para que Madge redefinisse as
noções de imagem e entretenimento: quem quisesse fazer parte deste mundo,
deveria seguir os rastilhos de pólvora deixados por esta baixinha saída de Bay
City, Michigan, para invadir as casas de todo o planeta e rezar o seu credo.
Por isso, prepare os seus ouvidos e o
seu coração e ouça/veja/sinta a Paixão segundo Madonna…
"Does it feel that your life's become a catastrophe
Oh, it
has to be for you to grow, boy..."
(Richard Davies & Roger Hodgson,
1979)
Para D. Elizabeth, minha mãe, no dia dos seus 60
anos.
Em mais de uma década e meia como
estudante e professor de Literatura, fui desafiado a interpretar textos e
personagens dos mais diversos. Nenhum destes, entretanto, é mais desafiador
para mim do que uma personagem da vida real, a mais importante de todas elas,
diga-se de passagem. Escrever sobre esta personagem é tão desafiador quanto
escrever um Projeto de Doutorado, por exemplo...
Minha mãe, D. Elizabeth, tem nome
de rainha. Personalidade fortíssima. Dela herdei os olhos castanhos e o sorriso
que faz os olhinhos encolherem de felicidade. Não sei se a inspiração para
os meus avós maternos escolherem o nome dela foi para homenagear a Rainha da
Inglaterra ou Liz Taylor. Ao contrário do que o nome sugere, nunca sentou
soberana em um trono com um cetro na mão: sempre batalhou como a melhor das
operárias para o bem-estar do marido, dos filhos e daqueles que ela ama.
Nem sempre consegui ter a melhor
interpretação de minha mãe. Em muitos momentos eu a questionei, a contestei e
fiz coisas das quais eu hoje me envergonho. Ao olhar para o retrovisor do tempo
e das memórias, penso na quantidade de erros que cometi e na necessidade de
sempre aprender com cada um deles. Nada fácil para pessoas contestadoras,
geniosas e orgulhosas como eu. Depois dos 30, nossos egos ficam em segundo
plano e nos permite maior serenidade para olhar para tudo com mais honestidade.
De perto ou de longe, D. Beth
nunca deixou de me apoiar naquilo que eu quisesse fazer. Sempre foi exigente
com meus estudos - não seria quem eu sou hoje se não fosse por ela, que abriu
mão de uma carreira em nome dos filhos. Nos tropeços e nas vitórias, sempre
teve sua palavra de apoio e a torcida mais intensa. Mesmo quando eu achava que
o presente era uma catástrofe e o futuro nada promissor, lá estava ela para me
dizer que não deveria desistir jamais.
Pensei que minha mãe chegaria aos
60 anos como as típicas senhorinhas de antigamente: em vestidos cheirando a
naftalina, com cabelos brancos e sentada em uma cadeira de balanço. Como D.
Beth sempre foi preocupadíssima com saúde e bem-estar, decidiu investir
seriamente para jamais atingir este velho e surrado estereótipo. E conseguiu:
Betinha (para os íntimos) atingiu a marca dos 60 dando um banho em muitas
mulheres da idade dela.
D. Beth descobriu a fonte da juventude
aos 50, quando começou a praticar corridas. Começou com caminhadas para se
livrar do cigarro; depois começou a andar mais rápido; em pouco tempo, passou a
fazer corridas de 6km aos domingos; há dois anos, pelo menos, faz
meias-maratonas e nos enche de orgulho. Hoje em dia, é raro para mim
acordar aos domingos e NÃO encontrar fotos de D. Beth correndo para lá e para
cá em cada um dos cantos do Rio de Janeiro, dando um banho de disposição em mim
e em tantos outros que vivem uma vida sedentária.
Falar deste e de outros aspectos
de D. Beth é muito pouco para descrever a importância dela para mim, meu Pai,
meu irmão, meu sobrinho e todas as pessoas da nossa família. Minha Mãe é muito,
muito mais do que isso. Acredito que ela adoraria ser lembrada daqui a 100 anos
como filha, irmã, esposa, mãe, tia e avó que adorava correr maratonas. Por
isso, não só desejo vida longa a ela por ela ter me carregado no ventre por
nove meses e por sempre ter sido quem ela foi e é. Quero que Queen Elizabeth
viva bastante para que ela possa continuar inspirando tantas pessoas por ela ser
o exemplo de vida que ela é.
Nossas referências de vida devem
ser homenageadas diariamente. Por isso deixo registrado em forma de crônica
para que ela sempre possa se lembrar do filho mais velho, que gostava de
escrever desde bem criança...
Eu era uma criança de nove anos de
idade quando vi Marisa Orth pela primeira vez na TV. Tínhamos retornado ao Rio
de Janeiro depois de um tempo morando em Porto Alegre por causa das obrigações
profissionais de meu pai e assistíamos as novelas das 8 com uma assiduidade
religiosa. Naquela época, Marisa despontava como Nicinha, a namorada esfuziante
e ninfomaníaca de Antônio Fagundes em Rainha
da Sucata, de Silvio de Abreu. Aquele trabalho fez da jovem
atriz uma estrela que brilharia intensamente na TV, nos palcos e em grandes
produções do Cinema Brasileiro.
Marisa Orth na novela Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu
Marisa Orth como Maralu Menezes
Outra lembrança, bem remota, de Marisa
era quando ela encarava a cantora e apresentadora de TV Maralu Menezes e estava
à frente da antológica banda Vexame. Também lembro de sua participação como a hostess do primeiro Video Music Brasil, prêmio anual da finada e saudosa MTV Brasil que
premiava os melhores videoclipes brasileiros da safra 1994-1995. Um detalhe
importante: o penteado bufante, o vestido extravagante e o tipo físico da bela
atriz (Marisa é uma mulher bem alta, o que lhe dá um status de uma versão
feminina de Golias em cima de qualquer palco) eram a cara da MTV da primeira metade
da década de 1990 – irreverente, sexy
e sofisticadamente debochada.
Marisa Orth no primeiro Video Music Brasil, da extinta e saudosa MTV Brasil
Marisa Orth como Magda no humorístico Sai de Baixo
Marisa Orth em Doces Poderes, de Lúcia Murat
Marisa Orth em Durval Discos, de Anna Muylaert
O que sempre me chamou a atenção em
relação à Marisa Orth é o fato dela ser distinta de outras atrizes: a inteligência,
a versatilidade na realização de papeis cômicos e dramáticos e a belíssima voz
de mezzo soprano quando abria a boca
para cantar. Jamais iremos nos esquecer da tapada gostosona Magda, que roubava
a cena do humorístico Sai de Baixo e que
era bem diferente da atendente da sorveteria de Durval Discos e da corretora de imóveis mal-humoradíssima de Toma Lá, Dá Cá e de Valéria, a gerente
executiva chorona e deliciosamente amargurada de Odeio Segundas. Gostava muito de suas intervenções durante as
primeiras temporadas do Saia Justa,
programa que dividia com Rita Lee, Fernanda Young e Mônica Waldvogel. Sempre quis
ter assistido uma apresentação da Vexame ou do Show do Gongo só para poder ver
o talento de Marisa em ação diante de poucos metros de distância pelo simples
fato dela ser uma artista que combina inteligência, bom humor, drama, melodrama,
música brega e stand up comedy como pouquíssimos
no meio artístico brasileiro...
Marisa Orth como Rita em Toma Lá, Toma Cá
Marisa Orth como Valéria em Odeio Segundas
Marisa Orth, Fernanda Young, Rita Lee e Mônica Waldvogel na primeiríssima formação do programa Saia Justa
*
As grandes oportunidades sempre
aparecem em nossas vidas do modo mais inesperado e surpreendente. Depois de uma
batalha em vão para comprar ingressos para uma série de shows de Ney Matogrosso
em São Paulo, tínhamos descoberto que o Auditório Ibirapuera receberia uma
apresentação do espetáculo Romance,
Vol. III: Agora Vai!, no qual Marisa cantava clássicos do
cancioneiro romântico nacional e internacional. E com um aditivo: vários
momentos de stand up comedy, dando um
banho tremendo em muitos desses comedians
que se apresentam por aí... O melhor de tudo era a possibilidade de ver Marisa
Orth cantando a pouquíssimos metros de distância, ao contrário da leve
frustação passada quando a vi encarnando a hilária Mortícia Addams no musical A
Família Addams sentado em uma das cadeiras mais afastadas do Teatro Renault.
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Romance,
Vol. III: Agora Vai! é a continuidade de Romance,
Vol. II
(2009), no qual Marisa Orth canta canções de amor que abordam os
dramas da paixão a partir de seus altos e baixos – ao contrário do que eu e
muitos outros pensavam, Marisa não realizou o Romance,
Vol. I por achar que seria um título excessivamente pretensioso
para um espetáculo, mas que um dia fará o Romance,
Vol. I: Finalmente liberado sem cortes e com alguns arranhões!.
A primeira versão do projeto, que
gerou um CD, tinha versões para “I’m Not in Love” (10cc), “Minha Fama de Mau”
(Roberto & Erasmo Carlos), “Sofre” (Tim Maia), “Demais” (Antônio Carlos Jobim
& Aloysio de Oliveira), “Fruto Proibido” (Rita Lee), dentre outras. Para a
segunda versão do espetáculo, Marisa Orth incluiu outras pérolas do repertório
amoroso que faz a cabeça de todas as tribos como “Transas de Amor (Os Sonhos de
Quem Ama)” (Marina Lima & Antônio Cícero), “Ciúmes de Você” (Luiz Ayrão), “De
Tanto Amor” (Roberto & Erasmo Carlos), além de “I Feel Love”, Aparências”, “Baby
Come Back” e “Fala”, sucessos de Donna Summer, Márcio Greyck, Player e do
lendário grupo Secos & Molhados. Ao setlist
deste trabalho ainda tivemos uma leitura bastante descontraída para “As Dores
do Mundo”, de Hyldon, e a hilária “Insanidade Temporária” (de André Abujamra
& Flávio de Souza – gravada no CD Romance,
Vol. II), no qual podíamos ver o diferencial de uma cantora que
também é uma atriz singular.
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
As facetas do romance são contempladas
com toda a irreverência possível: Marisa Orth ora se comporta como uma mulher
fatal, ora faz as vezes de uma pesquisadora que pretende palestrar sobre
relacionamentos para o público pagante com o intuito de decifrar os mistérios
das relações humanas. O fator complicador dos encontros amorosos seria
justamente o cérebro, este órgão que, segundo Marisa, “trabalha
24h por dia desde o dia que nasce até o dia em que se apaixona”. A hostess do show fala de suas experiências
amorosas, entrevista o público, faz piada com os presentes, faz troça e drama
em cima de suas próprias desgraças amorosas: a quintessência do romance,
impulsionado pelo que há de melhor de brega e chique presente na canção
popular.
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
O que aprendemos depois de duas horas
de espetáculo? O romance musical de Marisa Orth nos ensina que toda relação
amorosa é feita de altos e baixos, de vitórias e derrotas, INs e OUTs. Devemos
chorar quando preciso, evidentemente; porém é preciso aprender a rir das
tragicomédias amorosas que regem a vida privada daqueles que amam. Aprender esta
lição através de uma artista incrível faz com que a nossa vontade de assistir Romance,
Vol. III: Agora Vai! ocorra mais de uma vez. O aprendizado é
garantido. As risadas também. Tudo isso rindo e cantando junto com a bela
estrela a comandar o espetáculo lá de cima do palco ou no meio da plateia...
David Bowie surpreendeu o mundo em 08 de janeiro de
2013 ao divulgar um novo single e um álbum que seria lançado em dois meses. The
Next Daynão era apenas o retorno de Bowie depois de
quase dez anos longe dos discos e dos palcos: era a prova concreta e um dos
maiores artistas da música mundial – antes tido como aposentado devido a um
ataque cardíaco que quase o fulminou em uma apresentação da Reality Tourna
Alemanha em 2004 – finalmente retornava para onde ele nunca deveria ter saído:
o topo das paradas de sucesso.
O mais surpreendente do retorno triunfal de Bowie à
música não foi o fato dele ter sido feito de maneira misteriosa, sem
estratégias de marketing extraordinárias,
entrevistas ou apresentações ao vivo. Este comeback
indicou o fato de que ele estava extremamente produtivo e criativo: no final de
2013, The Next Day Extra, um EP com 10 sobras
de estúdio, quase todas belíssimas. Mesmo assim, várias fontes ligadas ao
criador de Ziggy Stardust apontavam que havia material para, pelo menos, mais
um disco inédito.
Antes de que o lançamento de um novo álbum de
inéditas ocorresse, os fãs do camaleão inglês ainda foram agraciados com Nothing has Changedem novembro de
2014, uma coletânea que saiu em duas versões: em CD duplo e em CD triplo, com
direito a raridades e a inédita “Sue (or In a Season of Crime)”. No Brasil,
alguns chegaram a comparar esta inédita da lavra de Bowie com “Cais”, de Milton
Nascimento e Fernando Brant, gerando uma polêmica de impacto limitado. A
exposição David Bowie Is, que contou com figurinos,
manuscritos, vídeos e outros tesouros que compõem o David Bowie Archive, estava rodando o mundo e fez com que o Museu da Imagem e do Som de São Paulo
batesse recordes de visitação, com direito a filas de mais de quatro horas para
que as pessoas pudessem visitar a lendária exposição que estreou no Victoria & Albert Museum, de
Londres.
Entre os meses finais de 2014 e os meses iniciais
de 2015, David Bowie decidiu que estava na hora de retornar ao The Magic Shop e
ao Human Worldwide Studios em New York, os mesmos locais onde gravara The
Next Dayem segredo poucos anos antes. Tony Visconti,
seu velho amigo, escudeiro e parceiro de tantos projetos musicais juntos, seria
o produtor do último álbum de estúdio do camaleão inglês. Outro projeto
receberia total atenção do astro inglês: o musical Lazarus, escrito em
parceria com Enda Walsh, baseado em O Homem que Caiu
na Terra (The Man who Fell
to Earth – romance de Walter Trevis de 1963 que foi adaptado
para o cinema em 1976 e que foi estrelado pelo próprio Bowie na telona).
Diante de tantos projetos em andamento, era patente
que David Bowie tinha urgência, tinha pressa, tinha muito que dizer, visto que
não tinha muito tempo de vida pela frente: um câncer fora diagnosticado no
segundo semestre de 2014 e uma batalha secreta pela vida já estava em pleno
curso.
A prioridade de David Bowie era de que este disco
não soasse como um típico de Rock. As inspirações principais do camaleão inglês
para compor e gravar as canções de ★ foram
o jazz que ouvira em um clube nova-iorquino e o álbum To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar.
Bowie decidira entrelaçar a pompa, a classe e a
circunstância jazzísticas com batidas de hip hop e poucas guitarras,
adornadas com letras que refletissem a sua maneira singular de ver o mundo. Por
isso, músicos que o acompanhavam há mais de uma década como o virtuoso
guitarrista Gerry Leonard e a carismática baixista Gail Ann Dorsey foram
substituídos por Donny McCaslin (sopros), Ben Monder (guitarras), Jason Lindner
(piano, órgão e teclados), Tim Lefebvre (baixo) e Mark Guiliana (bateria e
percussão).
A faixa-título foi disponibilizada junto com o seu
videoclipe no dia 20 de novembro de 2015, deixando todos os espectadores em
estado de choque. O curta-metragem, que contou com a direção do renomado Johan
Renck, é um misto de imagens perturbadoras de rituais satânicos, execuções,
torturas. Em meio a tudo isso, surge David Bowie ora cambaleante com olhos
vendados com dois botões substituindo seus olhos, ora dançando e zombando com a
morte, dizendo que haveria alguma espécie de vida para além do corpo
supostamente combalido:
(…)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
(…)
I
can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a Marvel star)
I’m the Great I Am (I’m a blackstar)
I’m
a blackstar, way up, on money, I’ve got game
I see right, so wide, so open-hearted pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)”
(…)
Diante de inúmeras referências presentes no clipe
de “★”, é impossível não deixarmos de destacar a figura emblemática de Major Tom, tão
presente em outras canções famosas da obra
monumental de Bowie como “Space Oddity” e “Ashes
to Ashes”. O novo trabalho do
camaleão iria tratar de temas já conhecidos por parte daqueles que já tinham
contato com a sua música: amor, vida e morte, porém com uma intensidade e uma
profundidade jamais ditas anteriormente.
A segunda faixa de ★, “’Tis a Pity She’s a
Whore”, pegou um título emprestado de uma peça do dramaturgo inglês John Ford,
cuja obra data do século XVII. A canção tinha sido disponibilizada como um lado
B para o single de “Sue (or In a Season of Crime)”, de Nothing has Changed.
Bowie decidiu regravar versões mais rápidas e palatáveis de “‘Tis a Pity…” e
“Sue…” para o seu vigésimo-quinto álbum de estúdio, o que foi uma escolha
acertada, visto que a primeira canção ficou mais fluida e a segunda com uma
pegada mais rocker e sem o tom épico
de sua gravação original.
Por outro lado, ambas tratam de um ponto em comum –
a batalha de um homem contra um inimigo implacável: em “‘Tis a Pity…” a vadia
que bate em seu interlocutor e lhe deixa completamente sem reação ou defesa
pode ser uma metáfora da doença que iria lhe levar poucos meses depois; em
“Sue…”, a amada prestes a desaparecer a qualquer momento, por motivos escusos.
As três faixas finais de ★ nos evidenciam o estado dramático de David Bowie. “Girl
Loves Me”, quinta faixa do disco,
possui algumas supostas influências de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica),
cuja obra sempre exerceu notável fascínio da parte do criador de Ziggy
Stardust. Os versos da canção, em sua maioria, não possuem a intenção de fazer
alguma espécie de sentido, o que permite a interpretação de poder se tratar de
uma espécie de delírio, típico daqueles que estão prestes a ultrapassar a
barreira que separa a vida da morte:
(…)
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Where
the f— did Monday go?
I’m cold to this pig and pug show
Where the f— did Monday go?
You
viddy at the Cheena
Choodesny with the red rot
Libbilubbing litso-fitso
Devotchka watch her garbles
Spatchko at the rozz-shop
Split a ded from his deng deng
Viddy viddy at the cheena
(…)
“Dollar Days”, a faixa mais sensível do álbum, é a
canção que recebe as confissões mais tristes e sofridas de David Bowie. A
ausência de inimigos declarados em meio a uma doença implacável e incurável, o
pavor de ser esquecido pelas pessoas amadas (no caso de Mr. David Jones, a
esposa Iman e os filhos Duncan e Alexandria) são tratados sem metáforas, com
uma linguagem extremamente direta. O belíssimo solo de saxofone de Donny
McCaslin é de uma beleza e de uma sensibilidade ímpares, que casam com a
melancolia dos versos de Bowie:
Cash
girls suffer me, I’ve got no enemies
I’m walking down
It’s nothing to me
It’s nothing to see
If
I’ll never see the English evergreens I’m running to
It’s nothing to me
It’s nothing to see
I’m
dying to
Push their backs against the grain
And fool them all again and again
I’m trying to
We bitches tear our magazines
Those oligarchs with foaming mouths phone
Now and then
Don’t believe for just one second I’m forgetting you
I’m trying to
I’m dying to
(…)
★é concluído com
“I Can’t Give Everything Away”, um recado de David Bowie
para a esfera pública que sempre lhe deu tanto fama, respeito e admiração.
Diante do sofrimento constante e da morte iminente, o astro inglês deixou claro
através de sua arte a ciência de seu estado, mas não queria uma despedida
formal (daí o título: to give away,
em português, quer dizer divulgar algo
secreto) – provavelmente para não atrair o sensacionalismo da grande mídia
diante de sua tragédia particular. Eis algumas das palavras finais do disco:
Seeing
more and feeling less
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That’s the message that I sent
I can’t give everything
I can’t give everything
Away
I can’t give everything
Away
A terceira faixa do disco e segundo single de ★, “Lazarus”, é mais
do que a canção que dá título ao musical off-broadway escrito por David
Bowie e Enda Walsh: é a chave-mestra do vigésimo-quinto álbum de estúdio do
camaleão inglês. O clipe, disponibilizado para o grande público em 7 de janeiro
de 2016 (um dia antes do aniversário de Bowie e 24 horas antes do lançamento do
álbum), também recebeu a direção de Johan Renck e apresenta uma série de
mensagens subliminares para os espectadores:
Look
up here, I’m in heaven
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now
Look
up here, man, I’m in danger
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain’t
that just like me? (…)
A mensagem da canção é clara: as cicatrizes não são
aparentes, a dor é evidente, a voz vem de um plano que não é mais o mesmo que
habita as pessoas que vivem. Não há nada a perder, mas há muito a ser dito.
David Bowie encarnava seu último personagem: ao contrário de todas as
personagens vividas por Bowie nos anos anteriores, o Lazarus do vídeo não
possuía o distanciamento brechtiano necessário da parte de um ator para
encarnar um Ziggy Stardust, Halloween Jack ou um Thin White Duke.
Se a figura bíblica supostamente ressuscitada por
Jesus depois de quatro dias (João, 11:1-46,) seria a última persona a ser
vivida, David Robert Jones se utilizava de seu sofrimento mais íntimo e intenso
(puro Stanilaviski!) para encenar a morte que viria lhe buscar dentro em breve.
Era a sua despedida daqueles que o acompanharam atenciosamente por mais de
cinco décadas:
(…)
By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass
This
way or no way
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?
Oh,
I’ll be free
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?
Bowie aparece deitado na cama, cantando o seu
sofrimento com os olhos vendados e com dois botões no lugar de seus olhos. A
alusão é feita à mitologia grega do Barqueiro de Caronte: naquela época, era
comum colocarem duas moedas nas vendas dos mortos como forma de pagamento do
barqueiro que levaria a alma dos falecidos para Hades.
O clipe mostra mais do que uma pessoa à beira de
morte a partir de simbolismos nada óbvios, ele mostra o canto do cisne de um
dos artistas mais importantes dos últimos 50 anos. A maioria das pessoas só
conseguiu ter a compreensão deste fato quando a trajetória de David Robert
Jones neste plano chegou ao fim na noite de 10 de janeiro de 2016.
A crítica musical, em sua maioria, rendeu elogios a
★, alegando que o álbum é bom,
apesar de não haver nenhuma conexão com o Pop
ou o Rock. Alguns jornalistas, no
alto de sua canalhice e do seu poder enquanto editores de cadernos culturais de
jornais de grande circulação, ainda tiveram a
maldade de comparar a suposta excentricidade de Bowie à de Prince, debochando
de sua reclusão, de sua discrição e de seu senso musical apurado. Por outro
lado, o vigésimo-quinto foi muito bem-recebido pelos fãs e pelo público, não
apenas por ser um retorno do astro ao disco depois de três anos, mas também por
ter sido o último álbum lançado por David Bowie em vida.
A capa de ★
recebeu a assinatura do designer Jonathan Barnbrook, que trabalhava com Bowie
desde Heathen (2002). A escolha de imagem foi uma estrela
negra solitária em um fundo branco, com seis fragmentos de estrelas abaixo
formando a palavra BOWIE em letras estilizadas. De todas as capas de discos
lançados pelo camaleão inglês, esta foi a única na qual o artista não esteve
sequer presente na capa do disco. David Bowie tinha razões pessoais e
artísticas muito fortes para isso. Nós a respeitamos…
Recebi a proposta de escrever este texto em 09 de janeiro
de 2016, um dia depois do aniversário do Mestre e do lançamento de ★. Como David Bowie sempre foi um dos meus artistas
preferidos, não fui capaz de negar o pedido e comecei a me preparar para a
tarefa de decifrar mais um enigma proposto pelo camaleão inglês. Este texto
tinha a intenção de ser uma homenagem, porém nada póstumo.
Nem eu, nem ninguém contava que seríamos
surpreendidos pela saída de cena inesperada de Mr. Jones. Tal qual David Bowie
decidira matar Ziggy Stardust na frente do público e do mundo no alto do palco
do Hammersmith Odeon em 3 de julho de 1973, David Robert Jones morreu em 10 de
janeiro de 2016 em New York City e matou a sua melhor personagem: David Bowie,
que, tal qual sua criação mais célebre, passou a habitar o recôndito mais
valioso de nossas memórias afetivas, no lado esquerdo de nossos peitos. Ou a
viver em uma estrela longínqua...