26 de outubro de 2016

DISCOS DE VINIL # 5

MADONNA – LIKE A PRAYER (1989)


O final da década de 1980 prometia uma série de mudanças para a música do planeta. Madonna, uma das protagonistas da música e dos costumes que revolucionaram conceitos e definiram uma era, não estava incólume a tais ventos de renovação.


No final de 1988, Madge tinha acabado de completar 30 anos, vivia um casamento em crise com Sean Penn, tentava uma carreira de atriz séria em Hollywood e na Broadway (sem a mesma repercussão de Desperately Seeking Susan, sua estreia na telona) e via a necessidade de renovar a sua imagem e som. Ou seja, a música Pop de Madonna, que lhe rendeu clássicos como “Everybody”, “Holiday”, “Material Girl” e “Dress You Up” necessitava se tornar mais adulta, menos voltada para as meninas adolescentes que imitavam os figurinos e trejeitos explorados por ela nas turnês dos álbuns Like a Virgin e True Blue. Abordar temáticas mais maduras e menos juvenis tornou-se prioridade para a Pop Star.


A Madonna que surgiu para os olhos do grande público em 1989 tinha sofrido a mutação camaleônica mais radical que aquele espécime poderia ter tido até então. Seus cabelos tinham abandonado a tintura loira platinada de Nikki Finn, sua personagem alter-ego do filme Who’s That Girl?, para assumirem um tom castanho escuro. Seu figurino era, surpreendentemente, mais recatado e discreto – justamente para despistar o mundo da música com a grande revolução que já estava em curso.


O casório com Penn chegava finalmente ao fim com a alegação de “diferenças irreconciliáveis” em janeiro de 1989 quando, na verdade, todos sabiam que Sean era dotado de um ciúme extremamente doentio e que chegava por vezes a bater em fotógrafos e submeter a então esposa em episódios de cárcere privado (isso quando Madonna não apanhava literalmente do então marido).


A chegada aos 30 anos de idade fez com que a perda precoce da mãe (levada pelo câncer pouco depois de ter completado 30 anos de idade) e a relação delicada com o pai se tornassem ainda mais doloridas e agudas e, com tudo isso, junte-se muita sexualidade reprimida pela religiosidade extrema de uma família católica. Eis a atmosfera que fez do álbum Like a Prayer a obra-prima de Lady Madonna até aquele momento.



A faixa-título abre o disco com uma guitarra distorcida, um coral de negros, um órgão Hammond B-3 e Madonna anunciando que a vida é um mistério e que todos nós deveríamos nos manter de pé sozinhos, porém ao ouvir um chamado especial, nos sentimos amparados como se estivéssemos em casa e livres de toda a solidão. A prece de Madonna (uma ode musical ao grupo Sly & The Family Stone) era muito simples, muito direta, porém ninguém tinha ideia do quão seria provocante até ver o vídeo dirigido pela diretora Mary Lambert, a mesma que dirigiu a Pop Star em “Like a Virgin”: Madge aparece como testemunha de um crime cometido por um rapaz negro, depois convertido em santo religioso.


Nenhum problema se Madonna não tivesse aparecido beijando lascivamente este símbolo religioso na boca e muito menos se ela não aparecesse dançando freneticamente à frente de cruzes em chamas proclamando que através da sua prece, sua voz me leva para onde você quiser que eu vá, blá blá blá…


A mídia ficou em estado de choque, as instituições religiosas ficaram revoltadas (o Papa João Paulo II liderou um boicote contra o videoclipe) e a Pepsi – que patrocinaria a próxima turnê mundial da Diva – decidiu cancelar o apoio financeiro milionário e Madonna foi eleita pela MTV americana e outros veículos de mídia da época como a artista da década. O escândalo, mais uma vez, rendeu imensa popularidade à uma das artistas que melhor souberam se utilizar da mídia e do marketing para promover sua imagem e som.


A produção do disco ficou dividida entre Madonna e seus parceiros produtores/compositores Patrick Leonard (geralmente responsável pelas baladas do álbum) e Stephen Bray (que ficou a cargo das faixas mais funky desta coleção) e ainda contou com a participação especial de Prince, que tocou vários instrumentos e ainda dividiu os vocais e os créditos de “Love Song”. Em linhas gerais, Like a Prayer é um marco que redefine os limites do Pop, com as letras mais confessionais que Madge escrevera até então. “Express Yourself” é um hino feminista, que aponta para que as mulheres jamais devem se satisfazer com a possibilidade de ficar em segundo plano. “Oh Father” e “Promise to Try” são duas baladas tristíssimas e respectivamente dedicadas ao seu pai e à sua mãe. Já “Keep it Together”, parceria dela com Bray, é uma ode à toda sua família (a Pop Star possui um total de sete irmãos e meio-irmãos).




Like a Prayer rendeu seis singles de sucesso para Madonna: “Like a Prayer”, “Express Yourself”, “Cherish” – que contou com um videoclipe antológico em preto e branco dirigido pelo fotógrafo de moda Herb Ritts), “Oh Father”, “Dear Jessie” (cantiga infantil dedicada à filha de Patrick Leonard) e “Keep it Together”. “Till Death Do Us Part” é uma mensagem clara e feroz ao já ex-marido Sean Penn, “Spanish Eyes” toca no ainda tema tabu da AIDS, que já tinha começado a dizimar milhares de pessoas ao redor do mundo e “Act of Contriction” mistura trechos da Bíblia Sagrada com monólogos de Madonna com a guitarra de Prince e lobos de vocalises do Andrae Crouch Choir (que cantou na faixa-título) em dois minutos e dezenove segundos de delírio religioso.






A partir de 1989, o mundo passou a olhar para Madonna não apenas como uma mulher que realmente tinha o poder de influenciar pessoas, mas principalmente como o de uma Pop Star que iria mudar o mundo. Like a Prayer foi a jogada fundamental para que Madge redefinisse as noções de imagem e entretenimento: quem quisesse fazer parte deste mundo, deveria seguir os rastilhos de pólvora deixados por esta baixinha saída de Bay City, Michigan, para invadir as casas de todo o planeta e rezar o seu credo.


Por isso, prepare os seus ouvidos e o seu coração e ouça/veja/sinta a Paixão segundo Madonna…

TROVA # 94

A RAINHA MARATONISTA


"Does it feel that your life's become a catastrophe 
Oh, it has to be for you to grow, boy..."
(Richard Davies & Roger Hodgson, 1979)


Para D. Elizabeth, minha mãe, no dia dos seus 60 anos. 

Em mais de uma década e meia como estudante e professor de Literatura, fui desafiado a interpretar textos e personagens dos mais diversos. Nenhum destes, entretanto, é mais desafiador para mim do que uma personagem da vida real, a mais importante de todas elas, diga-se de passagem. Escrever sobre esta personagem é tão desafiador quanto escrever um Projeto de Doutorado, por exemplo...
Minha mãe, D. Elizabeth, tem nome de rainha. Personalidade fortíssima. Dela herdei os olhos castanhos e o sorriso que faz os olhinhos encolherem de felicidade. Não sei se a inspiração para os meus avós maternos escolherem o nome dela foi para homenagear a Rainha da Inglaterra ou Liz Taylor. Ao contrário do que o nome sugere, nunca sentou soberana em um trono com um cetro na mão: sempre batalhou como a melhor das operárias para o bem-estar do marido, dos filhos e daqueles que ela ama.
Nem sempre consegui ter a melhor interpretação de minha mãe. Em muitos momentos eu a questionei, a contestei e fiz coisas das quais eu hoje me envergonho. Ao olhar para o retrovisor do tempo e das memórias, penso na quantidade de erros que cometi e na necessidade de sempre aprender com cada um deles. Nada fácil para pessoas contestadoras, geniosas e orgulhosas como eu. Depois dos 30, nossos egos ficam em segundo plano e nos permite maior serenidade para olhar para tudo com mais honestidade.
De perto ou de longe, D. Beth nunca deixou de me apoiar naquilo que eu quisesse fazer. Sempre foi exigente com meus estudos - não seria quem eu sou hoje se não fosse por ela, que abriu mão de uma carreira em nome dos filhos. Nos tropeços e nas vitórias, sempre teve sua palavra de apoio e a torcida mais intensa. Mesmo quando eu achava que o presente era uma catástrofe e o futuro nada promissor, lá estava ela para me dizer que não deveria desistir jamais.
Pensei que minha mãe chegaria aos 60 anos como as típicas senhorinhas de antigamente: em vestidos cheirando a naftalina, com cabelos brancos e sentada em uma cadeira de balanço. Como D. Beth sempre foi preocupadíssima com saúde e bem-estar, decidiu investir seriamente para jamais atingir este velho e surrado estereótipo. E conseguiu: Betinha (para os íntimos) atingiu a marca dos 60 dando um banho em muitas mulheres da idade dela.


D. Beth descobriu a fonte da juventude aos 50, quando começou a praticar corridas. Começou com caminhadas para se livrar do cigarro; depois começou a andar mais rápido; em pouco tempo, passou a fazer corridas de 6km aos domingos; há dois anos, pelo menos, faz meias-maratonas e nos enche de orgulho. Hoje em dia, é raro para mim acordar aos domingos e NÃO encontrar fotos de D. Beth correndo para lá e para cá em cada um dos cantos do Rio de Janeiro, dando um banho de disposição em mim e em tantos outros que vivem uma vida sedentária.
Falar deste e de outros aspectos de D. Beth é muito pouco para descrever a importância dela para mim, meu Pai, meu irmão, meu sobrinho e todas as pessoas da nossa família. Minha Mãe é muito, muito mais do que isso. Acredito que ela adoraria ser lembrada daqui a 100 anos como filha, irmã, esposa, mãe, tia e avó que adorava correr maratonas. Por isso, não só desejo vida longa a ela por ela ter me carregado no ventre por nove meses e por sempre ter sido quem ela foi e é. Quero que Queen Elizabeth viva bastante para que ela possa continuar inspirando tantas pessoas por ela ser o exemplo de vida que ela é.

Nossas referências de vida devem ser homenageadas diariamente. Por isso deixo registrado em forma de crônica para que ela sempre possa se lembrar do filho mais velho, que gostava de escrever desde bem criança...


23 de outubro de 2016

TROVA # 93

O ROMANCE MUSICAL DE MARISA ORTH

Foto: Vinicius Grosbelli

“Na fama, fica-se louca; no fracasso, mais ainda”
(Marisa Orth)


Eu era uma criança de nove anos de idade quando vi Marisa Orth pela primeira vez na TV. Tínhamos retornado ao Rio de Janeiro depois de um tempo morando em Porto Alegre por causa das obrigações profissionais de meu pai e assistíamos as novelas das 8 com uma assiduidade religiosa. Naquela época, Marisa despontava como Nicinha, a namorada esfuziante e ninfomaníaca de Antônio Fagundes em Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu. Aquele trabalho fez da jovem atriz uma estrela que brilharia intensamente na TV, nos palcos e em grandes produções do Cinema Brasileiro.

Marisa Orth na novela Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu

Marisa Orth como Maralu Menezes

Outra lembrança, bem remota, de Marisa era quando ela encarava a cantora e apresentadora de TV Maralu Menezes e estava à frente da antológica banda Vexame. Também lembro de sua participação como a hostess do primeiro Video Music Brasil, prêmio anual da finada e saudosa MTV Brasil que premiava os melhores videoclipes brasileiros da safra 1994-1995. Um detalhe importante: o penteado bufante, o vestido extravagante e o tipo físico da bela atriz (Marisa é uma mulher bem alta, o que lhe dá um status de uma versão feminina de Golias em cima de qualquer palco) eram a cara da MTV da primeira metade da década de 1990 – irreverente, sexy e sofisticadamente debochada.

Marisa Orth no primeiro Video Music Brasil, da extinta e saudosa MTV Brasil
Marisa Orth como Magda no humorístico Sai de Baixo
Marisa Orth em Doces Poderes, de Lúcia Murat
Marisa Orth em Durval Discos, de Anna Muylaert
O que sempre me chamou a atenção em relação à Marisa Orth é o fato dela ser distinta de outras atrizes: a inteligência, a versatilidade na realização de papeis cômicos e dramáticos e a belíssima voz de mezzo soprano quando abria a boca para cantar. Jamais iremos nos esquecer da tapada gostosona Magda, que roubava a cena do humorístico Sai de Baixo e que era bem diferente da atendente da sorveteria de Durval Discos e da corretora de imóveis mal-humoradíssima de Toma Lá, Dá Cá e de Valéria, a gerente executiva chorona e deliciosamente amargurada de Odeio Segundas. Gostava muito de suas intervenções durante as primeiras temporadas do Saia Justa, programa que dividia com Rita Lee, Fernanda Young e Mônica Waldvogel. Sempre quis ter assistido uma apresentação da Vexame ou do Show do Gongo só para poder ver o talento de Marisa em ação diante de poucos metros de distância pelo simples fato dela ser uma artista que combina inteligência, bom humor, drama, melodrama, música brega e stand up comedy como pouquíssimos no meio artístico brasileiro...

Marisa Orth como Rita em Toma Lá, Toma Cá
Marisa Orth como Valéria em Odeio Segundas

Marisa Orth, Fernanda Young, Rita Lee e Mônica Waldvogel na primeiríssima formação do programa Saia Justa
*



As grandes oportunidades sempre aparecem em nossas vidas do modo mais inesperado e surpreendente. Depois de uma batalha em vão para comprar ingressos para uma série de shows de Ney Matogrosso em São Paulo, tínhamos descoberto que o Auditório Ibirapuera receberia uma apresentação do espetáculo Romance, Vol. III: Agora Vai!, no qual Marisa cantava clássicos do cancioneiro romântico nacional e internacional. E com um aditivo: vários momentos de stand up comedy, dando um banho tremendo em muitos desses comedians que se apresentam por aí... O melhor de tudo era a possibilidade de ver Marisa Orth cantando a pouquíssimos metros de distância, ao contrário da leve frustação passada quando a vi encarnando a hilária Mortícia Addams no musical A Família Addams sentado em uma das cadeiras mais afastadas do Teatro Renault.

Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy

Romance, Vol. III: Agora Vai! é a continuidade de Romance, Vol. II (2009), no qual Marisa Orth canta canções de amor que abordam os dramas da paixão a partir de seus altos e baixos – ao contrário do que eu e muitos outros pensavam, Marisa não realizou o Romance, Vol. I por achar que seria um título excessivamente pretensioso para um espetáculo, mas que um dia fará o Romance, Vol. I: Finalmente liberado sem cortes e com alguns arranhões!.



A primeira versão do projeto, que gerou um CD, tinha versões para “I’m Not in Love” (10cc), “Minha Fama de Mau” (Roberto & Erasmo Carlos), “Sofre” (Tim Maia), “Demais” (Antônio Carlos Jobim & Aloysio de Oliveira), “Fruto Proibido” (Rita Lee), dentre outras. Para a segunda versão do espetáculo, Marisa Orth incluiu outras pérolas do repertório amoroso que faz a cabeça de todas as tribos como “Transas de Amor (Os Sonhos de Quem Ama)” (Marina Lima & Antônio Cícero), “Ciúmes de Você” (Luiz Ayrão), “De Tanto Amor” (Roberto & Erasmo Carlos), além de “I Feel Love”, Aparências”, “Baby Come Back” e “Fala”, sucessos de Donna Summer, Márcio Greyck, Player e do lendário grupo Secos & Molhados. Ao setlist deste trabalho ainda tivemos uma leitura bastante descontraída para “As Dores do Mundo”, de Hyldon, e a hilária “Insanidade Temporária” (de André Abujamra & Flávio de Souza – gravada no CD Romance, Vol. II), no qual podíamos ver o diferencial de uma cantora que também é uma atriz singular.

Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy
As facetas do romance são contempladas com toda a irreverência possível: Marisa Orth ora se comporta como uma mulher fatal, ora faz as vezes de uma pesquisadora que pretende palestrar sobre relacionamentos para o público pagante com o intuito de decifrar os mistérios das relações humanas. O fator complicador dos encontros amorosos seria justamente o cérebro, este órgão que, segundo Marisa, “trabalha 24h por dia desde o dia que nasce até o dia em que se apaixona”. A hostess do show fala de suas experiências amorosas, entrevista o público, faz piada com os presentes, faz troça e drama em cima de suas próprias desgraças amorosas: a quintessência do romance, impulsionado pelo que há de melhor de brega e chique presente na canção popular.


Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy

Marisa Orth em Romance, Vol. III: Agora Vai! - Foto: Mila Maluhy



O que aprendemos depois de duas horas de espetáculo? O romance musical de Marisa Orth nos ensina que toda relação amorosa é feita de altos e baixos, de vitórias e derrotas, INs e OUTs. Devemos chorar quando preciso, evidentemente; porém é preciso aprender a rir das tragicomédias amorosas que regem a vida privada daqueles que amam. Aprender esta lição através de uma artista incrível faz com que a nossa vontade de assistir Romance, Vol. III: Agora Vai! ocorra mais de uma vez. O aprendizado é garantido. As risadas também. Tudo isso rindo e cantando junto com a bela estrela a comandar o espetáculo lá de cima do palco ou no meio da plateia...



19 de outubro de 2016

DISCOS DE VINIL # 4

DAVID BOWIE – (2016)



David Bowie surpreendeu o mundo em 08 de janeiro de 2013 ao divulgar um novo single e um álbum que seria lançado em dois meses. The Next Day não era apenas o retorno de Bowie depois de quase dez anos longe dos discos e dos palcos: era a prova concreta e um dos maiores artistas da música mundial – antes tido como aposentado devido a um ataque cardíaco que quase o fulminou em uma apresentação da Reality Tour na Alemanha em 2004 – finalmente retornava para onde ele nunca deveria ter saído: o topo das paradas de sucesso.
O mais surpreendente do retorno triunfal de Bowie à música não foi o fato dele ter sido feito de maneira misteriosa, sem estratégias de marketing extraordinárias, entrevistas ou apresentações ao vivo. Este comeback indicou o fato de que ele estava extremamente produtivo e criativo: no final de 2013, The Next Day Extra, um EP com 10 sobras de estúdio, quase todas belíssimas. Mesmo assim, várias fontes ligadas ao criador de Ziggy Stardust apontavam que havia material para, pelo menos, mais um disco inédito.


Antes de que o lançamento de um novo álbum de inéditas ocorresse, os fãs do camaleão inglês ainda foram agraciados com Nothing has Changed em novembro de 2014, uma coletânea que saiu em duas versões: em CD duplo e em CD triplo, com direito a raridades e a inédita “Sue (or In a Season of Crime)”. No Brasil, alguns chegaram a comparar esta inédita da lavra de Bowie com “Cais”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, gerando uma polêmica de impacto limitado. A exposição David Bowie Is, que contou com figurinos, manuscritos, vídeos e outros tesouros que compõem o David Bowie Archive, estava rodando o mundo e fez com que o Museu da Imagem e do Som de São Paulo batesse recordes de visitação, com direito a filas de mais de quatro horas para que as pessoas pudessem visitar a lendária exposição que estreou no Victoria & Albert Museum, de Londres.



Entre os meses finais de 2014 e os meses iniciais de 2015, David Bowie decidiu que estava na hora de retornar ao The Magic Shop e ao Human Worldwide Studios em New York, os mesmos locais onde gravara The Next Day em segredo poucos anos antes. Tony Visconti, seu velho amigo, escudeiro e parceiro de tantos projetos musicais juntos, seria o produtor do último álbum de estúdio do camaleão inglês. Outro projeto receberia total atenção do astro inglês: o musical Lazarus, escrito em parceria com Enda Walsh, baseado em O Homem que Caiu na Terra (The Man who Fell to Earth – romance de Walter Trevis de 1963 que foi adaptado para o cinema em 1976 e que foi estrelado pelo próprio Bowie na telona).
Diante de tantos projetos em andamento, era patente que David Bowie tinha urgência, tinha pressa, tinha muito que dizer, visto que não tinha muito tempo de vida pela frente: um câncer fora diagnosticado no segundo semestre de 2014 e uma batalha secreta pela vida já estava em pleno curso.
A prioridade de David Bowie era de que este disco não soasse como um típico de Rock. As inspirações principais do camaleão inglês para compor e gravar as canções de foram o jazz que ouvira em um clube nova-iorquino e o álbum To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar. Bowie decidira entrelaçar a pompa, a classe e a circunstância jazzísticas com batidas de hip hop e poucas guitarras, adornadas com letras que refletissem a sua maneira singular de ver o mundo. Por isso, músicos que o acompanhavam há mais de uma década como o virtuoso guitarrista Gerry Leonard e a carismática baixista Gail Ann Dorsey foram substituídos por Donny McCaslin (sopros), Ben Monder (guitarras), Jason Lindner (piano, órgão e teclados), Tim Lefebvre (baixo) e Mark Guiliana (bateria e percussão).


A faixa-título foi disponibilizada junto com o seu videoclipe no dia 20 de novembro de 2015, deixando todos os espectadores em estado de choque. O curta-metragem, que contou com a direção do renomado Johan Renck, é um misto de imagens perturbadoras de rituais satânicos, execuções, torturas. Em meio a tudo isso, surge David Bowie ora cambaleante com olhos vendados com dois botões substituindo seus olhos, ora dançando e zombando com a morte, dizendo que haveria alguma espécie de vida para além do corpo supostamente combalido:

(…)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)

(…)

I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a Marvel star)
I’m the Great I Am (I’m a blackstar)
I’m a blackstar, way up, on money, I’ve got game
I see right, so wide, so open-hearted pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)”
(…)

Diante de inúmeras referências presentes no clipe de “, é impossível não deixarmos de destacar a figura emblemática de Major Tom, tão presente em outras canções famosas da obra monumental de Bowie como Space Oddity e Ashes to Ashes. O novo trabalho do camaleão iria tratar de temas já conhecidos por parte daqueles que já tinham contato com a sua música: amor, vida e morte, porém com uma intensidade e uma profundidade jamais ditas anteriormente.



A segunda faixa de , “’Tis a Pity Shes a Whore”, pegou um título emprestado de uma peça do dramaturgo inglês John Ford, cuja obra data do século XVII. A canção tinha sido disponibilizada como um lado B para o single de “Sue (or In a Season of Crime)”, de Nothing has Changed. Bowie decidiu regravar versões mais rápidas e palatáveis de “‘Tis a Pity…” e “Sue…” para o seu vigésimo-quinto álbum de estúdio, o que foi uma escolha acertada, visto que a primeira canção ficou mais fluida e a segunda com uma pegada mais rocker e sem o tom épico de sua gravação original.
Por outro lado, ambas tratam de um ponto em comum – a batalha de um homem contra um inimigo implacável: em “‘Tis a Pity…” a vadia que bate em seu interlocutor e lhe deixa completamente sem reação ou defesa pode ser uma metáfora da doença que iria lhe levar poucos meses depois; em “Sue…”, a amada prestes a desaparecer a qualquer momento, por motivos escusos.
As três faixas finais de nos evidenciam o estado dramático de David Bowie. Girl Loves Me, quinta faixa do disco, possui algumas supostas influências de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica), cuja obra sempre exerceu notável fascínio da parte do criador de Ziggy Stardust. Os versos da canção, em sua maioria, não possuem a intenção de fazer alguma espécie de sentido, o que permite a interpretação de poder se tratar de uma espécie de delírio, típico daqueles que estão prestes a ultrapassar a barreira que separa a vida da morte:


(…)
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me

Where the f— did Monday go?
I’m cold to this pig and pug show
Where the f— did Monday go?
You viddy at the Cheena
Choodesny with the red rot
Libbilubbing litso-fitso
Devotchka watch her garbles
Spatchko at the rozz-shop
Split a ded from his deng deng
Viddy viddy at the cheena
(…)

“Dollar Days”, a faixa mais sensível do álbum, é a canção que recebe as confissões mais tristes e sofridas de David Bowie. A ausência de inimigos declarados em meio a uma doença implacável e incurável, o pavor de ser esquecido pelas pessoas amadas (no caso de Mr. David Jones, a esposa Iman e os filhos Duncan e Alexandria) são tratados sem metáforas, com uma linguagem extremamente direta. O belíssimo solo de saxofone de Donny McCaslin é de uma beleza e de uma sensibilidade ímpares, que casam com a melancolia dos versos de Bowie:


Cash girls suffer me, I’ve got no enemies
I’m walking down
It’s nothing to me
It’s nothing to see
If I’ll never see the English evergreens I’m running to
It’s nothing to me
It’s nothing to see
I’m dying to
Push their backs against the grain
And fool them all again and again
I’m trying to
We bitches tear our magazines
Those oligarchs with foaming mouths phone
Now and then
Don’t believe for just one second I’m forgetting you
I’m trying to
I’m dying to
(…)

é concluído com I Cant Give Everything Away”, um recado de David Bowie para a esfera pública que sempre lhe deu tanto fama, respeito e admiração. Diante do sofrimento constante e da morte iminente, o astro inglês deixou claro através de sua arte a ciência de seu estado, mas não queria uma despedida formal (daí o título: to give away, em português, quer dizer divulgar algo secreto) – provavelmente para não atrair o sensacionalismo da grande mídia diante de sua tragédia particular. Eis algumas das palavras finais do disco:


Seeing more and feeling less
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That’s the message that I sent

I can’t give everything
I can’t give everything
Away
I can’t give everything
Away

A terceira faixa do disco e segundo single de , Lazarus, é mais do que a canção que dá título ao musical off-broadway escrito por David Bowie e Enda Walsh: é a chave-mestra do vigésimo-quinto álbum de estúdio do camaleão inglês. O clipe, disponibilizado para o grande público em 7 de janeiro de 2016 (um dia antes do aniversário de Bowie e 24 horas antes do lançamento do álbum), também recebeu a direção de Johan Renck e apresenta uma série de mensagens subliminares para os espectadores:


Look up here, I’m in heaven
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now
Look up here, man, I’m in danger
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain’t that just like me?
(…)

A mensagem da canção é clara: as cicatrizes não são aparentes, a dor é evidente, a voz vem de um plano que não é mais o mesmo que habita as pessoas que vivem. Não há nada a perder, mas há muito a ser dito. David Bowie encarnava seu último personagem: ao contrário de todas as personagens vividas por Bowie nos anos anteriores, o Lazarus do vídeo não possuía o distanciamento brechtiano necessário da parte de um ator para encarnar um Ziggy Stardust, Halloween Jack ou um Thin White Duke.
Se a figura bíblica supostamente ressuscitada por Jesus depois de quatro dias (João, 11:1-46,) seria a última persona a ser vivida, David Robert Jones se utilizava de seu sofrimento mais íntimo e intenso (puro Stanilaviski!) para encenar a morte que viria lhe buscar dentro em breve. Era a sua despedida daqueles que o acompanharam atenciosamente por mais de cinco décadas:

(…)
By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass
This way or no way
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?
Oh, I’ll be free
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?

Bowie aparece deitado na cama, cantando o seu sofrimento com os olhos vendados e com dois botões no lugar de seus olhos. A alusão é feita à mitologia grega do Barqueiro de Caronte: naquela época, era comum colocarem duas moedas nas vendas dos mortos como forma de pagamento do barqueiro que levaria a alma dos falecidos para Hades.
O clipe mostra mais do que uma pessoa à beira de morte a partir de simbolismos nada óbvios, ele mostra o canto do cisne de um dos artistas mais importantes dos últimos 50 anos. A maioria das pessoas só conseguiu ter a compreensão deste fato quando a trajetória de David Robert Jones neste plano chegou ao fim na noite de 10 de janeiro de 2016.
A crítica musical, em sua maioria, rendeu elogios a , alegando que o álbum é bom, apesar de não haver nenhuma conexão com o Pop ou o Rock. Alguns jornalistas, no alto de sua canalhice e do seu poder enquanto editores de cadernos culturais de jornais de grande circulação, ainda tiveram a maldade de comparar a suposta excentricidade de Bowie à de Prince, debochando de sua reclusão, de sua discrição e de seu senso musical apurado. Por outro lado, o vigésimo-quinto foi muito bem-recebido pelos fãs e pelo público, não apenas por ser um retorno do astro ao disco depois de três anos, mas também por ter sido o último álbum lançado por David Bowie em vida.
A capa de recebeu a assinatura do designer Jonathan Barnbrook, que trabalhava com Bowie desde Heathen (2002). A escolha de imagem foi uma estrela negra solitária em um fundo branco, com seis fragmentos de estrelas abaixo formando a palavra BOWIE em letras estilizadas. De todas as capas de discos lançados pelo camaleão inglês, esta foi a única na qual o artista não esteve sequer presente na capa do disco. David Bowie tinha razões pessoais e artísticas muito fortes para isso. Nós a respeitamos…
Recebi a proposta de escrever este texto em 09 de janeiro de 2016, um dia depois do aniversário do Mestre e do lançamento de . Como David Bowie sempre foi um dos meus artistas preferidos, não fui capaz de negar o pedido e comecei a me preparar para a tarefa de decifrar mais um enigma proposto pelo camaleão inglês. Este texto tinha a intenção de ser uma homenagem, porém nada póstumo.
Nem eu, nem ninguém contava que seríamos surpreendidos pela saída de cena inesperada de Mr. Jones. Tal qual David Bowie decidira matar Ziggy Stardust na frente do público e do mundo no alto do palco do Hammersmith Odeon em 3 de julho de 1973, David Robert Jones morreu em 10 de janeiro de 2016 em New York City e matou a sua melhor personagem: David Bowie, que, tal qual sua criação mais célebre, passou a habitar o recôndito mais valioso de nossas memórias afetivas, no lado esquerdo de nossos peitos. Ou a viver em uma estrela longínqua...