18 de setembro de 2016

TROVA # 87

A MÁQUINA HUMANA
(A Voz & A Máquina, um show de Elza Soares)



Sou negra, índia. Sou samba, jazz, blues, funk, rock ‘n’ roll, bossa, rap, soul, choro, sou punk. Sou claro. Sou escuro. Sou o sagrado. Sou o profano. Bendita. Maldita. Sou tudo. Sou nada. Sou Elzazaza. Elza eu sou.”
(Elza Soares)


Nunca me deixei seduzir pelos sons (re)criados pelos DJs. Sempre achei a música das pick ups um tanto estridentes e entediantes demais, de uma frieza absoluta. Baladas? Boates? Só aquelas que tocam o repertório dos anos 1970/1980, mas não me venham com Trash 80’s para cima de mim! No fundo, no frigir dos ovos, sempre tive a crença de que a máquina servia exclusivamente para que a música se tornasse algo decorativo, impessoal, sem emoção, com gosto de uísque com energético.


Por outro lado, sempre há momentos nos quais somos obrigados a rever os nossos conceitos. Quando soube que Elza Soares faria uma apresentação de seu espetáculo A Voz & A Máquina no Teatro Porto Seguro, fiquei bem receoso. Pensei que a proposta deste show estava completamente distante de trabalhos mais recentes como Elza Canta e Chora Lupi e A Mulher do Fim do Mundo, o que era a mais pura verdade. Fui para o teatro com o coração aberto e várias expectativas, apesar da minha antiga implicância com os DJs. Mais uma vez eu seria surpreendido por mais uma apresentação devastadora da voz do milênio.


Foto: Edson Lopes Jr.
Acompanhada de dois DJs – Ricardo Muralha e Bruno Queiroz – e um tecladista (Antônio Guerra), lá estava Elza Soares, sentada como uma rainha em sua cadeira no alto de um praticável. De início, pensei que estava dentro de uma rave que multiplicava a voz de Elzinha repetida e excessivamente. Estava redondamente enganado. Logo de cara, constatei que as pick ups de Queiroz e Muralha estavam a serviço de uma das vozes mais lendárias do planeta e não o contrário. As máquinas, condicionadas a reproduzir sons de forma sistemática e fria, foram humanizadas pelo talento inconfundível de Elza. A nega subverteu a lógica da invenção do homem branco em prol de seu canto.


Isso é o que os artistas revolucionários fazem: fazem da sua voz algo maquinal e tornam a máquina humana. Este é um dos exemplos que fazem de Lady Elza Soares uma artista singular na música do Brasil e do mundo... Verdade seja dita: com quase (ou mais de) 80 anos de idade, Elza poderia simplesmente focar em trabalhos saudosistas, louvando seu passado musical de grandes sucessos ou colhendo os frutos gerados por A Mulher do Fim do Mundo, um dos CDs/shows mais extraordinários de todos os tempos. Todavia, Elzinha não está no meio musical apenas para dar selinho, agradecer, abraçar e fazer improvisos musicais através de sua voz inconfundível: espetáculos como A Voz & A Máquina nos mostram como ela sabe ser moderna e inquieta.


Diz-se que a proposta de Elza, ao montar este show, era de se aproximar de um público mais jovem. Ela não só alcançou tamanha proeza, como também conseguiu mobilizar fãs mais velhos para uma típica “curtição jovem”. Graças aos rapazes que a acompanham no palco, os velhos clássicos de Vinícius de Moraes (“Corcovado”, “Canto de Ossanha” e “Chega de Saudade), Lupicínio Rodrigues (“Esses Moços”, “Nervos de Aço”) e Jorge Aragão (“Malandro” e “Vou Festejar”) ficaram, a princípio, irreconhecíveis, mas sem deixar de apresentar o selo de qualidade do canto de Elza Soares. “A Carne” (Seu Jorge, Marcelo Yuka & Wilson Capellette), canção gravada por ela em Do Cóccix Até o Pescoço, aparece em A Voz & A Máquina e é um dos pontos altos da noite. Como nos alerta o número de abertura, “Computadores Fazem Arte” (Fred Zero Quatro), “computadores fazem arte / artistas fazem dinheiro”. Elzinha faz a revolução e com muita ousadia.


Apesar da evidente fragilidade física, Elza Soares reina em cima de seu trono musical através de seu canto forte e incansável. É uma rainha dos palcos, sem perder a humildade e a gratidão de quem veio dos estratos menos favorecidos da sociedade brasileira. Canta os encantos da paixão e as dores da desilusão amorosa com a propriedade da experiência de uma vida inteira. Fala de injustiças sociais, de algumas esperanças e conta algumas anedotas de amigos queridos – não contive minhas gargalhadas quando ela nos contou da provável reação de Vinícius de Moraes se ele visse suas canções interpretadas daquele jeito. É uma mulher de “nervos de aço”. Uma artista de “opinião”. É de uma ousadia que pouquíssimos artistas possuem, pois só uma voz tão poderosa quanto uma máquina conseguiria humanizar a fria tecnologia dos DJs.




Espero que alguma gravadora um dia se interesse em registrar A Voz & A Máquina em CD e DVD. Não desejo isso apenas para que possamos ouvir mais um trabalho inquietante de Elza Soares, mas para que as gerações que surgirem depois da minha possam testemunhar (mesmo que pela tela da TV, do smart phone ou do YouTube) que ela é, foi e sempre será uma das artistas mais criativas e revolucionárias de que já tivemos notícia...



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