28 de setembro de 2016

DISCOS DE VINIL # 1

GAL COSTA – ÍNDIA (1973)



1973 foi um dos anos mais marcantes para a música brasileira. Apesar da censura e dos horrores que a ditadura militar brasileira impunha às artes e aos cidadãos brasileiros, a criatividade de nossos compositores mais populares (Chico, Gil, Caetano, Raul, Jobim, João Bosco) estava em excelente forma. A MPB, apesar de cerceada, vivia um grande momento.
Podemos dizer o mesmo das principais intérpretes da MPB. Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa (para citar apenas estas três) estavam no auge da forma vocal em 1973 e lançando discos que definiram suas carreiras artísticas. No entanto, das três que citamos a que merece mais destaque é Gal. E por quê? Pela mudança de estilo, pelo encerramento de um ciclo em sua carreira (e pela consequente abertura de outro) e pela capa (putz, mas que capa!) de disco mais sexy de todos os tempos. As suas colegas cantoras, não menos importantes, não conseguiram dar um passo tão longe naquele momento: Elis também renovou seu estilo de certa forma, ao contrário da irmã do Mano Caetano, que apenas consolidou fórmulas anteriores lá pelos idos da primeira metade dos 1970.
Esqueçam as outras cantoras brasileiras que gostam de se dizer sexy e cool: Índia, lançado por Gal Costa em 1973, é uma das provas cabais de como Gracinha é a cantora brasileira mais sensual e afinada de todas as galáxias pré e pós-tropicalistas!
Falemos sobre a capa: um close em Gal, de tanga vermelha, vestindo colares de contas retirando sua saia indígena. O rebu em torno da imagem foi tão grande na época do lançamento do disco que a Philips (gravadora de Gal, na época) precisou envolver a bolacha em um invólucro preto para que o LP pudesse ir rumo às lojas.
É lógico que a polêmica em torno da icônica foto fez com que mais cópias de Índia vendessem como se fosse um exemplar da Playboy. A contracapa não deixa nada a dever à capa do disco: Gal aparece com os seios desnudos (esqueçam aquele par de seios que ela mostrou no polêmico show “O Sorriso do Gato de Alice”, please!), selvagemente vestida como uma bela indígena. Um deleite!
Em termos musicais, Índia é um marco fundamental na discografia de Gal Costa. Sucessor de Fatal (1971) – show e disco ao vivo que levaram a cantora para o topo do panteão das maiores cantoras do Brasil –, este é um disco no qual Gal deixa de lado a sonoridade psicodélica de seu segundo e terceiro discos e decide seguir o procedimento tropicalista de ler os clássicos do cancioneiro brasileiro e latino-americano, sem deixar de cantar o que havia de mais recente no que seus companheiros de geração tinham a dizer musicalmente.
A faixa-título, um dos clássicos da música paraguaia, capitaneia o álbum. Canções inesquecíveis de Lupicínio Rodrigues (“Volta”) e Tom Jobim (“Desafinado”) integram o repertório do disco ao lado de criações de Caetano Veloso (“Da Maior Importância”, “Relance” – parceria de Caê com Pedro Novis), Gilberto Gil (responsável pela adaptação de “Milho Verde”, uma cantiga do folclore português), Luiz Melodia (“Presente Cotidiano”), Tuzé de Abreu (“Passarinho”), Jards Macalé e Waly Salomão.
O time de músicos que contribuíram com seus talentos para Índia é invejável. Sob a direção musical de Mestre Gilberto Gil (que pilotou boa parte dos violões do disco), Roberto Silva e Chico Batera ficaram responsáveis pela bateria, percussão e efeitos, Luiz Alves pelo contrabaixo e Toninho Horta pela guitarra. As participações especiais de Roberto Menescal (em “Desafinado”), Wagner Tiso, Arthur Verocai e Chacal azeitaram a sonoridade deste clássico. Entretanto, devemos destacar a contribuição essencial de dois artistas que foram fundamentais para este trabalho: o Maestro Rogério Duprat (arauto erudito dos Tropicalistas), que recriou “Índia” com um arranjo orquestral épico e Dominguinhos, que trouxe seu indefectível acordeom para várias faixas do disco. Sem a presença destes dois, o canto de Gal não teria atingido a mesma força, pois não teria a precisão dramática do que o Tropicalismo nos ofertou de melhor.
São por estas e algumas outras razões que Índia redefiniu a imagem de Gal Costa. A partir deste trabalho, Gracinha tornou-se uma cantora mais acessível para o grande público e inaugurava uma nova persona: deixou de ser a roqueira tropicalista que se alternava com a discípula de João Gilberto para se tornar em uma Diva Tropical que se sobrepôs a todas as demais personas que criara em cena. O melhor desta reinvenção é que, em momento nenhum, Gal deixou de ter o canto preciso e o olhar maliciosamente brejeiro da baiana verdadeira que sempre foi. Este disco é o documento primordial desta evolução da bela Gracinha…


PS: Gostaria de dedicar este humilde texto à memória de Dominguinhos (1941-2013). O Mestre Sanfoneiro foi fundamental não apenas na concepção deste trabalho de Gal (na gravação do disco e na turnê de Índia), como foi um dos músicos mais importantes da música brasileira. Que seu legado seja sempre um clássico nas memórias musicais das pessoas…

O LINK ORIGINAL ESTÁ NO PEQUENOS CLÁSSICOS PERDIDOS DESDE O DIA 25 DE JULHO DE 2013:

25 de setembro de 2016

TROVA # 88

A JUSTIÇA ENTRE PEDAÇOS 



Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
Do membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
(Chico Buarque, 1978)


Desde a Olimpíada do Rio de Janeiro, a TV aqui de casa nunca tinha dado tanto expediente assim. Findos os jogos e a normalidade democrática em nosso país, pensei em dar férias para a nossa intrépida Sony Bravia e não dar audiência para a emissora platinada e golpista. Porém, fui tomado de assalto por um item da programação do segundo semestre da Globo: a minissérie Justiça, com roteiro de Manuela Dias e direção geral de José Luiz Villamarin.

Jesuíta Barbosa, Adriana Esteves, Jéssica Ellen e Cauã Reymond em Justiça
Justiça conta com um elenco de fazer inveja a muito diretor de cinema, teatro e televisão: Débora Bloch, Adriana Esteves, Cauã Reymond, Leandra Leal, Cássio Gabus Mendes, Drica Moraes, Antônio Calloni, Vladimir Brichta, Camila Márdila, Enrique Diaz, além das participações especiais de Marjorie Estiano, Ângelo Antônio e Marina Ruy Barbosa e dos jovens talentos de Jéssica Ellen, Jesuíta Barbosa e Luísa Arraes. Quatro tramas supostamente paralelas, quatro tragédias particulares causadas pelas contradições do Brasil. Em cena: Recife, uma das capitais das belas de nosso país. Um país retratado através dos absurdos que regem nossas instituições.


Os telespectadores viam uma história por semana – às segundas, choramos com o sofrimento da personagem de Débora Bloch, uma advogada e professora universitária que sofria a dor de ter uma filha assassinada pelo noivo e que deseja se vingar do assassino da mesma maneira; às terças, suávamos frio com a agonia de Fátima, infernizada por um vizinho policial e sua esposa (uma mulher vulgar de péssimo trato) que leva a matriarca (Adriana Esteves) para a cadeia por um crime jamais cometido; às quintas, sentíamos a revolta diante das maldades sofridas pela personagem de Jéssica Ellen, uma jovem de 18 anos condenada por tráfico de drogas, pelo simples fato de ser negra e pobre; às sextas, nos solidarizávamos com as injustiças sofridas por Maurício (Cauã Reymond), obrigado a cometer eutanásia em sua esposa (Marjorie Estiano), pois ela jamais voltaria a andar depois de um acidente que lhe deixara tetraplégica. Quatro injustiças, quatro vidas dilaceradas, quatro vidas em pedaços, quatro desejos de vingança.


O que une estes injustiçados não é apenas o fato de terem sofrido desventuras causadas pela vida. Eles levaram golpes de seus semelhantes e irmãos – se levarmos em conta os escritos nos Testamentos de Cristo. Precisam refazer suas vidas a partir dos pedaços que sobraram e sentindo a falta das partes que se perderam. O desejo de vingança se sobrepõe à resignação esperada daqueles que pagam por seus pecados capitais. Afinal, como perdoar aquele que matou sua filha por machismo e ciúme doentio, ou o homem que atropelou sua esposa por mera imprudência e fugiu sem sequer prestar socorro? Como estender a outra face para aquele que te mandou para atrás das grades injustamente e deixou seus dois filhos abandonados pelas ruas do Recife ou para a moça que se omitiu diante de um crime do qual também foi cúmplice, mas não foi sequer interrogada por não ser negra? As tramas de Manuela Dias buscam outros questionamentos e não respostas para estas e outras questões.


Apesar de ter algumas características do velho e conhecido tom folhetinesco imposto pelo Padrão Globo de Qualidade, Justiça tem como pontos positivos o cenário (Recife é uma excelente alternativa para o velho e surrado trinômio cênico RJ - SP - fazendas de coronéis que só as telenovelas globais nos mostram), o elenco (Adriana Esteves, Débora Bloch, Leandra Leal e Drica Moraes nos ofertam atuações arrasadoras), a trilha sonora (Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Fagner, Chico Buarque & Zizi Possi em destaque) e uma trama novelesca fragmentada de uma maneira inteligente e que provoca o interesse do telespectador. Um marco do entretenimento da vênus platinada, sem sombra de dúvidas.


Além do mais, Justiça faz um questionamento feroz das instituições que deveriam zelar pelas leis e pelo cumprimento delas: a Polícia, supostamente designada a nos proteger, é retratada pela sua ineficiência, revanchismo e arrogância – vide o personagem de Enrique Diaz, por exemplo; os políticos, supostamente esperados a serem paladinos da ética e da honestidade, só se preocupam em seu enriquecimento ilícito e em suas próprias vantagens – o personagem de Antônio Calloni é um retrato infeliz daqueles que não nos representam dignamente nos Poderes Executivo e Legislativo. Algo raríssimo em um programa da Rede Globo, mais preocupada em oferecer o circo para complementar o pão que a gente come diariamente...
O que resta a nós, cidadãos comuns e nada privilegiados pela incompetência destas instâncias, é tentar valer o nosso senso de justiça através de nosso próprio mérito e esforço, mesmo que para isso tenhamos que literalmente quebrar as leis e os mandamentos que regem nossa sociedade. Agir com as próprias mãos para tentar curar a dor dos pedaços feitos não por vingança, mas para acreditar na existência de justiça.
Se a dor após fazer justiça por si só se vai eu não sei, mas que o machucado deixa de sangrar um pouco, disto eu não tenho a menor dúvida...


18 de setembro de 2016

TROVA # 87

A MÁQUINA HUMANA
(A Voz & A Máquina, um show de Elza Soares)



Sou negra, índia. Sou samba, jazz, blues, funk, rock ‘n’ roll, bossa, rap, soul, choro, sou punk. Sou claro. Sou escuro. Sou o sagrado. Sou o profano. Bendita. Maldita. Sou tudo. Sou nada. Sou Elzazaza. Elza eu sou.”
(Elza Soares)


Nunca me deixei seduzir pelos sons (re)criados pelos DJs. Sempre achei a música das pick ups um tanto estridentes e entediantes demais, de uma frieza absoluta. Baladas? Boates? Só aquelas que tocam o repertório dos anos 1970/1980, mas não me venham com Trash 80’s para cima de mim! No fundo, no frigir dos ovos, sempre tive a crença de que a máquina servia exclusivamente para que a música se tornasse algo decorativo, impessoal, sem emoção, com gosto de uísque com energético.


Por outro lado, sempre há momentos nos quais somos obrigados a rever os nossos conceitos. Quando soube que Elza Soares faria uma apresentação de seu espetáculo A Voz & A Máquina no Teatro Porto Seguro, fiquei bem receoso. Pensei que a proposta deste show estava completamente distante de trabalhos mais recentes como Elza Canta e Chora Lupi e A Mulher do Fim do Mundo, o que era a mais pura verdade. Fui para o teatro com o coração aberto e várias expectativas, apesar da minha antiga implicância com os DJs. Mais uma vez eu seria surpreendido por mais uma apresentação devastadora da voz do milênio.


Foto: Edson Lopes Jr.
Acompanhada de dois DJs – Ricardo Muralha e Bruno Queiroz – e um tecladista (Antônio Guerra), lá estava Elza Soares, sentada como uma rainha em sua cadeira no alto de um praticável. De início, pensei que estava dentro de uma rave que multiplicava a voz de Elzinha repetida e excessivamente. Estava redondamente enganado. Logo de cara, constatei que as pick ups de Queiroz e Muralha estavam a serviço de uma das vozes mais lendárias do planeta e não o contrário. As máquinas, condicionadas a reproduzir sons de forma sistemática e fria, foram humanizadas pelo talento inconfundível de Elza. A nega subverteu a lógica da invenção do homem branco em prol de seu canto.


Isso é o que os artistas revolucionários fazem: fazem da sua voz algo maquinal e tornam a máquina humana. Este é um dos exemplos que fazem de Lady Elza Soares uma artista singular na música do Brasil e do mundo... Verdade seja dita: com quase (ou mais de) 80 anos de idade, Elza poderia simplesmente focar em trabalhos saudosistas, louvando seu passado musical de grandes sucessos ou colhendo os frutos gerados por A Mulher do Fim do Mundo, um dos CDs/shows mais extraordinários de todos os tempos. Todavia, Elzinha não está no meio musical apenas para dar selinho, agradecer, abraçar e fazer improvisos musicais através de sua voz inconfundível: espetáculos como A Voz & A Máquina nos mostram como ela sabe ser moderna e inquieta.


Diz-se que a proposta de Elza, ao montar este show, era de se aproximar de um público mais jovem. Ela não só alcançou tamanha proeza, como também conseguiu mobilizar fãs mais velhos para uma típica “curtição jovem”. Graças aos rapazes que a acompanham no palco, os velhos clássicos de Vinícius de Moraes (“Corcovado”, “Canto de Ossanha” e “Chega de Saudade), Lupicínio Rodrigues (“Esses Moços”, “Nervos de Aço”) e Jorge Aragão (“Malandro” e “Vou Festejar”) ficaram, a princípio, irreconhecíveis, mas sem deixar de apresentar o selo de qualidade do canto de Elza Soares. “A Carne” (Seu Jorge, Marcelo Yuka & Wilson Capellette), canção gravada por ela em Do Cóccix Até o Pescoço, aparece em A Voz & A Máquina e é um dos pontos altos da noite. Como nos alerta o número de abertura, “Computadores Fazem Arte” (Fred Zero Quatro), “computadores fazem arte / artistas fazem dinheiro”. Elzinha faz a revolução e com muita ousadia.


Apesar da evidente fragilidade física, Elza Soares reina em cima de seu trono musical através de seu canto forte e incansável. É uma rainha dos palcos, sem perder a humildade e a gratidão de quem veio dos estratos menos favorecidos da sociedade brasileira. Canta os encantos da paixão e as dores da desilusão amorosa com a propriedade da experiência de uma vida inteira. Fala de injustiças sociais, de algumas esperanças e conta algumas anedotas de amigos queridos – não contive minhas gargalhadas quando ela nos contou da provável reação de Vinícius de Moraes se ele visse suas canções interpretadas daquele jeito. É uma mulher de “nervos de aço”. Uma artista de “opinião”. É de uma ousadia que pouquíssimos artistas possuem, pois só uma voz tão poderosa quanto uma máquina conseguiria humanizar a fria tecnologia dos DJs.




Espero que alguma gravadora um dia se interesse em registrar A Voz & A Máquina em CD e DVD. Não desejo isso apenas para que possamos ouvir mais um trabalho inquietante de Elza Soares, mas para que as gerações que surgirem depois da minha possam testemunhar (mesmo que pela tela da TV, do smart phone ou do YouTube) que ela é, foi e sempre será uma das artistas mais criativas e revolucionárias de que já tivemos notícia...



11 de setembro de 2016

TROVA # 86

DIA ONZE


“Where in hell can you go
Far from the things that you know
Far from the sprawl of concrete
That keeps crawling its way
About 1,000 miles a day?

(…)

Now, come on, shotgun bride
What makes me envy your life?
Faceless, nameless, innocent, blameless and free
What’s that like to be?”
(Natalie Merchant, 2001)



Em 2001, eu vivia a felicidade e a plena arrogância de um jovem de 20 anos de idade que achava que a juventude seria eterna e o mundo uma utopia a conquistar. Apesar de sempre ter desejado o Jornalismo, a Faculdade de Letras tinha mudado a minha vida: graças aos estudos de Literatura, passei a nutrir um amor gigantesco pela palavra. Todavia, o desejo de ser jornalista ainda me rondava, pois tinha recebido um convite de Izabel Leventoglu, uma de minhas professoras de Língua Portuguesa da Graduação, para escrever e editar o jornal universitário Estilo, do curso de Letras da Universidade Estácio de Sá. Caroline Rohan, parceira e amiga de boas e más horas, embarcou comigo naquele desafio.
Editar o Estilo era uma tarefa que nos rendeu muito suor, paciência, gargalhadas, algumas lágrimas, alguns aliados queridos, além de uns dois ou três desafetos. Vivíamos na sala de edição de materiais impressos da Universidade, que pertencia ao curso de Jornalismo, ao lado de Marita, uma editora que possuía uma paciência invejável conosco. Era uma terça-feira ensolarada e sinistra e resolvemos “matar” uma aula de Legislação para podermos finalizar uma das edições do jornal universitário. Carol e eu estávamos justamente nesta sala quando ouvimos as notícias no rádio de que Nova York estava em chamas. Diante da catástrofe, o periódico iria ter de esperar mais uma vez...
Os plantões do noticiário tratavam dos aviões sequestrados, do Pentágono em chamas, das torres gêmeas sendo atacadas e ruindo. O choque de presenciar um ataque terrorista obrigou a Universidade a interromper os afazeres aos quais se dedicava naquele momento para ver e rever as aeronaves colidindo contra o World Trade Center. Cheguei na frente da TV mais próxima a tempo de ver o segundo avião cumprir o seu trágico destino. Não me lembro de mais nada que tinha que fazer durante o dia: sei que tinha que ir para casa ou ir para o estágio, talvez. Mais tarde, de volta para as aulas do período da noite, vi a abertura do Jornal Nacional com os rostos de William Bonner e Fátima Bernardes se alternando através uma edição frenética e noticiando os fatos do dia como se fosse um espetáculo inédito. O mundo mudava depois de tudo aquilo. Para pior, infelizmente...


*

Quatro aviões sequestrados e derrubados: dois em Nova York, um em Washington, outro na Pennsylvania. Milhares de mortos. As torres gêmeas do World Trade Center caíram como se fossem singelos castelos de cartas – a diferença é que havia concreto, tijolos, pessoas, dor e sofrimento por dentro. O Pentágono em chamas. Um avião destroçado no meio de uma floresta graças à heroica resistência dos reféns. Choque e perplexidade. O mundo em alerta.
O maior feito dos talibãs não foi ter matado muitos de uma só vez. Foi ter dado cabo à “revolução televisionada” da qual tanto se escreveu e falou: o terrorismo se tornara, enfim, integrante do horário nobre. Se isso não foi revolucionário, não deve ser possível saber o que mais poderia ter sido...


Todas as pessoas se recordam bem do lugar onde estavam e do que estavam fazendo no exato momento de uma grande tragédia. As mortes de Ayrton Senna, Cássia Eller e Michael Jackson são exemplos para muitos de minha geração. O dia 11 de setembro de 2001 não apenas chocou o planeta inteiro, como entrou para a galeria de crimes hediondos dos quais a humanidade jamais poderá se esquecer ou se orgulhar como o Holocausto, a Bomba Atômica, a escravidão e os Tribunais do Santo Ofício, para não citar mais alguns.


*

Depois de recolher os destroços e os mortos, os Estados Unidos não conseguiram superar o luto dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. A Terra de Uncle Sam embarcou em uma onda de paranoia ridícula de censura que se espalhou pelas rádios e emissoras de TV: não era permitido tocar canções que nos remetessem aos atentados terroristas. Os artistas foram vítimas de um puritanismo reacionário motivado pela dor e pela morte de milhares de inocentes. Excluir os trabalhos de artistas e bandas que jamais tiveram inclinações terroristas do dial e dos canais televisivos era de um exagero patético, ridículo.  Alanis Morissette, U2, Pearl Jam, Tom Petty, Foo Fighters, Phil Collins, Frank Sinatra e o Red Hot Chilli Peppers foram alguns dos que sofreram tais sanções.


Chico Buarque um dia nos disse que a pior coisa de se viver em um regime ditatorial não é ser censurado pelo governo, e sim ter de se autocensurar. Um exemplo ocorrido nesta época se deu com uma de minhas cantoras preferidas, Natalie Merchant. A ex-vocalista do 10,000 Maniacs tinha concluído as gravações de seu terceiro disco de estúdio, Motherland, em 9 de setembro de 2001. Como consequências dos ataques que abalaram os EUA dois dias depois, Miss Merchant precisou reformular seus planos originais em relação ao projeto.


A primeira alteração foi feita com a arte do álbum – a sessão de fotos de capa e encarte consistia em imagens de crianças vestindo máscaras de oxigênio em um campo aberto. De acordo com a artista, as controversas imagens (hoje, desaparecidas) foram feitas em 10 de setembro. A sessão de fotos se reiniciaria no dia seguinte, o que jamais chegou a acontecer. A segunda mudança feita em Motherland foi em relação ao repertório: o disco que já abria com uma canção descaradamente política – “This House is on Fire” – contaria com uma das canções mais belas de Natalie Merchant: “The End”, uma “Imagine” do século XXI, foi influenciada por uma exposição de fotos do renomado fotógrafo Sebastião Salgado. A letra fala em um utópico fim da lei, das religiões e da perversidade dos homens.


Natalie não queria se tornar a inimiga número 1 da América, o que resultou na exclusão desta canção do disco. Os ataques de 11 de setembro de 2001 deram uma interpretação deturpada às canções de Motherland. Apesar das críticas bastante elogiosas ao álbum, a Warner e o selo Elektra fizeram pouca divulgação do disco e dispensou Natalie Merchant do casting da gravadora pouco tempo depois. Como consequência da autocensura, “The End” infelizmente só foi gravada em disco 13 anos depois.


Por outro lado, os norte-americanos nunca se recuperaram da dor causada pelos ataques de 11 de setembro. Ao andar pela parte sul de Manhattan em 2012, visitei o local da tragédia e a sensação era de um mal estar tremendo. O que mais me surpreendeu foi descobrir a St. Paul’s Chapel, localizada atrás do antigo World Trade Center. Aquele local, intacto e imune às barbáries do passar do tempo, abrigou moradores locais em um grande incêndio ocorrido na cidade no século XVIII e foi pólo de resgate das vítimas do terrorismo. Aquela capela me deu uma lição: a força dos justos sobrevive aos anos, o mesmo se aplica aos artistas da música e às belas canções que ouvimos por aí...



Tenho a consciência de que todo dia onze do nono mês do ano é uma oportunidade que temos para abominar o ódio e a injustiça para que possamos reafirmar nosso amor uns pelos outros e ouvir música que nos faça bem e nos faça pensar. É por isso que as canções são feitas. É por isso que escrevemos sobre música...









10 de setembro de 2016

TROVA # 85

A MÚSICA DA VITROLA DE CLARA
(algumas considerações sobre Aquarius
de Kleber Mendonça Filho)


“Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo 

Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos 

Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você 

Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte 

Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte

Ah, sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim
Como eu te amei”
(Taiguara, 1969)


            Em tempos nos quais a estabilidade democrática e a ética se tornaram itens opcionais no sistema político brasileiro, qualquer evento cultural que desafie a norma do establishment em 2016 já é um enorme acontecimento. O cinema brasileiro já nos legou não apenas o maior deles, como também revelou um dos programas culturais mais impactantes das últimas décadas: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.



         O segundo filme do cineasta pernambucano já seria um grande momento cultural só por causa de Sonia Braga como protagonista de um grande elenco. Sonia é um mito do cinema mundial e é uma das mulheres mais belas jamais surgidas na telona do cinema: encarnou Tieta do Agreste, Dona Flor ao lado de seus dois maridos, já deu O Beijo do Homem da Aranha, viveu Gabriela na TV e em Hollywood; fez Eu te Amo, de Arnaldo Jabor, um dos filmes mais ousados de toda a história de nossas artes. É dona de uma trajetória invejável, de dar orgulho a todos os brasileiros de bom coração.




         Aquarius ganhou notoriedade no final de maio de 2016, quando estreou no badalado Festival de Cinema de Cannes. A Riviera Francesa e o mundo do entretenimento tremeram não apenas com a qualidade indiscutível da película e com uma das atuações mais fantásticas de Sonia Braga. Ao final da primeira projeção, elenco, produtores e o diretor do filme posaram para as câmeras fotográficas e das emissoras de TV do mundo inteiro denunciando o golpe parlamentar que estava em curso no Brasil.



O impacto foi imediato: o GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) minimizou os protestos e fez campanha aberta para que o público brasileiro boicotasse o filme. O Ministério da Cultura do “governo” Temer repreendeu os envolvidos publicamente e pouco fez para diminuir a classificação indicativa do filme – ao estrear por aqui, o filme de Kleber Mendonça Filho recebeu o selo infeliz de “Censura 18 Anos”.




Por outro lado, a popularidade de Aquarius era inevitável: antes de chegar de vez no Brasil, o filme já teria exibição garantida em dezenas de países do mundo e abocanhou um público de 55 mil pessoas nos primeiros 4 dias de exibição. Em uma semana, 100 mil pagantes já tinham assistido o segundo filme de Kleber Mendonça Filho. Enquanto os setores mais conservadores da mídia brasileira não tinham mais como esconder o sucesso deste trabalho, os espectadores a favor da democracia e contrários ao governo golpista, tomados pelo tom político arrebatador da película, saudavam o final de algumas sessões de cinema com gritos de “Fora Temer”, para nojo dos golpistas e preocupação daqueles que tomaram o poder, mas nunca tiveram um projeto de poder legitimado pela maioria do povo brasileiro.



A trama de Aquarius gira em torno de Clara, uma mulher sexagenária que vive no único apartamento habitável do Edifício Aquarius, localizado em frente à Praia de Boa Viagem, um dos endereços mais valorizados de Recife (PE). Os demais apartamentos foram comprados por uma poderosa construtora de imóveis, interessada em erguer um condomínio gigantesco no lugar do prédio onde a personagem de Sonia Braga viveu durante a vida inteira. O conflito da protagonista se intensifica quando Diego, o neto do dono da empresa, inicia uma campanha agressiva para o suntuoso empreendimento possa ser construído.



O embate entre Clara e Diego revela a eterna contradição existente entre a sensibilidade poética do indivíduo e a sua constante sede de poder, que desconhece nostalgia, valores e sentimentos. A convicção da única moradora do Edifício Aquarius contra o poderio do capital e da arrogância se tornou inabalável ao ponto de entrar em conflito com seus próprios filhos. Uma das falas mais impactantes do filme de Kleber Mendonça Filho é justamente aquela na qual a personagem de Sonia Braga esfrega na cara do jovem empreendedor interpretado por Humberto Carrão que educação é algo completamente independente de posses ou dinheiro. Em outras palavras: nem todos os membros das elites, detentores de posses e do acesso a boas escolas e universidades são bem-educados.


Clara é uma mulher que carrega consigo e em seu apartamento as marcas e as memórias do passado, formando um enorme arquivo sentimental. Seu apartamento no Edifício Aquarius é uma galeria dos amores que lhe mantém viva e firme na luta contra o poder e a especulação imobiliária. Ex-crítica de música e especialista em Heitor Villa-Lobos, a personagem de Sonia Braga expressa seus sentimentos através da música. “Toda Menina Baiana”, de Gilberto Gil, é a trilha sonora de uma memorável festa familiar. “O Quintal do Vizinho”, de Roberto & Erasmo, lhe traz o consolo diante de uma desilusão amorosa e da falta de sensibilidade do outro. “Another One Bites the Dust” e “Fat Bottomed Girls”, do Queen, são canções que testam a potência das caixas de som do carro (e do cinema!), como também são “armas” sonoras para os desmandos ocorridos em uma festa patrocinada por Diego e ocorrida no apartamento de cima ao da protagonista. Reginaldo Rossi louva as belezas e os encantos mil de Recife e do Nordeste Brasileiro enquanto belas mulheres bailam pelo tradicional Clube das Pás. A minha preferida de todas as escolhas de Kleber Mendonça Filho é quando Clara, desfrutando de um de seus melhores momentos de Tia babona, pede para o sobrinho mais novo que ele toque Maria Bethânia para a namorada carioca que ele acabara de conhecer. Assim, a menina teria plena convicção de que o rapaz é um cara intenso.



  Aquarius não é apenas um belíssimo filme por causa de sua trilha sonora espetacular ou por trazer a bela e talentosíssima Sonia Braga bailando pela sala de casa ao som de seus vinis prediletos. As canções do filme dialogam com os sentimentos de Clara de maneira direta, sem deixar de nos dizer algo aos recônditos sentimentais mais profundos de cada um de nós.


A vitrola de Clara não é apenas um passaporte para as doces memórias do passado. Ela é a pedra de resistência principal de alguém que resiste a fazer concessões a um mundo que se faz cada vez mais frio e insensível. Os sons do vinil fazem da personagem de Sonia Braga uma anã que luta incansavelmente contra um gigante poderoso e covarde pronto a colocar em prática a sua agenda neoliberal. Aquarius é um filme inspirador: nos incentiva a lutar pelas injustiças frequentes no dia-a-dia pessoal e nos motiva a brigar pelos absurdos que afligem a vida no Brasil do século XXI. Que o Cinema Brasileiro possa nos ofertar outros filmes de tamanha magnitude...