21 de agosto de 2016

TROVA # 82



A CINDERELA DO ESPORTE
(alguns bons motivos para jamais nos esquecermos da RIO 2016)




I've paid my dues
Time after time.
I've done my sentence
But committed no crime.
And bad mistakes
I've made a few.
I've had my share of sand kicked in my face
But I've come through.

(And I need just go on and on, and on, and on)

We are the champions, my friends,
And we'll keep on fighting 'til the end.
We are the champions.
We are the champions.
No time for losers
'Cause we are the champions of the world.

I've taken my bows
And my curtain calls
You brought me fame and fortune and everything that goes with it
I thank you all
But it's been no bed of roses,
No pleasure cruise.
I consider it a challenge before the whole human race
And I ain't gonna lose.

(And I need just go on and on, and on, and on)

We are the champions, my friends,
And we'll keep on fighting 'til the end.
We are the champions.
We are the champions.
No time for losers
'Cause we are the champions of the world.

We are the champions, my friends,
And we'll keep on fighting 'til the end.
We are the champions.
We are the champions.
No time for losers
'Cause we are the champions.
(Freddie Mercury, 1977)


         O mês de agosto de 2016 tem nos trazido boas notícias também. Há duas semanas que o Rio de Janeiro tem vivido dias de glória com a trigésima-primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Sem grandes tragédias até aqui (pelo menos as não noticiadas pela mídia), o que é bastante louvável para uma cidade que estava à beira do colapso nas vésperas da abertura das Olimpíadas.
         Pensei em boicotar os Jogos, com raiva profunda do Governo do Estado e da Prefeitura do Rio de Janeiro, que faliram as finanças do Estado em prol do evento e fazendo pouco dos cariocas, que sempre batalharam tanto em meio à violência, a beleza e o caos. Pensei no boicote por estar profundamente revoltado com a situação política gravíssima de nosso país, que não quer lidar com o fato de que houve sim, de fato, um golpe político que dizimou a democracia e o mandato de uma presidente eleita. No entanto, foi preciso levar em consideração que há muitos outros que não possuem culpa da tragicomédia chamada Brasil – sim, me refiro aos atletas: eles não merecem nosso boicote...
         Apesar de não ser um entusiasta da prática pessoal dos esportes (mais uma prova de que eu sou a ovelha negra da família, pois tenho um irmão Professor de Educação Física e minha mãe virou maratonista de energia inesgotável após os 50 anos de idade, só para citar dois exemplos), acho bastante admirável ver a disposição de alguns seres humanos em superar seus próprios limites físicos como uma missão de vida, em busca novos recordes, fazendo algo amado por todos os torcedores. A atividade desportiva torna-se uma escolha do lado esquerdo do peito, cujo retorno financeiro nem sempre corresponde à quantidade de privações que muitos fazem para poder treinar e competir pelos quatro cantos do mundo. Usian Bolt, Michael Phelps e Simone Biles, estrelas do atletismo da natação e da ginástica olímpica, fizeram história, viraram lendas e não meras atrações do noticiário semanal.

Usian Bolt
Michael Phelps
Simone Biles

         A cerimônia de abertura dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro foi um evento emocionante, com bastante música e mostrando para o mundo inteiro o que os brasileiros sabem fazer de melhor – dentre as coisas boas e algumas atrações de gosto bem duvidoso. Vibrei de alegria ao ver o Presidente Interino Golpista Michel Temer levar uma vaia que faria Nelson Rodrigues ruborizar de vergonha alheia dentro do Maracanã e (consequentemente) diante do mundo inteiro. A emoção de ver a tocha olímpica sendo carregada pelo estádio pelos atletas mais significativos da história de nosso esporte (Gustavo Kuerten – tênis, Hortência Marcari – basquete e Vanderlei Cordeiro de Lima – atletismo) valeu cada momento e me fez esquecer temporariamente dos absurdos que ocorreram enquanto o símbolo maior da Olimpíada passava pelas ruas do país.

Gustavo Kuerten
Hortência Marcari
Vanderlei Cordeiro de Lima

         Tem sido doloroso para mim, carioca de nascimento e paulista de coração, ficar longe do Rio de Janeiro em um dos momentos mais célebres de toda a sua trajetória. Nossos atletas têm escrito páginas belíssimas da história do esporte brasileiro através de garra e superação. Rafaela Silva, judoca negra, pobre, injustiçada, lésbica e distante dos padrões de beleza internacionais, foi a primeira judoca brasileira a conquistar uma medalha de ouro, revelando todo um passado de sofrimento e frustração e como fomos injustos com ela diante de sua eliminação nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Thiago Braz da Silva (salto com vara) conseguiu pular mais alto do que todos e se consagrou como o melhor de todos. Isaquías Queiroz dos Santos remou dentro de sua canoa como se fosse a última coisa a ser feita na vida e conquistou três medalhas olímpicas – único brasileiro a conseguir tal marca em uma única edição dos jogos. Robson Conceição derrotou um lutador cubano e leva o ouro olímpico pelo boxe. Alison Cerutti e Bruno Schmidt, aliando técnica e gigantismo, se tornaram campeões olímpicos de vôlei de praia depois de partidas eletrizantes. Arthur Zanetti subiu ao pódio pela ginástica olímpica e levou a prata. E o que dizer de Maicon Andrade, um ex-pedreiro e ex-garçom que conquistou o bronze no tae-kwon-do e da espetacular seleção brasileira de vôlei masculino que arrebatou o segundo ouro depois de quatro finais olímpicas consecutivas?! Outros exemplos não faltam e, ainda bem, não nos faltarão... 

Rafaela Silva
Thiago Braz da Silva
Isaquías Queiroz dos Santos
Robson Conceição
Alison Cerutti e Bruno Schmidt
Arthur Zanetti

Maicon Andrade
O espetacular trabalho do vôlei masculino do Brasil


         Houve alguns exemplos emocionantes de humanismo através da capacidade única do esporte em unir as pessoas. Duas ginastas, uma da Coréia do Norte e outra da Coréia do Sul (duas irmãs divididas por conflitos políticos), fizeram questão de postar juntas em uma selfie. Uma iraniana, residente na Bélgica, fez o que pode para lutar pelos direitos das mulheres de seu país ao reivindicar o direito de que a entrada dos estádios seja permitida para indivíduos de ambos os sexos. Marta e suas companheiras intrépidas da Seleção Brasileira de Futebol feminino lutaram por uma medalha como se estivessem dentro de uma batalha campal, ganhando a admiração e o respeito de muitos de nós. E um fato importantíssimo para as minorias: os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro entram para a história por ter sido o evento esportivo no qual houve a maior quantidade de esportistas que “saíram do armário” e tornaram pública a sua homossexualidade. Sinal de que os eventos esportivos, redutos do machismo e da homofobia, também fazem parte da mudança dos tempos...

A selfie das coreanas
A iraniana corajosa
O escrete feminino
O amor de duas pessoas que se amam
         Mesmo diante das dificuldades e das inegáveis falhas do evento, os cariocas se revelaram como anfitriões alegres irreverentes e infinitamente dispostos em celebrar as maravilhas do esporte. Em certos momentos, até demais: muitos reclamaram com razão do barulho ensurdecedor das torcidas que ocuparam as arenas olímpicas e os estádios, afinal o comportamento de nossas torcidas, essencialmente futebolísticas, não estão acostumadas com um comportamento mais moderado em modalidades que exigem mais concentração dos atletas, tais como o golfe, o atletismo e o tênis, para não citar outros. Ainda é preciso aprender a seguinte lição: torcer para o seu desportista ou time favorito também requer boa educação e respeito, exigindo a consciência do momento mais adequado para vaiar e aplaudir.
         Por outro lado, também não podemos esquecer dos tristes episódios ocorridos antes e durante a Rio 2016. Ainda não consigo me conformar com a onça assassinada durante a passagem da tocha pelo estado do Amazonas. Nem com a onda de protestos contra Temer e a Globo sumariamente abafados pelos policiais, impedindo a liberdade de expressão de vários brasileiros. E como lidar com o “piti” homérico de Renaud Lavillenie, o atleta de salto com vara que perdeu o ouro para Thiago Braz, e comparou a torcida brasileira com os nazistas que vaiaram o americano Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936? E com a falta de respeito do judoca egípcio que se recusou a cumprimentar o adversário iraniano depois de perder uma luta? E como suportar com a arrogância de Neymar e seus coleguinhas da Seleção Brasileira de Futebol que entram em campo muito mais preocupados com seus egos, salários astronômicos e patrocínios escandalosos enquanto as meninas do futebol são altamente desvalorizadas pelo mercado e machistas de plantão? E como compreender a falsa denúncia do nadador norte-americano Ryan Lochte e seus amigos à polícia carioca alegando roubo em um claro episódio de bandidagem e não de molecagem? A violência, aliás, continuou a dar as caras pelo Rio de Janeiro, mesmo diante da importância do evento, e não ao vitimar um soldado da Força Nacional, morto “ao defender os interesses da pátria brasileira”. Infelizmente o fair play passou longe destes casos, o que é digno de vergonha alheia.

A onça assassinada
Renaud Lavillenie
Neymar e sua turminha
Ryan Lochte

         Quando a segunda-feira do dia 22 de agosto se iniciar, nós nos lembraremos de que o Rio de Janeiro, depois de se sagrar campeão em um evento que mobilizou diversos países do mundo, estará longe de viver dias de “bed of roses” ou “pleasure cruise” descritos por Freddie Mercury à frente do Queen. O Rio deixará de ser a Cinderela do esporte mundial para voltar a ser a velha gata borralheira violentada por bandidos traficantes e que vestem terno e gravata em busca de votos para continuar saqueando os cofres públicos. A Força Nacional, os turistas, os atletas estrangeiros e a imprensa internacional se distanciarão como o “Raio Bolt”, enquanto nós teremos de nos voltar para as agruras de um Estado falido, que não paga seus policiais e vive uma crise sem precedentes em termos de segurança pública. A realidade retornará à rotina dos cariocas. Cabe a cada um de nós (eu me incluo, evidentemente!) sair em busca da autoestima e lutar para que a “Cidade Maravilhosa” continue a fazer jus à sua enorme beleza.


16 de agosto de 2016

"ALÔ, CRIANÇADA!!!'

Elke Maravilha em foto de David Zingg, anos 1970

Hoje foi mais um dia muito triste para mim. Para o Brasil inteiro. Para o mundo todo.

2016 tem sido um ano de golpes sucessivos. Em janeiro perdemos David Bowie. Cauby Peixoto nos deixou em maio. Agosto, este mês ingrato, tirou Elke Maravilha, esta eterna criança, de todos nós. É uma melancolia e uma tristeza que não dá para medir, nem explicar. 

Nunca tinha passado pela minha cabeça a possibilidade de escrever um texto sobre Elke Maravilha para o Blog. Nunca mesmo. Certamente por falta de criatividade e sensibilidade em reconhecer o talento desta musa, desta sublime "drag queen de si mesma", como eu li na Folha de São Paulo de 16 de agosto de 2016.

Pessoas como Cauby, Bowie e Elke são pessoas que definiram a geração de meus avós, de meus pais. Exercem influência sobre a minha geração. São personalidades que serão apenas uma referência de qualidade para nossos filhos e sobrinhos, por exemplo. As gerações futuras deverão garimpar o legado dessas pessoas e a sua importância para a humanidade. É vida que segue, mesmo com as marcas, as feridas e a saudade... 

Ao ver a quantidade assombrosa de acessos do Trovas de Vinil hoje, por volta de 11 e meia da manhã, levei um baita susto. Mais de 700 visualizações antes do meio dia! Mais de 1000 visualizações depois das dez da noite. Cerca de 1150 após a 1h, 24h depois de Elke Maravilha ter nos deixado para "brincar de outra coisa"...

É muito, mas muito mais do que este blogueiro ocasional poderia imaginar... Precisava fazer jus à esta artista completa e fui fazendo uma série de alterações no texto original e fui incluindo links e vídeos ao vivo ao longo do dia. Sempre há algo a ser revisto e Elke, meticulosa e preocupadíssima com sua imagem pública, merecia tamanho zelo durante meus horários de descanso.

Quero agradecer a você, Elke Maravilha, criança amada e eterna, de onde você estiver. Minha gratidão a ti é inestimável. Somos menos caretas e revolucionários graças à sua inteligência e à sua gargalhada...

Obrigado aos leitores do Trovas de Vinil por fazer deste espaço algo tão célebre na dor e na saudade...

Salve, Elke Mulher Maravilha! Nós vamos sentir muito a sua falta...

Muito obrigado por tudo, criança!

TROVA # 81

MARAVILHA ETERNA 

Em memória de Elke Maravilha (1945-2016)


"Sou extremamente política, mas não sou ativista e nunca fui. Não dá certo. Sou anarquista. Há governo, sou contra. Os governos não resolvem, o ideal tem que estar no coração. Meu coração diz que preciso pagar bem as pessoas, não preciso ser de esquerda ou de direita."
(Elke Maravilha)

"Elke mulher maravilha
Uma negra alemã um radar
Um mar uma pilha
Elke mulher maravilha
Uma branca maçã avatar
Um luar uma ilha
Elke mulher maravilha
Uma deusa pagã um sonar
Um altar uma trilha
Elke mulher maravilha
Uma prenda Ogã um pilar
O ar mãe e filha"
(Itamar Assumpção)



Insônia. Angústia. Viro na cama de um lado para o outro depois de assistir uma partida de vôlei masculino eletrizante que nos leva para as quartas de final dos Jogos Olímpicos de 2016 depois de muito sofrimento. Tentar dormir para acordar daqui a pouco e retomar a rotina e o trabalho. Corre-corre. Viver entre os parcos intervalos que nos cabem no latifúndio alheio. Tentar descansar mais tarde...


Pego o iPad para ver as horas e acessar as redes sociais e fazer com que Morfeu me encontre facilmente para um encontro rumo aos lençóis e edredons. Em vão! Leio a notícia mais devastadora para os amantes das artes deste mês de agosto. Elke Maravilha tinha acabado de falecer. O sono mandou lembranças. A tristeza me invadia depois da euforia provocada pela vitória da seleção masculina de vôlei nos Jogos Olímpicos de 2016. Cadê o Bernardinho para me dar uma orientação diante de um lance desses que a morte deu na nossa quadra?


Elke Maravilha era uma dessas pessoas que não deviam morrer, mas que deviam ficar encantadas para que este país se lembrasse de que deveria ser irreverente, sarcástico, extravagante e inteligente para todo o sempre. É uma perda gigantesca para nossas artes. Basicamente porque Elke, apesar de ser russa de nascimento, apesar de ser apátrida, era muito mais brasileira do que vários artistas que foram nascidos e criados por aqui. Foi tão mineira quanto Drummond, por ter sido criada na mesma Itabira do autor de A Rosa do Povo. Foi atriz. Foi modelo. Foi jurada do Chacrinha. Foi jurada do Show de Calouros do Silvio Santos. Foi ativista dos direitos da comunidade LGBTQI+. Foi uma lutadora dos portadores de hanseníase. Foi revolucionária. Foi de uma inteligência inacreditável. Via e compreendia o mundo com a inocência e a inteligencia de uma criança. Uma mulher Ímpar. Incomparável. Irrepreensível. 


A primeira vez que ouvi falar mesmo de Elke já distante das minhas infantes memórias foi lá pelos idos de 2002. Minha grande amiga Caroline Rohan estava encastelada em seu antigo apartamento em Copacabana por causa de uma desilusão amorosa que lhe custou muito caro. Dentre o período que passou tristonha e desesperadamente solitária em casa, citou para mim e um colega que tinha assistido durante o seu exílio particular a uma entrevista com a ex-jurada do Cassino do Chacrinha que tinha lhe marcado muito. Foi duramente criticado pelo meu colega. Provavelmente fiquei em silêncio, pois eu não tinha opinião formada sobre aquela moça de trajes e perucas extravagantes. Só fui entender sua importância anos depois...


Quando fui assistir a atuação matadora que Patrícia Pillar fez de Zuzu Angel no cinema, vi que Elke Maravilha era uma personagem fundamental de nossas artes desde a primeira metade dos anos 1970. Passei a respeitá-la e a admirá-la por ver que ela era uma artista completa, uma mulher corajosa e que sabia pensar com imensa peculiaridade o aqui e o agora. Falava várias línguas. Cantava em alemão lindamente. Dominava o palco e o público com o charme de uma sereia que cantava para o seu pescador. Se você não fosse um ser insensível, o encanto era automático. A musa apátrida estava sempre pronta para conquistar mais um admirador.



Eu a vi em carne e osso uma única vez no SESC Pompeia em 22 de novembro de 2007. Era o encerramento de um dos festivais do Mix Brasil e ela faria uma participação especial de uma show de um cantor uruguaio do qual eu nem lembro mais o nome. Ângela Ro Ro, motivo principal de minha peregrinação até a Rua Clélia, fecharia o evento. Logo ao chegar, vi uma mulher altíssima, andando com certa e notória dificuldade (afinal, não devia ser fácil para uma jovem senhora de 60 e poucos anos se equilibrar em cima de um salto plataforma) e cheirosa. Perfumadíssima. Pronta para encantar seu público com o seu sorrido gigantesco e seu magnetismo único. Elke Maravilha tirou fotos conosco no meio da choperia do Pompeia e, minutos depois, fez uma apresentação belíssima.

Elke Maravilha, SESC Pompeia: 22/11/2007 - Foto: Nilton Serra





Nos últimos tempos, Elke estava correndo as cidades do país com o espetáculo Elke Canta e Conta. Sempre prometi a mim mesmo que gostaria de assisti-la quando ela pousasse por São Paulo para uma apresentação. Vou ficar devendo essa para ela, infelizmente... Vibrei com a participação incendiária dela no barulhento CD Selvática, de Karina Buhr, na esperança de que um dia o mundo poderia assisti-la ao lado de Karina e Denise Assunção bradando impropérios contra todos aqueles que amaldiçoaram as mulheres no decorrer de toda a caminhada insólita da humanidade. Nunca poderemos ver isso... Agora nos resta o consolo, no auge de nossa incerta crença cristã, de que ela vai brilhar nos palcos celestiais...



Este país fica muito mais triste e muito menos irreverente sem a presença de "Elke Mulher Maravilha" (pegando de empréstimo o verso de Mestre Itamar Assumpção). É muito, muito difícil saber que perdemos uma pessoa tão alegre e inteligente. Tão necessária para os tempos tão bicudos que o Brasil tem vivido. A lição que fica para todos os brasileiros é de que caretice é um mal enorme do qual não devemos compadecer. 


Vá em paz, Criança (com "C" maiúsculo mesmo)! Agora és nossa maravilha eterna. Sua missão foi muito bem cumprida. Você está pronta para brincar de outra coisa, do jeito que você sempre disse. Nos, por aqui, não vamos ceder à caretice, mesmo sem a sua presença física marcante. Vamos lutar sem trégua contra os mesquinhos e os hipócritas. Por você, por Zuzu, por Chacrinha e por todos os outros. Por sua gargalhada. Por sua inteligência. Não deixe de olhar por nós, de onde você estiver...








8 de agosto de 2016

TROVA # 80

CAFEÍNA, POESIA & PENSAMENTO
(cafés, livros e viagens de Patti Smith)


Acredito no momento. Acredito nesse balão alegre, o mundo. Acredito na meia-noite e na hora do meio dia. Mas no que mais acredito? Às vezes em tudo. Às vezes em nada. É algo que flutua como a luz refletindo numa lagoa. Acredito que um dia todos vamos perder. Quando somos novos acreditamos que isso não vai acontecer, que somos diferentes. Quando era criança, achava que nunca iria crescer, que podia realizar esse desejo com a minha vontade. E depois percebi, bem recentemente, que tinha atravessado alguma divisória, inconscientemente encoberta pela verdade da minha cronologia. “Como ficamos tão velhos?”, pergunto às minhas articulações, ao meu cabelo cor de ferro. Agora já estou mais velha que meu amor, que meus amigos que já se foram. Talvez eu viva tanto que a Biblioteca Pública de Nova York seja obrigada a me ceder a bengala de Virginia Woolf. Eu cuidaria da bengala para ela, das pedras de seu bolso. Mas também seguiria vivendo, recusando entregar minha caneta”.
(Patti Smith – Linha M – São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 203)

Para Malu Zanesco
a quem eu tive a honra de apresentar a arte de Patti Smith


A inteligência e o pensamento de Patti Smith transitam pelas mais diversas formas de artísticas: os universos da música, literatura, artes plásticas lhe são bastante familiares. Foi a poesia que lhe deu régua e compasso, mas foi o Punk Rock que lhe tornou famosa graças a discos revolucionários como Horses (1975), Easter (1978), Peace and Noise (1997), Twelve (2008) e Banga (2012).


Entretanto, foi a Literatura de Patti que me pegou de jeito. Ao ler Só Garotos [Just Kids] durante o inverno de 2012, ri e chorei com as andanças de Ms. Smith pela sua Nova Jersey de origem, pela França de Rimbaud e por Nova York, onde encontrou seu melhor amigo e o primeiro amor de uma vida inteira, o artista plástico e o renomado fotógrafo Robert Mapplethorpe. Os encontros e desencontros da filha mais velha de Ian e Beverly Smith são o autorretrato mais completo da juventude de uma das artistas mais importantes que os Estados Unidos da América ofertaram ao mundo.

Patti Smith ao lado de Robert Mapplethorpe 

De humilde vendedora de uma livraria à fama como uma das musas do Punk Rock e o casamento com Fred “Sonic” Smith, Patti Smith virou sinônimo de rebeldia total para gerações. Sua música não se assemelhava ao que outras mulheres faziam na década de 1970. Sua beleza não segue nenhum tipo de padrão estético ou regras previamente estabelecidas. A intensidade de seu pensamento, por outro lado, é um tributo a todos os que lhe influenciaram ao longo dos anos – Arthur Rimbaud, Allen Ginsberg, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Albert Camus, Jim Morrison e tantos outros...

Patti Smith ao lado de Allen Ginsberg

Se a música rendeu fama e celebridade a Patti Smith, a literatura lhe deu bastante prestígio no universo das letras: Só Garotos venceu o National Book Award de 2010, além de outros prêmios literários importantes dos EUA. Diante do sucesso merecido das primeiras memórias de Patti, surgiram rumores de adaptações do livro para o Cinema e de que haveria uma sequência, na qual a madrinha do Punk Rock relataria sua vida pacata, discreta e distante dos holofotes ao lado de Fred e seus dois filhos, Jackson e Jesse.

The Smiths: Fred, Patti, Jackson e Jesse - Foto: Robert Mapplethorpe
Quando comecei a ler Linha M [M Train] em abril de 2016, pensei que estava diante da vida de Patti ao lado de Fred “Sonic” Smith. Fui sumariamente enganado pela autora de “Redondo Beach”. Ela fez de seu segundo livro de prosa – Patti Smith é autora de vários livros de poesia, dentre eles: Witt (1973), Babel (1978), The Coral Sea (1996) e Auguries of Innocence (2005) –, um verdadeiro emaranhado de pensamentos poéticos acerca de seu cotidiano. Viagens, fotos, turnês, conferências, memórias, sonhos, segredos e desejos passam pelo olhar de poeta, leitora voraz e amante incondicional da cafeína. Cada página do livro pede uma xícara generosa de café e dá uma vontade incontrolável de viajar por Nova York, Tóquio, Guiana Francesa, Tanger e Rockaway Beach só para poder desfrutar de algumas das andanças e polaroides da autora.


Tal qual um trem a seguir viagem, o pensamento errante e poético de Patti Smith transita por leituras e tributos a musas e mestres literários como Jean Genet, Harumi Murakami, Albert Camus, Sylvia Plath e Ozamu Dazai. Os textos fazem com que o livro não resultasse em um mero diário de viagens: eles são um retrato fiel da Patti à beira dos 70 anos de idade, solitária e experiente nas lições e armadilhas que a vida lhe pregou – as perdas de Fred e Todd Smith, irmão da autora, em menos de dois meses, foram devastadoras para a intérprete original de “Because the Night”.



Ao concluir a leitura de Linha M, tive a impressão de ter me despedido de uma queridíssima companheira de viagem: juntos fomos à Casa Azul onde viveu Frida Kahlo, saboreamos a adorável solidão do Café ‘Ino, sentimos as forças implacáveis da natureza representadas pelo furacão Sandy (que passou por Nova York no outono de 2012), passeamos por Tóquio e Tanger, nos encantamos pelos livros perdidos, pelas polaroides extraviadas em meio às andanças de Patti. Viagens ao pensamento. Sonhos compartilhados. Os desejos de uma artista.



Por isto e tudo o mais, recomendo a todos uma leitura de Linha M. Busque a companhia de uma generosa xícara de café e adentre o universo de Patti Smith ao som das 9 sinfonias de Beethoven (como eu fiz durante a reta final de minha leitura). O trem de Patti pode te levar até suas lembranças mais íntimas, ao amor de um casaco perdido, ao réquiem de uma cafeteria que era o recanto de sua criatividade e a outros lugares que só a criatividade de um livro bem escrito consegue te levar. Pegue o seu ingresso e faça uma boa viagem, sem deixar de observar o vão que separa o vagão da plataforma...