16 de maio de 2016

TROVA # 71

A LIÇÃO DO PROFESSOR
(ou o que aprendemos com Cauby Peixoto)

Cauby Peixoto (1931-2016)

Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim
E me tranquei no camarim
Tomei o calmante, o excitante
E um bocado de gim

Amaldiçoei
O dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei
Me pintei, me pintei

Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão
Te vi pelo salão
A caçoar de mim

Não me troquei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar

Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim
Só sei que todo o cabaré
Me aplaudiu de pé
Quando cheguei ao fim

Mas não bisei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar

Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis Bêbados e febris
A se rasgar por mim

Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim...

(Chico Buarque de Hollanda
na voz imortal e inconfundível de Cauby Peixoto)


Segunda-feira, 16 de maio de 2016. Fui acordado através de um sobressalto em um dia chuvoso e de nuvens negras. Fui avisado que Cauby Peixoto já não estava mais entre nós, os mortais. Uma tristeza instantânea toma conta de mim. Mais uma semana começava. A diferença é que, desta vez, não teremos mais o canto indefectível do Professor para nos ensinar o que é cantar com intensidade, elegância e vontade. Isso vai ser duro, muito duro.

A eterna classe do Professor 

Assisti Cauby Peixoto cantar ao vivo duas vezes. Dois eventos inesquecíveis para mim, apaixonado por música que sempre fui. Vi ele fazer a fina flor do repertório de Frank Sinatra no SESC Belenzinho em 25/01/2011, aniversário de São Paulo. Detalhe: no original e com um inglês PER-FEI-TO! Vestido em um terno de strass azul e preto é acompanhado por uma banda mais do que classuda, eu me perguntei o porquê de ter implicado tanto com a voz que me dava calafrios na adolescência, com aqueles vibratos e aquele "dó de peito" vigoroso. 

Cauby em 1989 - Acervo: Estadão 

Cauby me ensinou que a elegância é o pré-requisito principal para que você pise os seus dois pés em um palco e cante para uma multidão. Não me refiro apenas ao vestuário, mas principalmente ao respeito com o qual o Professor sempre ofertou aos seus músicos e, especialmente, ao público. A vida podia ser muito mais bonita através do colorido dos refletores e Mr. Peixoto fazia questão de extravasar sua alegria de estar ali. Não pela fama, não pelo dinheiro, não pelo ego, mas principalmente pelo prazer de exercer o seu com mais precioso: o de cantar.

FOTO: Marco Aurélio Olímpio 


Na única vez em que me aventurei em cantar para um grupo de pessoas - em junho de 2014 -, tive a coragem absurda em cantar uma das canções mais importantes do repertório de Cauby Peixoto. "Bastidores" foi escrita por Chico Buarque para sua irmã Cristina a cantasse. Apesar dela ter gravado o presente do irmão notável, foi através de Cauby que os versos de Chico se eternizaram. A versão do Professor se tornou uma das cinco gravações mais importantes não apenas de sua carreira, como da história da música brasileira. Este é o dom de um artista extraordinário: fazer com que a obra se torne uma marca-registrada tão autêntica, ao ponto de acreditarmos piamente que Mestre Buarque compôs uma de suas obras-primas sob medida para o intérprete de "Conceição".

Os mínimos detalhes da elegância de Cauby 

Resolvi ler a biografia de Cauby escrita pelo Rodrigo Faour e que estava encostada em uma das estantes aqui de casa há anos. Fiquei impressionado com a história monumental de uma das vozes mais importantes de nossa música. Conheceu a glória e o ostracismo. Apesar do luxo e do glamour, veio de berço humilde. Cantava em várias línguas diferentes. Seu repertório ia do bolero e baladas dramáticas a rocks, serestas e jazz. Não tinha preconceito em relação a repertório - sua única condição era de que a música fosse de boa qualidade. Gravou projetos especiais dedicados ao legado de Nat King Cole, de Roberto & Erasmo, da Bossa Nova, de Baden Powell, dos Beatles e de Frank Sinatra. 

Fafá & Cauby 

Estive na primeira fila do saudoso Teatro FECAP em 09 de abril de 2011 para assistir um show comemorativo de 60 anos de carreira de Cauby Peixoto. Não era preciso nem dizer que estava me sentindo um verdadeiro "pinto no lixo" em poder ver o Professor exercendo sua arte tão de perto. A cada salva de palmas que o público lhe ofertava, Cauby olhava para Ronaldo Rayol - violonista diretor musical de seu show - com um olhar de menino alegre e feliz por ter feito um gol de placa e dizia frases do tipo: "Que lindo, Ronaldo! Eles gostaram, viu só?". Aplausos não faltaram para o Mestre, que foram retribuídos com beijos, palmas e sorrisos do astro para cada um dos presentes na plateia.

Fafá & Cauby
Elis & Cauby
Ângela & Cauby

Cauby Peixoto fez inúmeros amigos e parcerias de trabalho: cantou com nomes dos mais diversos do porte de Leny Eversong, Roberto Carlos, Alcione, Emílio Santiago, Elis Regina, Ney Matogrosso, Zizi Possi, Agnaldo Rayol, Vânia Bastos, Chico Buarque, Lucinha Lins, Paulinho da Viola, Daniela Mercury, Agnaldo Timóteo, Gal Costa, Supla, Fafá de Belém, Caetano Veloso, além de ter feito vários shows e três discos belíssimos com sua grande parceira de disco e palco, Ângela Maria. Gravou 48 álbuns e deixou um disco inédito em mais de sessenta anos de música brasileira. Na última década de atividade musical, Cauby estava em uma produtividade inacreditável: lançou um 10 CDs, 2 DVDs, vivia em turnês pelo país e se apresentava religiosamente toda segunda-feira no Bar Brahma.




A esquina mais charmosa de São Paulo perde o seu brilho com a ida de Cauby para o reino das estrelas celestes. A Gardênia está azul de tristeza. Conceição não poderá mais viver pelo fatídico morro a sonhar. Meu arrependimento em voltar correndo para o seu lar - o lendário Bar Brahma - e não mais encontrá-lo vestido com brilhos e belamente pintado e vestido é do tamanho da grandiosidade do seu canto. No entanto, o Professor cumpriu sua missão: sua voz e sua elegância não estarão mais diante de nossos olhos, mas diante do coração de cada um de quem bateu palmas para um dos maiores artistas do mundo.



Salve, Professor! Faremos o possível para que novas gerações aprendam com o seu legado insubstituível. Que o seu corpo descanse em paz e o seu canto ecoe para onde você for...


15 de maio de 2016

TROVA # 70

A ANORMALIDADE NECESSÁRIA DE MARIA ALCINA


De normal batam os outros
É preciso ter coragem
Venha a nós o vosso reino
Quem não pode se sacode
Eu aceito só metade
E a família como vai?
(Arnaldo Antunes – “De Normal”, canção que deu o nome para o álbum De Normal Bastam os Outros, lançado por Maria Alcina no final de 2013)


Ainda me emociono bastante quando vejo determinados artistas do mundo da música que conseguem realizar seu ofício com extrema paixão. O público deixa de ser uma simples horda de pessoas que pagaram por um ingresso que lhe garante uma hora e meia ou duas de simples entretenimento. O palco deixa de ser um mero local de trabalho para se transformar em um santuário musical que reflete nossos desejos e sensações mais genuínas. Todos os presentes se tornam cúmplices de uma estrela que deseja fazer daquela noite um evento memorável. A isto damos o nome de arte.

Maria Alcina no SESC Belenzinho - SP,  18/02/2016
Foto: Nilton Serra

Maria Alcina é uma tradução e tanto para o que foi descrito acima. Tive a oportunidade singular de presenciar seu retorno definitivo ao mainstream com o CD e DVD De Normal Bastam os Outros, lançados entre 2013 e 2015. Quem pensa que os seus shows são um mero desfile de irreverência, confete e serpentina está plenamente enganado. Por trás de toda a purpurina e maquiagem pesada, há uma cantora de voz potente é poderosíssima, dona de um timbre vocal único e que consegue imprimir tratamentos distintos a canções da dupla João Bosco / Aldir Blanc como o antológico samba “Kid Cavaquinho” e o chocante blues “O Chefão”. Seu estilo inconfundível, nem um pouco sintonizado com os arroubos das Divas da MPB, é o diferencial de Alcina em um país de cantoras tão talentosas e bem-dotadas de talento.


De acordo com o produtor musical Thiago Marques Luiz, Maria Alcina é uma “artista singular que o Brasil entende e desentende, lembra d esquece, mas jamais deixa de aplaudir”. Descaradamente influenciada por Carmen Miranda, sua música faz uma conexão do presente com o passado, sem nenhuma presença de nostalgia. Sua arte é pautada em viés carnavalizante, cuja marca registrada é a sua voz bem-humorada e a sua personalidade esfuziante que tem cativado os brasileiros desde a sua consagração com “Fio Maravilha”, do Festival Internacional da Canção de 1972, ou de álbuns mais recentes como Confete & Serpentina (2009).




O que mais me impressionou a respeito da presença de palco de Maria Alcina foi justamente a sua brejeira simplicidade – típico de qualquer bela mineira de Cataguases – perante os músicos que a acompanhavam em cena, em relação ao público e até com as funcionárias da comedoria do SESC Belenzinho (o local do show), que ela fez questão de convidar ao palco para dançar junto dela ao som de “Prenda o Tadeu”, para delírio de todos os presentes. Além disso, o repertório do CD e DVD De Normal Bastam os Outros – composto por nomes de peso como Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, Karina Buhr e Anastácia – consegue dialogar com canções já clássicas do repertório de Alcina como “Fio Maravilha”, “Doida, Bonita e Gostosa” e “Bacurinha”. Não se trata apenas de uma grande cantora comemorando 40 anos de carreira musical, e sim o retorno de uma grande artista ao spotlight depois de algum tempo longe de seu público.



Karina Buhr & Maria Alcina no Theatro Net Rio - RJ, 10/06/2014
Foto: Mauro Ferreira

Injustiçada pela censura e pelo ostracismo das décadas de 1980 e 1990, Maria Alcina conseguiu se manter viva enquanto artista graças aos programas de auditório e de sua vontade incessante de querer cantar onde houvesse trabalho. Graças à Internet, às redes sociais (a cantora de “Kid Cavaquinho” pode ser facilmente encontrada no Facebook e no Instagram), à memória musical coletiva de seus fãs e dos esforços hercúleos do produtor musical Thiago Marques Luiz, o devido reconhecido foi concedido a um dos nomes mais inquietos da música brasileira.




Alcina é uma cantora que olha para a frente sem deixar de reverenciar o que foi produzido de melhor no passado. Resgatar o repertório de Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola em tempos nos quais muitos pouco conhecem o básico do cancioneiro popular brasileiro é mais do que um ato de reverência: é um serviço de utilidade pública! Em uma era na qual o “politicamente correto” e a “falsa inocência” na música brasileira, a anormalidade do canto de Maria Alcina é fundamental para o Brasil de hoje.



Nós dois ao lado de Maria Alcina após seu show no SESC Belenzinho - SP,  18/02/2016

13 de maio de 2016

TROVA # 69


"PERDOAI-OS, PAI: ELES SÓ SABEM O QUE FAZEM"... 
COM 54 MILHÕES DE VOTOS




para Angela Rô Rô e Dilma Rousseff, duas mulheres brasileiras injustiçadas pela lei dos homens do Brasil


"Perdoai-os Pai, eles só sabem o que fazem
Perdoai-os Pai, eles só sabem o que fazem
Perdoai-os Pai, eles só sabem o que fazem
Perdoai-os Pai, eles só sabem o que fazem

Eu quero uma cruz de pinho selvagem
Alguma bebida pra me dar coragem
Meu sangue ser água, matar minha sede

Que todos recusem carinho pra mim
Mas nunca se esqueçam, eu nunca padeço
Mas nunca se esqueçam de mim
Mas nunca se esqueçam de mim"

(Angela Rô Rô & Sérgio Bandeyra – 
"Perdoai-os, Pai", faixa que abre o álbum Escândalo!, lançado por Rô Rô em 1981)




Até a manhã de 12 de maio de 2016, dia em que o Brasil foi duramente atingido por um golpe democrático e saiu do Estado Democrático de Direito para o Estado de Direito Mínimo, os defensores da Direita defendiam o fato de que tudo de ruim que acontecia neste país era culpa da Presidente Dilma e do Partido dos Trabalhadores.

A partir da consagração do golpe de Estado, a justificativa para o ataque dos simpatizantes é a de que os 54 milhões de votos concedidos à Dilma legitimaram Michel Temer como o atual Presidente da República. 

Diante disso, cabe esclarecer alguns fatos:

1) Os 54 milhões de votos foram para o programa de governo defendido por Dilma Rousseff, não pelo seu então Vice-Presidente;

2) Os 54 milhões de votos foram dados para quem se expôs publicamente diante de debates, horário eleitoral obrigatório, de adversários políticos despreparados e desequilibrados, sob a chancela e o apoio de uma mídia partidária, pertencente a oligarquias interesseiras, que não se isenta da realidade dos fatos e acontecimentos;

3) Os 54 milhões de votos foram dados para quem se comprometeu na execução de programas sociais que amenizassem a desigualdade social que sempre assolou este país;

4) Os 54 milhões de votos foram dados à primeira mulher que fora designada ao cargo político mais importante da nação, dona de uma reputação moral irrepreensível, avessa a conchavos políticos típicos de integrantes do seu partido ou de integrantes da base aliada; 

5) Os 54 milhões de votos foram dados a uma chapa política composta por uma Presidente e um Vice-Presidente que deveriam ter trabalhado juntos pelos interesses comuns da sociedade brasileira, não para que ele conspirasse contra à sua companheira de governo;

6) Os 54 milhões de votos NÃO foram dados a alguém que tem em um político arrogante, desonesto e asqueroso como Eduardo Cunha como homem de confiança. Esperava-se do Vice-Presidente que realizasse a articulação política do governo com a oposição de forma limpa e honesta;

7) Os 54 milhões de votos NÃO foram dados a alguém que pertence a uma tradição política neoliberal, que exclui os pobres do chamado "progresso da nação". Dilma foi a eleita com a promessa de que iria fazer um governo para todos - não conseguiu, por ter cometido erros graves e por ter sido vítima de um golpe de estado -, algo que nunca foi prioridade para o PMDB;

8) Os 54 milhões de votos NÃO foram dados a um estadista que desrespeita a Educação, a Cultura, as minorias (mulheres, negros, LGBTs...), as empresas estatais e a segurança pública descaradamente ao nomear o seu Ministério;

9) Os 54 milhões de votos NÃO foram dados a um estadista que concede foro privilegiado a SETE investigado pela Operação Lava-Jato. Todos os petistas que foram réus em processos de corrupção foram julgados e implacavelmente condenados, ao contrário dos aliados tucanos, do DEM e de outros partidos da antiga oposição;


10) Os 54 milhões de votos NÃO foram dados a quem foi declarado "ficha-suja" e inelegível por oito anos, segundo o TSE. Tal qual foi muitíssimo bem dito pelas redes sociais, se quiséssemos um bandido na cadeira presidencial, estes votos seriam dados ao Sr. Aécio Neves, não para a Sra. Dilma Rousseff.



Vinícius Rangel Bertho da Silva
Professor, pesquisador e autor do livro "O Doce & O Amargo do Secos & Molhados: poesia, performance e política na música brasileira" (Ed. Terceira Margem, 2015).