17 de novembro de 2015

TROVA # 58

O CÉU DOS MEUS SONS
(algumas palavrinhas sobre nossas experiências musicais: do LP ao streaming)



Para Márcia Rodrigues de Souza,
uma leitora devota e apaixonada da Arte da Crônica 
Para Neil Young,
com todo o meu carinho, pelos seus 70 anos de vida

"O caminho do céu 
No caminho do som 
O caminho do céu é 
No caminho do som 
O caminho do céu 
No caminho do som
O caminho do céu é 
No caminho do som 

(Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor) 
Voar, voar 
(Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor) 
Há uma alma na asa no ar 
(Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor) 
Cantar, cantar 
(Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor) 
Há uma asa na alma no ar 
(Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor) 

(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
 Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor 
Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor 
Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor 

O caminho do céu 
No caminho do som 
O caminho do céu é 
No caminho do som 

(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
Voar, voar 
Há uma alma na asa no ar 
Cantar, cantar 
Há uma asa na alma no ar
Me ensina a cantar, amor

O caminho do céu, o caminho do céu 
No caminho do som, no caminho do som 
O caminho do céu é 
No caminho do som"
(Péricles Cavalcanti - "O Céu & O Som" - 
canção gravada por Gal Costa em seu álbum Cantar, de 1974)


É muito comum dizer que nossas memórias são musicais. Posso precisar cada momento da minha vida com o disco que eu ouvia na época, relacionar com o aparelho de som que estava disponível para os meus ouvidos naquele tempo e por aí vai. Minha relação com versos e sons sempre foi intensificada pelas mais diversas formas de acesso à música: comecei a amar a música loucamente através de uma velha fita cassete gravada da saudosa Rádio Cidade do Rio de Janeiro que reproduzia os acordes de "Sweet Child O'Mine"; passei rapidamente pelo final da era dos Long Plays na década de 1990 quando ganhei um de presente de aniversário aos 12 anos de idade; enlouqueci de vez aos 13 quando um CD de Rod Stewart virou minha cabeça de tal jeito e me fez o colecionador insano de discos no qual me transformei.


Li um texto de Zélia Duncan certa feita no qual ela descreve suas paixões musicais e ela comentou sobre a importância dos encartes dos vinis e dos CDs para um ouvinte atento de música popular. Como bom curioso que sempre fui, eu sempre me interessei em saber quem eram os autores das canções, os músicos e produtores por trás dos clássicos, os responsáveis por trás dos astros e das estrelas da canção. Além de tudo, não podemos deixar de lado a importância do aspecto visual marcante da capa de um LP: como ignorar Simone seminua vestindo apenas um jeans azul em cima de uma cama com lençóis de cetim branco? Como esquecer do rosto angelical (e um tanto perturbador) de Barry Manilow em roupas brancas com aquele colar de pianista em ouro 24k no quarto de meu finado Tio Jorginho no antigo apartamento dos meus avós em Laranjeiras? Como não nos lembrarmos da garçonete com cara de louca servindo o café da manhã do Supertramp na capa e na contracapa de Breakfast in America? Ou como deixar passar por nossos olhos a imagem sensualíssima de Ney Matogrosso quase nu nadando pelas águas do pantanal mato-grossense? E o que podemos dizer da capa impactante do primeiro disco do Secos & Molhados, que chega a ser praticamente surrealista? Ah, e não podemos nos esquecer de Gal e a sua tanga lendária em Índia ou de Bethânia e o seu antológico arco de conchinhas que coroava a sua cabeça na imagem que ilustra a capa de Pássaro Proibido... 

Ouvir música tornou-se um ritual sagrado para mim: o ato de permitir que os versos e sons de uma fita K7, um LP ou CD adentrassem o ambiente sem pedir licença tal qual a Irene do Manuel Bandeira sempre foi natural para mim. De preferência com um volume bem alto, para que eu pudesse escutar tudo enquanto estivesse fazendo outra coisa - estudando, lavando a louça, fazendo a barba, tomando banho, trabalhando em casa ou qualquer atividade profissional corriqueira. A casa de meu avô Adhemar na Ilha do Governador era um sonho para qualquer amante da boa música e confesso que foi lá onde praticamente aprendi a cultivar este ato. Lá havia um quarto de música onde poderíamos encontrar desde os discos de orquestra de Tommy Dorsey ou clássicos de Al Jolson e Willie Nelson até os discos de MPB e música romântica de minha avó Magaly - leia-se: da fina flor da MPB de Chico Buarque à breguice suprema do romantismo de Julio Iglesias! Como a casa era grande, eles viviam sozinhos e sempre havia os infinitos afazeres do dia-a-dia, era possível escutar o que eles estavam ouvindo da garagem de casa, o que eu achava ótimo, pois era um ambiente oposto à claustrofobia de dois quartos, sala, cozinha e banheiro onde eu vivi por anos e anos... Foi daquela casa que veio a minha primeira lição musical: se você realmente quer ouvir música, não pode ser feito em um volume baixo!


Para que a experiência musical ocorra de uma forma bacana, é preciso ter uma aparelhagem de som potente e que faça com que os acordes possam se propagar pelos cantos da casa como pássaros recém-libertos de gaiolas. Lembro de duas anedotas do universo da música encantadoras e impossíveis de serem ignoradas por aqui: a primeira é do Sr. Antônio Matogrosso Pereira, um militar de altíssima patente da Aeronáutica e pai de Ney Matogrosso, um dos artistas mais controversos e revolucionários da música brasileira. Quando Ney lançou seu primeiro disco e show solo (Água do Céu-Pássaro / Homem de Neanderthal), o fascínio do Sr. Matogrosso pela arte do filho famoso era tamanho que ele não admitia que ninguém ouvisse o LP em volume baixo para que ele se remetesse ao som ensurdecedor que ele tinha ouvido no teatro. 


A outra anedota é de Barbra Streisand, notoriamente conhecida pelo fato de não ouvir música em casa ou em praticamente lugar nenhum a não ser o estúdio de gravação. No início da década de 1970, Babs deixava de ser uma cantora com um repertório baseado exclusivamente em um repertório de musicais graças aos esforços do lendário produtor Richard Perry, que produziu um de seus melhores títulos de toda a sua discografia – Stoney End (1971). Para que houvesse tamanha modernização do som de Streisand, a Diva precisava nada mais, nada menos do que uma aparelhagem de som que tocasse os discos mais influentes da época. Em uma noite remota, Perry recebe uma ligação de Barbra pedindo que ele a ajudasse com a fiação do som estéreo desconectado e que a musa simplesmente não saberia o que fazer... Músicos que apreciam o prazer de ouvir música ainda são de uma enorme diferença no meio musical...


A experiência musical de qualidade pode ser qualquer coisa, menos barata. É cara, requer investimento em LPs, em CDs, em edições especiais dos artistas que a gente mais gosta e admira. Além disto, precisamos daquelas estantes de madeiras elegantes e suntuosas que tenham a capacidade de armazenar os nossos tesouros musicais mais valiosos - sonhar não custa nada, não é verdade? Não existe nada no mundo que me deixa com mais inveja do que alguém que tira uma foto na frente de um belo móvel com coleções e mais coleções de LPs e CDs devidamente enfileirados de acordo com o afeto musical do colecionador. Porém, quando pensamos nas vicissitudes que regem o cotidiano, chegamos à infeliz e nada romântica conclusão de que existe um problema crônico de espaço físico para o colecionador de música: como muitos de nós não somos ricos no sentido de pertencer às elites econômicas do Brasil, sempre estamos às voltas com o dilema do armazenamento. Eu, por exemplo, por ter um horror absoluto de perder meus CDs, cheguei à obsessiva tarefa de fazer backups dos arquivos em MP3 assim que eu comprava o disco na loja e chegava em casa.

VINIL em frente ao aparelho de som da família, em 1991.

Um fato que ainda me surpreende em 2015 é justamente este revival da audição de Long Plays, algo que eu pensei que jamais acontecesse depois do surgimento do Compact Disc, do Napster e do MP3 e dos recentes serviços de streaming! Ironicamente, nunca se ouviram tantos vinis como na primeira década de 2010: pesquisas feitas no primeiro semestre de 2015 apontam que os norte-americanos consumiram mais LPs do que assistiram vídeos no YouTube ou no Vevo, por exemplo. Vitrolas portáteis, antes objetos de máxima expressão do que se entende por vintage, hoje são vendidas por pouco mais de 200 ou 300 reais. Já não podemos dizer a mesma coisa a respeito do preço dos LPs novinhos em folha: alguns chegam a custar cinco vezes mais do que um CD em período de lançamento, o que me deixa à margem de toda essa festança retrô que habita as casas de amigos, conhecidos e desafetos que cultivamos por aí. 120 reais em uma edição de Amy Winehouse em vinil? 100 reais por um LP do Secos & Molhados que eu já tenho em casa?! Não, obrigado! / No, thanks!


Uma das novidades mais interessantes que surgiram na relação entre o público consumidor de música e a arte que ainda se cultiva através de versos e sons, na minha modestíssima opinião, está nos serviços de streaming. Pagar por um serviço pelo qual você pode ter acesso a uma infinidade de títulos (além de raridades!) por um preço relativamente razoável é algo bastante prático e confortável para o pagante. É evidente que ouvir música pelo tablet ou pelo celular não é tão prazeroso quanto estar com o seu aparelho de som ligado; no entanto, a praticidade de podermos escutar o que quisermos a partir do simples toque do dedo na tela do smartphone vale qualquer desvantagem. Além disto, não é mais preciso sair fazendo upload de arquivos de musicas no seu celular de forma insana (além de ser chato, o iTunes oferece tudo, menos praticidade!), não há mais a necessidade de carregarmos uma penca de discos para o carro (a não ser se você tem bebês de colo que só ouvem discos bem específicos e raros) e tem o fator segurança em primeiro lugar: certa feita, levaram vários de nossos CDs mais queridos na triste ocasião de um furto ocorrido dentro do carro de minha mãe, na qual levaram tudo de valor que havia dentro do veículo.


Um dos fatores negativos que o streaming apresenta, na minha concepção, é a falta de vontade do ouvinte de ser um pesquisador nato de música ou, como diríamos vulgarmente, um "rato de livrarias, sebos e (das ainda sobreviventes) lojas de discos". Na medida em que os álbuns se encontram livremente dispostos em cada telefone celular, um pesquisador de música em potencial deixa de surgir no pedaço. Por outro lado, é um serviço muitíssimo mais econômico: onde eu encontraria a versão Deluxe de All Things Must Pass, primeiro (e monumental) álbum do ex-Beatle George Harrison, por menos de 50 reais? E a gravação antológica de "The In Crowd", do Ramsey Lewis Trio, que tocava incessantemente durante o Irrational Man, de Woody Allen? Ou um álbum raríssimo como o belo disco ao vivo que Aretha Franklin gravou em Paris em 1968 sem ter que revirar as lojas virtuais de cabeça para baixo? Ou então a discografia praticamente completa de Nina Simone, que custaria os olhos da cara em qualquer loja decente do ramo?!


Evidentemente, existem pessoas que não veem o streaming como algo realmente benéfico para a sociedade. O U2, por exemplo, alega que vários desses serviços não pagam direitos autorais adequadamente para os músicos. Neil Young, um eterno purista em termos de qualidade de som, proibiu a fina flor de seu catálogo de estar disponível no Spotify, na Apple Music e na Deezer e outros sem antes decretar com um pingo de dó: "streaming has ended for me". Depois do anúncio de Neil, tratei de sair correndo para o celular e redescobrir algumas pérolas daquele baú de pepitas que ele nos deu. Fui (re)ouvir Tonight's The Night e fiquei tão apaixonado por aquele disco que resolvi escrever sobre ele...



A boa música que vem do fone de ouvido, seja do celular, seja das caixas de som sempre tem algo a nos dizer. Ela pode nos levar para um paraíso repleto de versos e sons e nos fazer esquecer da mediocridade infeliz, tacanha e arrasadora que assola o cotidiano de cada um. O século XXI e as suas mais altas tecnologias nos renderam opções que nos permitem exercer a liberdade de ouvirmos o que quisermos sem termos que pensar ou pesquisar muito, o que, nestes tempos de modernidade líquida (pegando emprestado um termo de Zygmunt Bauman), não deixa de ser algo completamente ruim...

Leia mais sobre Tonight's the Night, de Neil Young, no Pequenos Clássicos Perdidos: