3 de julho de 2015

TROVA # 51

A INIMIGA DE MORFEU


Três da madrugada
Quase nada
A cidade abandonada
E essa rua que não tem mais fim
Três da madrugada
Tudo e nada
A cidade abandonada
E essa rua não tem mais nada de mim
Nada
Noite, alta madrugada
Essa cidade que me guarda
Que me mata de saudade
É sempre assim

Triste madrugada
Tudo e nada
A mão fria, a mão gelada
Toca bem de leve em mim
Saiba
Meu pobre coração não vale nada
Pelas três da madrugada
Toda a palavra calada
Dessa rua da cidade
Que não tem mais fim
Que não tem mais fim
Que não tem mais fim
(“Três da Madrugada” –
Torquato Neto & Carlos Pinto, 1973
 na voz de bálsamo de Gal Costa)


         Traiçoeira e muito vulgar, ela tem me atacado de maneira tão vil e infame que me deixa simplesmente sem resistências. Sem fôlego, com uma ansiedade do tamanho do universo. Ou das minhas angustias. Ou das minhas loucuras e devaneios sem fim. Minha relação com ela está maravilhosamente descrita por Vanessa da Mata em uma das canções de seu antológico disco Sim (2007): “Você vai me destruir / Como uma faca cortando as etapas / Furando ao redor / Me indignando, me enchendo de tédio / Roubando o meu ar / Me deixa só e depois não consegue / Não me satisfaz”. Porém, não penso em matar friamente a minha companheira noturna de amor ou de dor, tal qual quis Vanessa e o seu amado/odiado lá dos seus versos, apenas quero me ver livre dela das maneiras mais variadas e improváveis...


         Perguntinha que não deve calar: quem é a cidadã que resolvi "homenagear" neste texto de hoje? É a maldita INSÔNIA, apelidada por mim de “A Inimiga de Morfeu”, que tem me roubado as minhas últimas noites de sono como uma faca que corta etapas, como um larápio que atira a minha a tranquilidade e calma aos leões sem um pingo de piedade. Ao invés de ficar lamentando e ficar virando de um lado para o outro ou tentar estabelecer com outro insone solitário e/ou tão ansioso (será que isso existe?) quanto eu, prefiro dialogar com a folha em branco mesmo e dar espaço para que as reticências tomem conta...


         Houve um tempo no qual eu vivi a intensidade e a loucura da vida regada à boemia. Era um jovem de 20 e poucos anos que descobria as belezas e os prazeres de uma das cidades mais belas do mundo – no caso, o Rio de Janeiro! – e achava que o doce sabor da juventude rimava com o tesão vampiresco de virar noites a fio. Tempos depois, já vivendo os meus primeiros anos em São Paulo e ainda estudante de pós-graduação, precisava emendar noite e dia recorrentemente para conseguir entregar uma Dissertação de Mestrado dentro de um prazo que já estava duplamente estourado. Não me arrependo destas escolhas, pois elas me fizeram quem eu sou hoje. No entanto, estes anos refletiram diretamente na minha aparência e, principalmente, na aceleração da minha ansiedade e no declínio do meu metabolismo.


         Depois dos 30 anos de idade, as preocupações e as inseguranças mudam de foco para todos nós. Comigo não foi diferente: tornei-me extremamente inseguro em relação a algumas coisas, cético no que diz respeito a outras e bem menos tímido no que concerne a várias. A ansiedade, irmã gêmea da insônia, é quem sempre convida a inimiga de Morfeu para vir brincar em meu quarto e fazer festa com o sono alheio a partir de minhas incertezas profissionais, pessoais e por aí vai.... Quando estamos no primeiro estágio da juventude, acreditamos piamente na vã possibilidade de que o tempo é infinito; quando chegamos na década seguinte, vimos que o tempo é mais restrito; creio que aos 40 e 50 anos de idade, a percepção deve ser ainda diferente – para melhor, ou para pior.


         Vivo aos 30 e poucos anos de idade algumas frustrações, algum relativo sucesso, no âmbito profissional, indiscutível conforto conquistado a duras penas e através do auxílio da... inimiga de Morfeu! Como nunca fui uma pessoa diurna e sempre precisei do silêncio e da solidão de uma casa silenciosa e que dorme para colocar os pensamentos em prática, acabei me acostumando com a quietude quase desesperadora das três da madrugada. No entanto, tal quais os versos do Torquato Neto que Gal Costa cantou tão belamente, aviso que a calmaria das madrugadas é como uma mão fria que encosta em nosso ombro a qualquer momento para dizer alguma coisa relevante sobre você mesmo. Explico: acho que as melhores ideias que tive na vida (excluindo este texto!) surgiram entre seis da tarde e cinco da manhã.



         Em meio às contradições, devo à Senhorita Insônia, eterna Inimiga de Morfeu o meu sucesso nas parcas ideias que possuo e o fracasso na possibilidade de conseguir oito horas de sono contínuo e decente. Depois de escrever este texto e de ouvir a belíssima gravação de Gal Costa para “Três da Madrugada” no repeat a thousand times, vou tentar dormir ou arrumar os livros ou fazer a barba ou jogar um joguinho no iPad (quem me conhece, sabe que sou completamente viciado em jogos de corrida de carro). Meu coração e meu sono talvez não possam valer nada para a noite e para as altas madrugadas, mas a minha mente e os meus pensamentos cavalgam como devaneios de um caminhante que se quer solitário pelas páginas da Internet. Assim, deixo o meu grito calado registrado em uma página de papel: vai que ele encontra algum eco e me leva para os braços do cara certo...