E chegamos a mais um final de ano. 2015 foi, sem a menor sombra de dúvida, o nosso ano mais produtivo: o blogTrovas de Vinil teve um total de mais de 13 mil visualizações a partir de 63 crônicas musicais, sendo que 20 destes textos foram inéditos.
Isto se deve a algo que vai além de uma mera realização pessoal, mas a uma vontade de tornar este espaço algo cada vez mais interessante para quem o lê. E é por isso que eu gostaria de agradecer a cada um de vocês que visualizaram, leram, comentaram e compartilharam estes escritos por aí.
Além disto, 2015 foi um ano crucial para minha história: finalmente consegui lançar meu primeiro livro! O Doce & O Amargo do Secos & Molhados é mais do que um mero produto de 15 anos de pesquisas dedicadas à música popular, ele é a realização de um sonho antigo de suma importância para mim!
Que em 2016 a música continue nos unindo e mantendo a vontade que existe em cada um de fazer um mundo melhor. Que no próximo possamos continuar falando sobre todos os tipos de música de qualidade e que nos tocam profundamente. Desejo do fundo do meu coração que os próximos 365 dias não passem tão rápido como os de 2015, tal qual nos aludem os versos inteligentíssimos de Rita Lee:
"Desde que me entendo por gente
Elza Soares da vida
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida
Eu disse
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida
Desde
que me entendo por gente
Eu sambo, eu faço o que gosto
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco
Eu disse
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco
Desde
que me entendo por gente
Difíceis momentos tristes
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste
Eu disse
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste."
("Elza Soares" -Itamar
Assumpção- Canção que o Nego Dito escreveu para a musa de
Garrincha e que é a última faixa dePretobrás
II: Maldito Vírgula[2010]).
Elza Soares é uma daquelas atrações musicais brasileiras que já deveriam
ser classificadas como verdadeiras instituições. Daquelas que deveriam ser
tombadas pelo patrimônio histórico da humanidade. Por sua história, por seu
tempo de atividade, além de seu talento. São mais de 50 anos de música, 78 anos
confessos de idade, 85 de acordo com alguns jornalistas e 350 anos segundo as
minhas prerrogativas - porque se a gente envelhecesse a cada golpe fatal que a
vida nos oferece, Elzinha teria uma lista infinita de dores e amores para nos
ofertar...
Minha primeira memória da musa mais célebre de Garrincha data dos meus
primeiros anos da Faculdade de Letras, quando eu era um jovem encantado com a
MPB de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Ouvi a gravação antológica
de "Língua", de Caetano, e fiquei embasbacado com aquela voz rouca, que
perguntava o que nossa língua portuguesa queria e podia fazer por nós. A cada
ganido, grito rouco e pinote dela eu tinha a plena certeza de que Elza Soares
devia ter vindo de outro planeta. O da fome, como ela disse pra Ary Barroso, lá
no início de sua carreira: "- De que
planeta você está vindo, minha filha?! - indagou Ary [Barroso], assustado.
- Do planeta fome!
Como que entendendo
o recado, ele parou de rir e anunciou que Elza Soares cantaria
"Lama". De Paulo Marques e Ailce Chaves. O conjunto atacou a introdução
- fá sustenido. Orós encarou a garota e sorriu. Ela respondeu com a mesma
alegria e pôs-se a cantar, botando na voz te a a sua força interior, suas
angústias, sonhos e esperanças. Muitos espectadores puseram-se de pé para
aplaudi-la. Ary se impressionou com seu dinamismo e potencial vocal. Chegou à
segunda pede com redobrado vigor. Decidiu, também, exibir seu lado de atriz, da
menina que pedia esmola nas calçadas da Central chorando para conseguir os
trocados da passagem.
Mais palmas surgiram
de todos os cantos do auditório. Ao final da interpretação, aplausos
entusiasmados e pedidos de bis. Elza foi aclamado como a grande vencedora da
noite e repetiu a canção. Ary abraçou-a e beijou-a. Teria que voltar à emissora
bom-dia seguinte para receber o prêmio."
LOUZEIRO, José. "Elza Soares: Cantando Para Não
Enlouquecer". São Paulo: Ed. Globo, 1997, p.47.
Presenciei pela primeira vez o vigor de Elza Soares em cena lá pelos
idos de 2004 ou 2005 quando fui ver uma apresentação de Vivo Feliz no Teatro
Rival. Antes de surgir em cena, fomos surpreendidos com o palco escurecido, os
músicos paralisados e Elza cantando uma versão lancinante de "O Meu
Guri" (Chico Buarque) à capella. Pouco depois, ela surgia em cena,
deslumbrante em seu vestido curto, sua peruca black power e cantando, ganindo e sambando loucamente em cima de
seu salto plataforma 15. O que foi mais arrebatador foi o momento no qual a
cantora deixou de necessitar do microfone para cantar e deixou o aparato no
chão e cantou para a multidão sem a necessidade de poses ou artifícios. Nada
tinha sido mais digno de coragem para mim até aquele momento...
Alguns anos depois, já devidamente adaptado a São Paulo, soube em meados
de 2007 que Elza iria gravar um DVD ao vivo no SESC Vila Mariana.
Ficamos tão felizes com a possibilidade de assistir a um novo espetáculo que
ainda por cima daria seria eternizado em imagem e som diretamente da primeira fila que mal podíamos
conter a excitação. No entanto, fomos surpreendidos com a infeliz notícia de
que o show e a gravação seriam cancelados devido ao fato de que Elza Soares
teve que ser internada às pressas pra tratar de um problema de coluna grave. O
evento foi remarcado para uma data a qual infelizmente não poderíamos
comparecer. O resultado final foi Beba-Me, um dos espetáculos mais belos de
toda a carreira de uma das cantoras mais importantes da música brasileira. Fiquei muito desapontado de não ter presenciado aquele momento...
As internações recentes deixaram claro que o estado físico de Elza
Soares tinha sido deveras abalado pelas batucadas da vida afora. Sua voz ainda
era a mesma, porém as dores nas costas lhe obrigavam a fazer seus shows
sentada, o que lhe impedia de sambar freneticamente em cima de um salto 15.
Mesmo assim, fomos assistir a uma apresentação da Diva Negra ao lado do
violonista João de Aquino no saudoso Teatro Fecap lá pelos idos de 2010 ou
2011. O cansaço extremo de um professor horista, extenuado em ter que trabalhar
por horas e horas durante a semana inteira e no dia do show (um sábado) não me
permitiu que eu aproveitasse o show do jeito que eu deveria: dormi em alguns
trechos, tomado pela mais absoluta exaustão. Se arrependimento matasse, minhas
cinzas já estariam voando por aí há bastante tempo...
Foi em 2015 que finalmente reencontrei Elza Soares. E este reencontro
foi de uma maneira tão ocasional e tão avassaladora que não posso deixar de
descrever tamanho impacto. No início de outubro de 2015, envolto em milhares de
obrigações profissionais, soube que o show baseado no CD A Mulher do
Fim do Mundo estrearia em São Paulo no mesmo final de semana em que eu
teria que me ausentar da cidade. Ao retornar para Sampa e ver trechos das
apresentações que tinha perdido no YouTube, vi que Elza ainda conseguia
arrebatar plateias inteiras com o simples e atômico impacto de sua voz ao nos
pedir, clamar, implorar para que ela continuasse a cantar.
Ouvi o CD e fiquei impactado com a modernidade, a ousadia e coragem que
emanam daquela mulher de 78 anos. A Mulher do Fim do Mundo fez
com que os mais tradicionalistas torcessem o nariz, mas encantou milhares de
outros e (até onde bem sei...) tem vendido bastante. Elza Soares tem feito
shows em casas lotadas e eu tive a honra indiscutível de vê-la cantar no início
de dezembro de 2015, no Teatro do SESC Pompeia: nunca tinha visto nenhuma
artista ser aplaudida tantas vezes em cena aberta. Ah, um detalhe importante:
de pé! Outro detalhe fundamental: ela consegue manter seu domínio pleno em cena
sentada no topo de um trono, como uma rainha ao cantar e vislumbrar seu próprio
universo em decomposição e desespero.
O que explica o sucesso avassalador deste projeto de Elza Soares?
Primeiramente porque é o retorno de uma das artistas mais revolucionárias da
música brasileira aos palcos e ao disco. Em segundo lugar, A Mulher do
Fim do Mundo é um disco arrojado, urbano, fortíssimo e que atira as
verdades na cara do ouvinte sem um pingo de dó. Terceiro e mais importante de
tudo: Elza não tem o menor pudor em expor seus sentimentos mais intensos em
praça pública, o que nos conecta ao nosso fosso emocional mais profundo. É por
isso e tudo o mais que a aplaudimos sempre que possível. Entusiasticamente. E
de pé!
Ver e ouvir a eterna musa de Garrincha cantando intensamente, lançando
mão de suas químicas quentes e de suas armas brancas em um universo de estrelas
Pop de brilho efêmero e fabricado é
ter a concreta esperança de que ainda existe salvação no meio musical
brasileiro. Em um ano de perdas tão lastimáveis como foi o ano de 2015, ver
Elza Soares cantando por aí é um ganho impressionante. Sem tamanho. Do tamanho
do mundo que encaminhamos para o fim. Do tamanho do amor pelas coisas que ainda
resiste...
LEIA MAIS SOBRE O CD A MULHER DO FIM DO MUNDO,
DE ELZA SOARES, PARA O BLOG PEQUENOS CLÁSSICOS PERDIDOS:
CHICO
BUARQUE ENTRE A TELONA DO CINEMA & A TELA DA TV
(5 motivos para ir ao cinema assistir Chico – Artista Brasileiro e 5 motivos para
esperar este filme sair em DVD)
A música brasileira tem recebido documentários maravilhosos sobre vários
de nossos artistas. Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Tom Jobim, Maria
Bethânia, Ney Matogrosso, Raul Seixas, Jorge Mautner, Luhli & Lucina, Elza
Soares, a Era dos Festivais e a Tropicália foram homenageados com toda a pompa
e circunstância necessária e merecida por cineastas jovens e experientes.
Fiquei bem animado quando soube que Miguel Faria Jr. tinha feito um
documentário sobre Chico Buarque e resolvi ir ao cinema assim que as férias
batessem a minha porta.
Miguel Faria Jr. & Chico Buarque
Documentários não atraem um público muito extenso: geralmente, em menos
de um mês, eles não ocupam mais as salas principais de cinema no Brasil. A
preferência do público por blockbusters como Harry Potter, The Lord of The Rings ou Star
Wars em tempos nos quais MPB não é mais consumida por um grande número de
pessoas é avassaladora. Como consequência, a oferta de cinemas que exibiam o
documentário de Miguel Faria Jr. era bem reduzida em uma cidade grande como São
Paulo (4 cinemas ao todo!) em pleno final de dezembro.
Ingressos comprados, assentos tomados, quase prontos para o início de
mais uma experiência cinematográfica, exceto... a falta de educação de mais da
metade do público da sala de cinema, que foram ao Cine Belas Artes para ver o Pop Star Chico Buarque, não o artista
Chico Buarque, o escritor Chico Buarque, o homem público Chico Buarque. Órfãos
de turnês extensas do cantor e compositor de "A Banda", mais da
metade das pessoas que estavam ali se comportavam como se estivessem em uma
casa de shows: falando alto, comentando o filme como se fosse uma partida de
futebol ou a novela da Rede Globo. Se houvesse um garçom, bebidas seriam
requisitadas em um pronto estalar de dedos e os meus instintos mais
antissociais e psicopatas poderiam aflorar dentro de uma sala do Cine Belas
Artes. Fui contido. Ainda bem.
Estes motivos seriam suficientes para que eu esperasse Chico – Artista Brasileirosair em DVD e eu pudesse assistir cada detalhe na santa tranquilidade do
meu HD e no silêncio do meu quarto. No entanto, resolvi enumerar alguns
motivos, digamos, mais técnicos para justificar minha falta de vontade de
voltar a assistir esta película no cinema:
1) A pobreza de depoimentos da família
de Chico Buarque
Apesar
do documentário focar na trajetória artística de Chico, há um pecado mortal em
não termos nenhuma espécie de testemunho de sua ex-mulher, Marieta Severo, e de
suas filhas e de seus netos. A única presença familiar que concedeu depoimento
para Chico – Artista Brasileirofoi de
Miúcha, sua irmã mais velha.
2) A ausência sentida de vários
parceiros e intérpretes de Chico
Como
Francis Hime, Luiz Cláudio Ramos e Paulo Pontes foram esquecidos / ignorados em
uma ocasião tão simbólica? Nara Leão, Bibi Ferreira e Maria Bethânia - intérpretes
significativas da obra de Chico – mal aparecem no filme; Elis Regina, Gal
Costa, Fafá de Belém, Elza Soares, Simone, Cauby Peixoto, Marisa Monte, Cida
Moreira e outras foram sumariamente ignoradas.
3) A presença desnecessária de
certas interpretações da obra de Chico
Em
primeiro lugar, não consigo conceber o porquê de uma cantora de nacionalidade
portuguesa ter que interpretar a obra de um artista brasileiro com tanta
cantora brasileira de calibre e envergadura dando sopa por aí! A presença de
Carminho em DOIS números do documentário de Miguel Faria Jr. é completamente
desnecessária: as canções de Chico se tornam em dois lamentos lusitanos
sofridos, que nos faz ter saudades de Amália Rodrigues. A escolha de Moyséis
Marques e Péricles para interpretar dois dos sambas mais importantes do
repertório buarqueano - "Mambembe" e "Estação Derradeira" -
ao sabermos que existem sambistas experientes como Zeca Pagodinho e Diogo
Nogueira foi, no meu ver, leviana.
Milton Nascimento ao lado da cantora portuguesa Carminho
4) Os inevitáveis cortes no
documentário
Fiquei
bem triste ao saber que Laila Garin tinha gravado uma versão para "Bastidores", uma das
canções mais belas de Chico. Uma baixa dessas diante de
dois números com Carminho é, no mínimo, de gosto duvidoso...
5) O incentivo à
"Chicolatria"
Chico - Artista Brasileiro, apesar de possuir momentos de puro humor, peca por, indiretamente, incitar a
clássica "Chicolatria" por parte daqueles que se interessam pelas
peripécias do Sr. Buarque. Ele é digno de nossa admiração e de nosso respeito,
não de nossa idolatria cega, tal qual da metade das pessoas que estavam na sala
de cinema na noite em que eu estava lá...
Entretanto, as duas longas horas do filme de Miguel Faria Jr. possuem
alguns aspectos encantadores, que valem a ida ao cinema e não poderíamos deixar
de apontar aqui. Vamos enumerar um por um?
1) A quebra de alguns mitos populares
em torno da figura de Chico Buarque
Sempre
fomos levados a crer que Chico era um homem tímido, que detesta fazer shows e
etc e tal. Não necessariamente: conhecido pelos familiares como
"showboy" quando criança, o Sr. Buarque realmente não é muito dado a
longas temporadas para promover seus discos. Além do mais, o extremo humor é
muito mais aparente do que a aparente timidez do artista.
2) Alguns números musicais do
documentário
Miguel
Faria Jr. conseguiu fazer algumas escolhas bastante acertadas para as
interpretações que aparecem em Chico - Artista Brasileiro: Ney Matogrosso fez
uma releitura emocionante de "As Vitrines" (inédita na sua voz até a
realização desta película); Mônica Salmaso fez uma interpretação pungente de
"Mar & Lua"; Mart'nália & Adriana Calcanhotto
protagonizaram com perfeição o roteiro amoroso meio tortuoso, meio bem-humorado
de "Biscate" ao sugerir uma relação entre duas mulheres; Laila Garin
me emocionou ao retratar a mãe cruel de "Uma Canção Desnaturada".
Ney Matogrosso em uma das interpretações mais bonitas de toda a sua carreira...
3) As imagens de arquivo
Rever
algumas imagens de arquivo e assistir outras raridades, tais como as fotos da
montagem censurada deCalabar - O Elogio da Traição, imagens de D. Maria
Amélia Buarque de Hollanda indo cumprimentar o filho famoso no palco no auge da
era dos festivais ou algumas raríssimas filmagens de Chico durante o seu exílio
em Roma já valeram a película de Miguel Faria Jr.
4) Um breve olhar sobre o Chico Buarque
escritor
Os
momentos do filme de Miguel Faria Jr. nos quais Chico comenta o ofício tardio
da Literatura (ele começou a escrever seu primeiro romance, Estorvo, em 1989) e a repercussão diante
de seus romances é algo infinitamente interessante. Alguns trechos de suas
longas narrativas foram barrados pela já saudosa voz de Marília Pêra. Vale a
pena conhecer esta faceta menos óbvia do Sr. Buarque...
5) A busca pelo irmão alemão
Um dos
tabus mais latentes dos Buarque de Hollanda foi o fato de que o patriarca da
família, o lendário historiador, sociólogo e professor da Universidade de São
Paulo Sérgio Buarque de Hollanda teve um filho com uma alemã durante a sua
breve estadia em Berlim durante o período compreendido entre 1929-1930. Sérgio
Günther (1930-1981), o irmão alemão de Chico Buarque, foi objeto de buscas do
irmão brasileiro famoso e inspiração para o quinto romance de Chico. Miguel
Faria Jr. nos mostra o processo de investigação para o encontro do paradeiro de
Günther, que era cantor e apresentador de TV, com direito a um clipe do filho
desaparecido do autor de Raízes do Brasil
cantando para a TV alemã nos anos 1960. O que mais me impressionou foi a
semelhança entre pai e filho, para deleite dos investigadores e de todos nós,
espectadores.
Entre as perdas e ganhos de Chico – Artista Brasileiro,
ficamos no zero a zero. Como critério de desempate, sugiro que as salas de
cinema sejam a segunda opção para um provável DVD com extras e envolto em um
belo package elegante, bem como
merece a obra do Sr. Buarque. Assim, poderemos deleitar a beleza de sua
poesia no melhor canto jamais inventado: no conforto e no sossego de nosso lar.
Afinal, sem a presença de ninguém para perturbar a sua experiência fílmica, a
tela do HD sempre será uma opção mais cômoda e reconfortante.
ELES & EU (meu relato
de minhas idas e vindas com o grupo Secos & Molhados)
O grupo Secos & Molhados (da esquerda para a direita): Gerson Conrad, Ney Matogrosso & João Ricardo
"Um grito de estrela vem do
infinito E um
bando de luz repete o
grito Todas as
cores e outras
mais Procriam
flores astrais
O verme
passeia na lua
cheia"
("Flores Astrais" - João Ricardo & João Apolinário – canção do segundoálbum do Secos &
Molhados, de 1974)
2015
foi um ano de início de novos ciclos, como também de conclusão de outras de
minhas jornadas profissionais. A que encerro neste ano é, sem dúvida, a minha
empreitada mais apaixonada, mais empenhada e a qual me rendeu muito do que sou
hoje. A partir de 15 de dezembro de 2015 deixo de ser um mero escritor amador
que enche inúmeras páginas com palavras supostamente vãs para tentar ser mais
um a "encher de mais confusão as prateleiras", como cantava Caetano
Veloso lá pelos idos do final da década de 1990. O assunto? Música,
evidentemente! O tema? O lendário grupo Secos & Molhados, objeto de meu
Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação, de minha Dissertação de Mestrado e
de tantos anos de pesquisas.
Minha
história oficial com os meus três mascarados começou oficialmente há quinze
anos, quando meus estudos na Faculdade de Letras ainda estavam lá no início.
Encantado com os estudos de Literatura e inebriado pelos prazeres do texto,
ouvia repetidamente os dois primeiros do Secos & Molhados já tentando
desvendar as relações enigmáticas entre a poesia de Vinícius e Pessoa com a voz
e a postura cênica infinitamente abusada de Ney Matogrosso. E ficava intrigado
com as afirmações do meu pai, que deviam ser o total lugar-comum da época, que
não variavam muito entre: "Os caras do Secos & Molhados? Tudo
veado!"...
No
final de 2003, precisava cumprir com uma obrigação burocrática imposta pela Universidade:
dar cabo de um projeto de pesquisa e apresentá-lo para uma banca composta por
três professores da Faculdade de Letras. Estes créditos respondiam pelo nome de "Monografia", o que hoje chamamos de Trabalho de Conclusão de Curso
de Graduação, vulgo TCC. Na
impossibilidade de dar conta de um trabalho ousado demais – modéstia à parte – sobre
teatro contemporâneo (minhas ambições acadêmicas hercúleas já eram bastante
criticadas naquela época), resolvi começar a investigar mais sobre os três
mascarados alados que há tanto me intrigavam. No dia 17 de dezembro de 2003, 31 anos depois que o Secos & Molhados fez sua primeira apresentação ao vivo lá nos fundos do Teatro Ruth Escobar (um local conhecido como Casa de Badalação & Tédio),
apresentei meu trabalho final para a Universidade Estácio de Sá, que me aprovou
com nota máxima.
Poucos
meses depois, novos desafios me aguardavam. A vida de um professor
recém-formado no Brasil é nada estimulante em termos profissionais e
financeiros. Nem a chance de ouro de ter iniciado meu Mestrado em Literatura
Brasileira pela Universidade Federal Fluminense foi algo que me trouxe tanta
animação assim. Lógico, ter sido aprovado em uma seleção concorridíssima em
11.º lugar com um histórico e uma pesquisa nada ortodoxos em uma instituição
pública era algo certamente extraordinário. O problema era que Niterói e a UFF
soavam provincianos demais para mim: eu me sentia como um eterno e incorrigível
integrante de um exército de um homem só.
A
explicação para isso era o fato de que, no momento em que ingressei na UFF, não
havia mais pesquisadores que se preocupassem com o tema "Literatura &
Música Popular". Com isso, fui fatalmente relegado à margem, como
consequência, e com imenso orgulho e sem um pingo de modéstia. Afinal, lutar pela minha integridade
intelectual sempre foi minha prioridade. Algo plenamente compatível com as
canções do grupo que eu escolhi como objeto de pesquisa. Apesar de ter tido uma
excelente Orientadora de Mestrado, meu instinto de sobrevivência dizia que eu
sempre precisava ser independente, ir em busca de fontes, de fatos, como um bom
pesquisador deve ser. Consegui duas entrevistas valiosíssimas para meu
trabalho: Gerson Conrad conversou longamente comigo em outubro de 2005 e Luhli cedeu um
maravilhoso depoimento em janeiro de 2006. Decididamente, eu tive de ser o
verme a passear pela lua cheia contente e convencional da academia, no estilo mais
low profile possível, visto que meus méritos não consistiam meramente de
relações influentes ou de grande poder.
Os
dois anos que se seguiram foram difíceis em termos profissionais e acadêmicos.
Nenhuma das disciplinas que cursei no decorrer do Mestrado geraram trabalhos
que me auxiliassem nas pesquisas que deveriam dar origem ao texto da Dissertação.
De qualquer maneira foi ótimo pesquisar sobre a obra de Silviano Santiago,
Phillip Roth, Jean-Paul Sartre e J. M. Coetzee, sobre o legado dos romances de
Oswald, Flaubert e Jane Austen e investigar as relações entre Cinema e
Literatura a partir das criações de Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues. No plano
pessoal, um relacionamento que vivia uma crise que se parecia a um avião
prestes a cair sobre duas Torres Gêmeas prestes a implodir com (quase) tudo ao redor.
Uma grande mudança era necessária para que todos os bloqueios fossem,
enfim, retirados do caminho.
Quando
pisei em São Paulo no dia 14 de março de 2006 para ficar de vez, tinha apenas
os 60 reais restantes da última parcela do meu seguro-desemprego no bolso. As únicas coisas que estavam certas em minha vida eram a matrícula trancada na UFF
por seis meses, uma sacola repleta de livros para ler, uma pesquisa inacabada e um mar eterno de incertezas pela
frente. Pelo menos, havia alguém para amar, uma nova família (que me recebeu de
braços abertos) e novos amigos para dar apoio, além dos poucos que sobraram no
Rio de Janeiro na torcida. Foi na Terra da Garoa, debaixo de muito custo, de
algumas contribuições valiosíssimas (o arquivo da Folha de S. Paulo, a maior
delas!) e de muitas noites sem dormir, que o texto, finalmente, começou a tomar
corpo. No entanto, precisávamos de mais seis meses de prorrogação, desta vez
com a aprovação do Colegiado da Pós-Graduação da UFF. Foi neste momento que
pensei que não íamos chegar até o fim. Entretanto, chegamos! E, mais uma vez,
iríamos fazer um passeio de luxo pela lua cheia dos contentes. Eu teria até
março do ano seguinte para concluir as pesquisas, sendo que eu estaria em São
Paulo e Matildes, minha santa Orientadora, no Rio de Janeiro. Santificados sejam os pacotes de
SEDEX, que tanto nos auxiliaram em momentos de urgência e necessidade. Em nome de todas as pesquisas, AMÉM!
A
primeira etapa dessa jornada chegou ao fim no dia 14 de abril de 2007. Depois
de enfrentar seis horas de espera no Aeroporto de Congonhas (o país vivia o
auge da crise dos aeroportos!) para fazer a ponte aérea, retornei para o Rio de
Janeiro para, enfim, defender minha Dissertação de Mestrado. Pedi a benção para
a estátua de Drummond em Copacabana na parte da manhã, pedi a proteção ao Dom Quixote
que fica em frente ao prédio da Letras antes de subir para o quinto andar. E
enfrentamos um atraso de quase uma hora, debates acalorados típicos das
esquizofrenias do mundo acadêmico e ouvimos o veredicto da banca... outra nota
10! Com indicação para que a Dissertação fosse publicada, para minha plena
felicidade.
A BANCA: Pascoal Farinaccio (UFF), Matildes Demetrio dos Santos (UFF - Orientadora) e Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo (Uerj)
Sabia
que o abismo que separaria a transformação de meu Mestrado em Livro era imenso.
Primeiro porque eu tinha a plena consciência de que havia inúmeras correções a
serem feitas no texto. Em segundo lugar, porque não tinha conseguido aproveitar
todas as minhas fontes de pesquisa. Terceiro, e pior de tudo: sou um perfeccionista obsessivo e incorrigível, extremamente atento a detalhes e sofro demais quando vejo qualquer traço de imperfeição! A correção do texto era algo que teria que ser feita em algum momento, mas eu
precisaria de bastante tempo para poder me refazer das dolorosas batalhas que me levaram até a
defesa da Dissertação...
O
período de férias que eu me concedi foi de uns dois anos até, finalmente,
chegar ao texto final da Dissertação, um volume monstruoso de quase 400
páginas. Diploma de Mestre obtido, 10 cópias nas mãos, hora de presentear os
mais próximos com a promessa do remoto livro. Rosana Barbosa, Matildes Demetrio, Herom Vargas, Emílio Carrera e Zélia
Duncan foram algumas das pessoas que receberam seus presentes com as suas devidas dedicatórias. Porém, achei
que precisava presentear uma pessoa, e eu o fiz em 14 de março de 2009, no dia
exato que marcava meu terceiro aniversário de chegada em São Paulo: fiquei
felicíssimo de ter conseguido arrancar um sorriso aberto de Ney Matogrosso ao
entregar o resultado de minhas pesquisas em suas mãos. Contei brevemente o
périplo percorrido até chegar naquele camarim com aquelas tortuosas páginas e
ele ficou impressionado com o quanto o meio acadêmico ainda consegue ser
careta... Foi o máximo de interação que eu, um tímido ocasional e incorrigível, consegui me
permitir com uma das pessoas mais admiradas por mim...
Ao lado de um sorridente Ney Matogrosso, em 14 de março de 2009.
Acabei
tirando férias dos meus mascarados por algumas temporadas, mas nunca conseguia
fazer isso por muito tempo. Sempre havia alguma coisa que me remetia a eles:
Matildes me convidou para um dia maravilhoso de palestras na UFF e lá fui eu
mais uma vez voando para o Rio de Janeiro falar sobre o Secos & Molhados para
alunos de Graduação em 2008. Um contato do professor Herom Vargas, interessado
em conhecer meu trabalho em janeiro de 2009, fez com que eu me entusiasmasse
com as pesquisas novamente. Um ou outro livro que abordava o legado e a loucura
dos anos 1970 sempre vinha a público para me atormentar e me lembrar de que era
preciso atualizar a versão final do texto. Fui investindo nestas atualizações
até o final de 2014, quando concluí a versão final do que se transformou
no livro.
Como
resolução principal para 2015, decidi que não apenas iria retirar meus escritos
das pastas e das gavetas, como também iria viver um ritmo profissional mais brando, com finais de semana livres e mais qualidade de vida.
Isso implicava trabalhar menos, como também iria acarretar ganhos financeiros
menores. Não me arrependo nem um pouco. Pude revisar as provas do livro e suas infindáveis
idas, vindas e tormentas com a atenção devida e projetar uma parte do futuro. E sonhar com
o dia de poder sair assinando livros para as pessoas e compartilhar o
conhecimento com todos os que quiserem comprar O Doce & O Amargo do Secos
& Molhados: Poesia, Performance e Política na Música Brasileira. Afinal de
contas, o que realmente vale no tocante a qualquer jornada intelectual é poder
repartir o pouco que sabemos com os nossos semelhantes...
Mais
uma vez me vejo rodeado de uma série de atos simbólicos: lançar meu primeiro
livro logo após a comemoração do centenário de Frank Sinatra, a alguns metros de
distância do Teatro Ruth Escobar, na mesmíssima cidade que revelou o Secos
& Molhados para o universo, quase 12 anos depois de apresentar a primeira
versão de meu trabalho de conclusão de curso definitivamente deve ser sinal de
bons fluidos. Um ciclo se fecha, outro está a caminho. O que nos espera, não
sabemos. O que desejo? Que seja bom para todos nós, tão divertido quanto “O
Vira” que até hoje faz crianças, adultos e velhinhos dançarem por aí sem temer
o medo de qualquer noção de ridículo. Que cative as almas dos leitores e
ouvintes, tal qual meus olhos e ouvidos foram cativados por aquela magia
fantástica dos meus queridos mascarados. E que seja leve, como uma leve pluma
que pousa alegremente sobre os corações da gente.
O Brasil é um país de cantoras extraordinárias. E de atrizes
fantásticas. No entanto, pouquíssimas brasileiras conseguem compor estas
galerias com tanta presença e classe como conseguiu Marília Soares Marzullo Pêra. Para
mim, uma aquariana que fazia anos um dia antes do meu aniversário. Para nós,
singelos mortais, a grande atriz Marília Pêra. Para a classe artística, uma
verdadeira unanimidade. Para as artes do Planeta, uma das maiores artistas que
surgiram por aqui em todos os tempos. A partir de 5 de dezembro de 2015, mais
uma estrela a brilhar em uma galáxia bem distante, bem longínqua...
Meu último sábado que antecedia as férias de dezembro de um longo e
exaustivo ano começou com um gosto bem amargo. Ao acordar, por volta de 11
horas de manhã, soube que Marília Pêra tinha morrido, serena e discreta, aos 72
anos de idade, vítima de um câncer. Dentre inúmeras fotos que se repetiam pelas
redes sociais, pelas páginas de notícias da Internet e inúmeros flashes da Globo News, surgiam
homenagens, depoimentos e uma comoção coletiva diante da partida de uma das
artistas mais empenhadas que já conhecemos. A tristeza foi automática e
inevitável.
Comecei a me lembrar da única noite em que assisti Marília Pêra cantando
e atuando no teatro. Fiquei encantado quando a vi ao lado de Miguel Falabella
em uma montagem brasileira de Hello,
Dolly! em uma breve temporada pelo Teatro Bradesco. O que eu achei mais
encantador na versão nacional do texto da Broadway foi que ela conseguiu dar um
toque de humor e leveza extremamente autênticos à trambiqueira Dolly Levi, sem
deixar de descaracterizar o texto original. Não consigo esquecer dos figurinos,
da música e do belo sorriso que ela ostentava em cada troca de figurino, em
cada coreografia, em cada riso arrancado da plateia. Fiquei encantado com a energia
e a beleza daquele trabalho por dias. Taí os verdadeiros poderes de uma
estrela...
Marília Pêra na versão brasileira de Hello, Dolly! (2013), com direção de Miguel Falabella.
Feiticeira (1975)
Gosto bastante de Feiticeira, disco de Marília baseado em um show com roteiro de Fauzi Arap e Nelson
Motta em 1975, que foi um fracasso retumbante. Primeiro porque há a fina flor
do que existia (e ainda existe) de melhor na música brasileira da época naquele
disco: Lamartine Babo, Eduardo Dussek, Luhli & Lucina, Geraldo Azevedo, Walter
Franco, Jorge Mautner, Alceu Valença, Jards Macalé, etc. Segundo e melhor de
tudo: ao ouvirmos Marília Pêra em disco temos a noção de que estamos ouvindo um
espetáculo grandioso, pomposo, de grande envergadura em plena ação. Ouço
"Alô Alô Brasil" e minha imaginação já me remete a imensos cenários
em verde e amarelo, com bananas em riste, revelando o Brasil tão bem cantado
por Carmen Miranda, a Pequena Notável que ela homenageou diversas vezes nos
palcos deste país. "Bentevi" nos emociona pela beleza e nos dá
vontade de sair dançando com os braços abertos, chamando os pássaros para
conviver do mesmo espaço aberto e pedir para que eles nos levem voando ao léu,
livres e descompromissados. O "Samba dos Animais", “Estado de Choque”
e "A Natureza" por outro lado, ainda são de uma atualidade
impressionante... Um grande álbum de uma atriz que cantava muitíssimo bem!
Marília Pêra era uma grande estrela de musicais e foi uma das pioneiras
do gênero no Brasil. Conseguia cantar magistralmente Dalva de Oliveira,
Lamartine Babo, Carmen Miranda com a mesma naturalidade que interpretava uma
Maria Callas ou a obra de Ary Barroso. Sua voz mansa e discreta fora de cena
contrastava com a sua presença histriônica e marcante quando estava em cima do
palco. Em alguns momentos, chegava até a assustar os menos acostumados com o
seu estilo. Em outros, encantava profundamente as plateias que a assistiam. A interpretação
de "120, 150, 200 km/h", de Roberto & Erasmo, é um exemplo
clássico do quanto os opostos colidem de maneira um tanto, digamos,
surpreendente...
Se pudesse resumir tudo o que Marília Pêra foi em apenas uma única
imagem, não hesitaria em dizer que ela era uma bela feiticeira. Não daquelas
feiosas que fazem coisas malévolas e que trazem o mal, mas daquelas que só
semearam o que existe de melhor nos seres humanos. Suas feitiçarias lhe
permitiriam que ela se transformasse em quem ela pudesse, viver as vidas que
ela quisesse por duas horas ou mais. Assim, nós, mortais e comuns, tentamos ir
em busca de sentido e compreensão para o que há de mais indecifrável: a vida...
Marília como a personagem Juliana na minissérie O Primo Basílio (1988), baseada no romance de Eça de Queirós, uma de suas performances mais aclamadas e inesquecíveis.