31 de dezembro de 2015

2015 | 2016



E chegamos a mais um final de ano. 2015 foi, sem a menor sombra de dúvida, o nosso ano mais produtivo: o blog Trovas de Vinil teve um total de mais de 13 mil visualizações a partir de 63 crônicas musicais, sendo que 20 destes textos foram inéditos. 

Isto se deve a algo que vai além de uma mera realização pessoal, mas a uma vontade de tornar este espaço algo cada vez mais interessante para quem o lê. E é por isso que eu gostaria de agradecer a cada um de vocês que visualizaram, leram, comentaram e compartilharam estes escritos por aí. 

Além disto, 2015 foi um ano crucial para minha história: finalmente consegui lançar meu primeiro livro! O Doce & O Amargo do Secos & Molhados é mais do que um mero produto de 15 anos de pesquisas dedicadas à música popular, ele é a realização de um sonho antigo de suma importância para mim! 



Que em 2016 a música continue nos unindo e mantendo a vontade que existe em cada um de fazer um mundo melhor. Que no próximo possamos continuar falando sobre todos os tipos de música de qualidade e que nos tocam profundamente. Desejo do fundo do meu coração que os próximos 365 dias não passem tão rápido como os de 2015, tal qual nos aludem os versos inteligentíssimos de Rita Lee:



Feliz Ano Novo!

Um abraço do
Vinícius
(Vinil)

30 de dezembro de 2015

TROVA # 63


 ELZA SOARES DA VIDA


"Desde que me entendo por gente
Elza Soares da vida
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida
Eu disse
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida

Desde que me entendo por gente
Eu sambo, eu faço o que gosto
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco
Eu disse
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco

Desde que me entendo por gente
Difíceis momentos tristes
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste
Eu disse
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste.
"

("Elza Soares" - Itamar Assumpção - Canção que o Nego Dito escreveu para a musa de Garrincha e que é a última faixa de Pretobrás II: Maldito Vírgula [2010]).


Elza Soares é uma daquelas atrações musicais brasileiras que já deveriam ser classificadas como verdadeiras instituições. Daquelas que deveriam ser tombadas pelo patrimônio histórico da humanidade. Por sua história, por seu tempo de atividade, além de seu talento. São mais de 50 anos de música, 78 anos confessos de idade, 85 de acordo com alguns jornalistas e 350 anos segundo as minhas prerrogativas - porque se a gente envelhecesse a cada golpe fatal que a vida nos oferece, Elzinha teria uma lista infinita de dores e amores para nos ofertar...




Minha primeira memória da musa mais célebre de Garrincha data dos meus primeiros anos da Faculdade de Letras, quando eu era um jovem encantado com a MPB de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Ouvi a gravação antológica de "Língua", de Caetano, e fiquei embasbacado com aquela voz rouca, que perguntava o que nossa língua portuguesa queria e podia fazer por nós. A cada ganido, grito rouco e pinote dela eu tinha a plena certeza de que Elza Soares devia ter vindo de outro planeta. O da fome, como ela disse pra Ary Barroso, lá no início de sua carreira:

"- De que planeta você está vindo, minha filha?! - indagou Ary [Barroso], assustado.
- Do planeta fome!
Como que entendendo o recado, ele parou de rir e anunciou que Elza Soares cantaria "Lama". De Paulo Marques e Ailce Chaves. O conjunto atacou a introdução - fá sustenido. Orós encarou a garota e sorriu. Ela respondeu com a mesma alegria e pôs-se a cantar, botando na voz te a a sua força interior, suas angústias, sonhos e esperanças. Muitos espectadores puseram-se de pé para aplaudi-la. Ary se impressionou com seu dinamismo e potencial vocal. Chegou à segunda pede com redobrado vigor. Decidiu, também, exibir seu lado de atriz, da menina que pedia esmola nas calçadas da Central chorando para conseguir os trocados da passagem.

Mais palmas surgiram de todos os cantos do auditório. Ao final da interpretação, aplausos entusiasmados e pedidos de bis. Elza foi aclamado como a grande vencedora da noite e repetiu a canção. Ary abraçou-a e beijou-a. Teria que voltar à emissora bom-dia seguinte para receber o prêmio."

LOUZEIRO, José. "Elza Soares: Cantando Para Não Enlouquecer". São Paulo: Ed. Globo, 1997, p.47.





Presenciei pela primeira vez o vigor de Elza Soares em cena lá pelos idos de 2004 ou 2005 quando fui ver uma apresentação de Vivo Feliz no Teatro Rival. Antes de surgir em cena, fomos surpreendidos com o palco escurecido, os músicos paralisados e Elza cantando uma versão lancinante de "O Meu Guri" (Chico Buarque) à capella. Pouco depois, ela surgia em cena, deslumbrante em seu vestido curto, sua peruca black power e cantando, ganindo e sambando loucamente em cima de seu salto plataforma 15. O que foi mais arrebatador foi o momento no qual a cantora deixou de necessitar do microfone para cantar e deixou o aparato no chão e cantou para a multidão sem a necessidade de poses ou artifícios. Nada tinha sido mais digno de coragem para mim até aquele momento...



Alguns anos depois, já devidamente adaptado a São Paulo, soube em meados de 2007 que Elza iria gravar um DVD ao vivo no SESC Vila Mariana. Ficamos tão felizes com a possibilidade de assistir a um novo espetáculo que ainda por cima daria seria eternizado em imagem e som diretamente da primeira fila que mal podíamos conter a excitação. No entanto, fomos surpreendidos com a infeliz notícia de que o show e a gravação seriam cancelados devido ao fato de que Elza Soares teve que ser internada às pressas pra tratar de um problema de coluna grave. O evento foi remarcado para uma data a qual infelizmente não poderíamos comparecer. O resultado final foi Beba-Me, um dos espetáculos mais belos de toda a carreira de uma das cantoras mais importantes da música brasileira. Fiquei muito desapontado de não ter presenciado aquele momento...


As internações recentes deixaram claro que o estado físico de Elza Soares tinha sido deveras abalado pelas batucadas da vida afora. Sua voz ainda era a mesma, porém as dores nas costas lhe obrigavam a fazer seus shows sentada, o que lhe impedia de sambar freneticamente em cima de um salto 15. Mesmo assim, fomos assistir a uma apresentação da Diva Negra ao lado do violonista João de Aquino no saudoso Teatro Fecap lá pelos idos de 2010 ou 2011. O cansaço extremo de um professor horista, extenuado em ter que trabalhar por horas e horas durante a semana inteira e no dia do show (um sábado) não me permitiu que eu aproveitasse o show do jeito que eu deveria: dormi em alguns trechos, tomado pela mais absoluta exaustão. Se arrependimento matasse, minhas cinzas já estariam voando por aí há bastante tempo...



Foi em 2015 que finalmente reencontrei Elza Soares. E este reencontro foi de uma maneira tão ocasional e tão avassaladora que não posso deixar de descrever tamanho impacto. No início de outubro de 2015, envolto em milhares de obrigações profissionais, soube que o show baseado no CD A Mulher do Fim do Mundo estrearia em São Paulo no mesmo final de semana em que eu teria que me ausentar da cidade. Ao retornar para Sampa e ver trechos das apresentações que tinha perdido no YouTube, vi que Elza ainda conseguia arrebatar plateias inteiras com o simples e atômico impacto de sua voz ao nos pedir, clamar, implorar para que ela continuasse a cantar.




Ouvi o CD e fiquei impactado com a modernidade, a ousadia e coragem que emanam daquela mulher de 78 anos. A Mulher do Fim do Mundo fez com que os mais tradicionalistas torcessem o nariz, mas encantou milhares de outros e (até onde bem sei...) tem vendido bastante. Elza Soares tem feito shows em casas lotadas e eu tive a honra indiscutível de vê-la cantar no início de dezembro de 2015, no Teatro do SESC Pompeia: nunca tinha visto nenhuma artista ser aplaudida tantas vezes em cena aberta. Ah, um detalhe importante: de pé! Outro detalhe fundamental: ela consegue manter seu domínio pleno em cena sentada no topo de um trono, como uma rainha ao cantar e vislumbrar seu próprio universo em decomposição e desespero.


O que explica o sucesso avassalador deste projeto de Elza Soares? Primeiramente porque é o retorno de uma das artistas mais revolucionárias da música brasileira aos palcos e ao disco. Em segundo lugar, A Mulher do Fim do Mundo é um disco arrojado, urbano, fortíssimo e que atira as verdades na cara do ouvinte sem um pingo de dó. Terceiro e mais importante de tudo: Elza não tem o menor pudor em expor seus sentimentos mais intensos em praça pública, o que nos conecta ao nosso fosso emocional mais profundo. É por isso e tudo o mais que a aplaudimos sempre que possível. Entusiasticamente. E de pé!






Ver e ouvir a eterna musa de Garrincha cantando intensamente, lançando mão de suas químicas quentes e de suas armas brancas em um universo de estrelas Pop de brilho efêmero e fabricado é ter a concreta esperança de que ainda existe salvação no meio musical brasileiro. Em um ano de perdas tão lastimáveis como foi o ano de 2015, ver Elza Soares cantando por aí é um ganho impressionante. Sem tamanho. Do tamanho do mundo que encaminhamos para o fim. Do tamanho do amor pelas coisas que ainda resiste...

LEIA MAIS SOBRE O CD A MULHER DO FIM DO MUNDO,
DE ELZA SOARES, PARA O BLOG PEQUENOS CLÁSSICOS PERDIDOS:


OUÇA CD A MULHER DO FIM DO MUNDO,
DE ELZA SOARES, NA ÍNTEGRA:

22 de dezembro de 2015

TROVA # 62

CHICO BUARQUE ENTRE A TELONA DO CINEMA & A TELA DA TV

(5 motivos para ir ao cinema assistir Chico – Artista Brasileiro e 5 motivos para esperar este filme sair em DVD)



A música brasileira tem recebido documentários maravilhosos sobre vários de nossos artistas. Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Tom Jobim, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Raul Seixas, Jorge Mautner, Luhli & Lucina, Elza Soares, a Era dos Festivais e a Tropicália foram homenageados com toda a pompa e circunstância necessária e merecida por cineastas jovens e experientes. Fiquei bem animado quando soube que Miguel Faria Jr. tinha feito um documentário sobre Chico Buarque e resolvi ir ao cinema assim que as férias batessem a minha porta.

Miguel Faria Jr. & Chico Buarque

Documentários não atraem um público muito extenso: geralmente, em menos de um mês, eles não ocupam mais as salas principais de cinema no Brasil. A preferência do público por blockbusters como Harry Potter, The Lord of The Rings ou Star Wars em tempos nos quais MPB não é mais consumida por um grande número de pessoas é avassaladora. Como consequência, a oferta de cinemas que exibiam o documentário de Miguel Faria Jr. era bem reduzida em uma cidade grande como São Paulo (4 cinemas ao todo!) em pleno final de dezembro.
 Ingressos comprados, assentos tomados, quase prontos para o início de mais uma experiência cinematográfica, exceto... a falta de educação de mais da metade do público da sala de cinema, que foram ao Cine Belas Artes para ver o Pop Star Chico Buarque, não o artista Chico Buarque, o escritor Chico Buarque, o homem público Chico Buarque. Órfãos de turnês extensas do cantor e compositor de "A Banda", mais da metade das pessoas que estavam ali se comportavam como se estivessem em uma casa de shows: falando alto, comentando o filme como se fosse uma partida de futebol ou a novela da Rede Globo. Se houvesse um garçom, bebidas seriam requisitadas em um pronto estalar de dedos e os meus instintos mais antissociais e psicopatas poderiam aflorar dentro de uma sala do Cine Belas Artes. Fui contido. Ainda bem.

Estes motivos seriam suficientes para que eu esperasse Chico – Artista Brasileiro sair em DVD e eu pudesse assistir cada detalhe na santa tranquilidade do meu HD e no silêncio do meu quarto. No entanto, resolvi enumerar alguns motivos, digamos, mais técnicos para justificar minha falta de vontade de voltar a assistir esta película no cinema:

1) A pobreza de depoimentos da família de Chico Buarque
Apesar do documentário focar na trajetória artística de Chico, há um pecado mortal em não termos nenhuma espécie de testemunho de sua ex-mulher, Marieta Severo, e de suas filhas e de seus netos. A única presença familiar que concedeu depoimento para Chico – Artista Brasileiro foi de Miúcha, sua irmã mais velha.


2) A ausência sentida de vários parceiros e intérpretes de Chico
Como Francis Hime, Luiz Cláudio Ramos e Paulo Pontes foram esquecidos / ignorados em uma ocasião tão simbólica? Nara Leão, Bibi Ferreira e Maria Bethânia - intérpretes significativas da obra de Chico – mal aparecem no filme; Elis Regina, Gal Costa, Fafá de Belém, Elza Soares, Simone, Cauby Peixoto, Marisa Monte, Cida Moreira e outras foram sumariamente ignoradas.

3) A presença desnecessária de certas interpretações da obra de Chico
Em primeiro lugar, não consigo conceber o porquê de uma cantora de nacionalidade portuguesa ter que interpretar a obra de um artista brasileiro com tanta cantora brasileira de calibre e envergadura dando sopa por aí! A presença de Carminho em DOIS números do documentário de Miguel Faria Jr. é completamente desnecessária: as canções de Chico se tornam em dois lamentos lusitanos sofridos, que nos faz ter saudades de Amália Rodrigues. A escolha de Moyséis Marques e Péricles para interpretar dois dos sambas mais importantes do repertório buarqueano - "Mambembe" e "Estação Derradeira" - ao sabermos que existem sambistas experientes como Zeca Pagodinho e Diogo Nogueira foi, no meu ver, leviana.

Milton Nascimento ao lado da cantora portuguesa Carminho


4) Os inevitáveis cortes no documentário
Fiquei bem triste ao saber que Laila Garin tinha gravado uma versão para "Bastidores", uma das canções mais belas de Chico. Uma baixa dessas diante de dois números com Carminho é, no mínimo, de gosto duvidoso...

5) O incentivo à "Chicolatria"
Chico - Artista Brasileiro, apesar de possuir momentos de puro humor, peca por, indiretamente, incitar a clássica "Chicolatria" por parte daqueles que se interessam pelas peripécias do Sr. Buarque. Ele é digno de nossa admiração e de nosso respeito, não de nossa idolatria cega, tal qual da metade das pessoas que estavam na sala de cinema na noite em que eu estava lá...

Entretanto, as duas longas horas do filme de Miguel Faria Jr. possuem alguns aspectos encantadores, que valem a ida ao cinema e não poderíamos deixar de apontar aqui. Vamos enumerar um por um?

1) A quebra de alguns mitos populares em torno da figura de Chico Buarque
Sempre fomos levados a crer que Chico era um homem tímido, que detesta fazer shows e etc e tal. Não necessariamente: conhecido pelos familiares como "showboy" quando criança, o Sr. Buarque realmente não é muito dado a longas temporadas para promover seus discos. Além do mais, o extremo humor é muito mais aparente do que a aparente timidez do artista.


2) Alguns números musicais do documentário
Miguel Faria Jr. conseguiu fazer algumas escolhas bastante acertadas para as interpretações que aparecem em Chico - Artista Brasileiro: Ney Matogrosso fez uma releitura emocionante de "As Vitrines" (inédita na sua voz até a realização desta película); Mônica Salmaso fez uma interpretação pungente de "Mar & Lua"; Mart'nália & Adriana Calcanhotto protagonizaram com perfeição o roteiro amoroso meio tortuoso, meio bem-humorado de "Biscate" ao sugerir uma relação entre duas mulheres; Laila Garin me emocionou ao retratar a mãe cruel de "Uma Canção Desnaturada".

Ney Matogrosso em uma das interpretações mais bonitas de toda a sua carreira...

3) As imagens de arquivo
Rever algumas imagens de arquivo e assistir outras raridades, tais como as fotos da montagem censurada de Calabar - O Elogio da Traição, imagens de D. Maria Amélia Buarque de Hollanda indo cumprimentar o filho famoso no palco no auge da era dos festivais ou algumas raríssimas filmagens de Chico durante o seu exílio em Roma já valeram a película de Miguel Faria Jr.


4) Um breve olhar sobre o Chico Buarque escritor
Os momentos do filme de Miguel Faria Jr. nos quais Chico comenta o ofício tardio da Literatura (ele começou a escrever seu primeiro romance, Estorvo, em 1989) e a repercussão diante de seus romances é algo infinitamente interessante. Alguns trechos de suas longas narrativas foram barrados pela já saudosa voz de Marília Pêra. Vale a pena conhecer esta faceta menos óbvia do Sr. Buarque...


5) A busca pelo irmão alemão
Um dos tabus mais latentes dos Buarque de Hollanda foi o fato de que o patriarca da família, o lendário historiador, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo Sérgio Buarque de Hollanda teve um filho com uma alemã durante a sua breve estadia em Berlim durante o período compreendido entre 1929-1930. Sérgio Günther (1930-1981), o irmão alemão de Chico Buarque, foi objeto de buscas do irmão brasileiro famoso e inspiração para o quinto romance de Chico. Miguel Faria Jr. nos mostra o processo de investigação para o encontro do paradeiro de Günther, que era cantor e apresentador de TV, com direito a um clipe do filho desaparecido do autor de Raízes do Brasil cantando para a TV alemã nos anos 1960. O que mais me impressionou foi a semelhança entre pai e filho, para deleite dos investigadores e de todos nós, espectadores.


Entre as perdas e ganhos de Chico – Artista Brasileiro, ficamos no zero a zero. Como critério de desempate, sugiro que as salas de cinema sejam a segunda opção para um provável DVD com extras e envolto em um belo package elegante, bem como merece a obra do Sr. Buarque. Assim, poderemos deleitar a beleza de sua poesia no melhor canto jamais inventado: no conforto e no sossego de nosso lar. Afinal, sem a presença de ninguém para perturbar a sua experiência fílmica, a tela do HD sempre será uma opção mais cômoda e reconfortante.


15 de dezembro de 2015

TROVA # 61

ELES & EU
(meu relato de minhas idas e vindas com o grupo Secos & Molhados)

O grupo Secos & Molhados (da esquerda para a direita): Gerson Conrad, Ney Matogrosso & João Ricardo

"Um grito de estrela
vem do infinito
E um bando de luz
repete o grito
Todas as cores
e outras mais
Procriam flores
astrais

O verme passeia
na lua cheia
"
("Flores Astrais" - João Ricardo & João Apolinário – canção do segundo álbum do Secos & Molhados, de 1974)



2015 foi um ano de início de novos ciclos, como também de conclusão de outras de minhas jornadas profissionais. A que encerro neste ano é, sem dúvida, a minha empreitada mais apaixonada, mais empenhada e a qual me rendeu muito do que sou hoje. A partir de 15 de dezembro de 2015 deixo de ser um mero escritor amador que enche inúmeras páginas com palavras supostamente vãs para tentar ser mais um a "encher de mais confusão as prateleiras", como cantava Caetano Veloso lá pelos idos do final da década de 1990. O assunto? Música, evidentemente! O tema? O lendário grupo Secos & Molhados, objeto de meu Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação, de minha Dissertação de Mestrado e de tantos anos de pesquisas.



Minha história oficial com os meus três mascarados começou oficialmente há quinze anos, quando meus estudos na Faculdade de Letras ainda estavam lá no início. Encantado com os estudos de Literatura e inebriado pelos prazeres do texto, ouvia repetidamente os dois primeiros do Secos & Molhados já tentando desvendar as relações enigmáticas entre a poesia de Vinícius e Pessoa com a voz e a postura cênica infinitamente abusada de Ney Matogrosso. E ficava intrigado com as afirmações do meu pai, que deviam ser o total lugar-comum da época, que não variavam muito entre: "Os caras do Secos & Molhados? Tudo veado!"...

No final de 2003, precisava cumprir com uma obrigação burocrática imposta pela Universidade: dar cabo de um projeto de pesquisa e apresentá-lo para uma banca composta por três professores da Faculdade de Letras. Estes créditos respondiam pelo nome de "Monografia", o que hoje chamamos de Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação, vulgo TCC. Na impossibilidade de dar conta de um trabalho ousado demais – modéstia à parte – sobre teatro contemporâneo (minhas ambições acadêmicas hercúleas já eram bastante criticadas naquela época), resolvi começar a investigar mais sobre os três mascarados alados que há tanto me intrigavam. No dia 17 de dezembro de 2003, 31 anos depois que o Secos & Molhados fez sua primeira apresentação ao vivo lá nos fundos do Teatro Ruth Escobar (um local conhecido como Casa de Badalação & Tédio), apresentei meu trabalho final para a Universidade Estácio de Sá, que me aprovou com nota máxima.



Poucos meses depois, novos desafios me aguardavam. A vida de um professor recém-formado no Brasil é nada estimulante em termos profissionais e financeiros. Nem a chance de ouro de ter iniciado meu Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense foi algo que me trouxe tanta animação assim. Lógico, ter sido aprovado em uma seleção concorridíssima em 11.º lugar com um histórico e uma pesquisa nada ortodoxos em uma instituição pública era algo certamente extraordinário. O problema era que Niterói e a UFF soavam provincianos demais para mim: eu me sentia como um eterno e incorrigível integrante de um exército de um homem só.



A explicação para isso era o fato de que, no momento em que ingressei na UFF, não havia mais pesquisadores que se preocupassem com o tema "Literatura & Música Popular". Com isso, fui fatalmente relegado à margem, como consequência, e com imenso orgulho e sem um pingo de modéstia. Afinal, lutar pela minha integridade intelectual sempre foi minha prioridade. Algo plenamente compatível com as canções do grupo que eu escolhi como objeto de pesquisa. Apesar de ter tido uma excelente Orientadora de Mestrado, meu instinto de sobrevivência dizia que eu sempre precisava ser independente, ir em busca de fontes, de fatos, como um bom pesquisador deve ser. Consegui duas entrevistas valiosíssimas para meu trabalho: Gerson Conrad conversou longamente comigo em outubro de 2005 e Luhli cedeu um maravilhoso depoimento em janeiro de 2006. Decididamente, eu tive de ser o verme a passear pela lua cheia contente e convencional da academia, no estilo mais low profile possível, visto que meus méritos não consistiam meramente de relações influentes ou de grande poder.



Os dois anos que se seguiram foram difíceis em termos profissionais e acadêmicos. Nenhuma das disciplinas que cursei no decorrer do Mestrado geraram trabalhos que me auxiliassem nas pesquisas que deveriam dar origem ao texto da Dissertação. De qualquer maneira foi ótimo pesquisar sobre a obra de Silviano Santiago, Phillip Roth, Jean-Paul Sartre e J. M. Coetzee, sobre o legado dos romances de Oswald, Flaubert e Jane Austen e investigar as relações entre Cinema e Literatura a partir das criações de Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues. No plano pessoal, um relacionamento que vivia uma crise que se parecia a um avião prestes a cair sobre duas Torres Gêmeas prestes a implodir com (quase) tudo ao redor. Uma grande mudança era necessária para que todos os bloqueios fossem, enfim, retirados do caminho.



Quando pisei em São Paulo no dia 14 de março de 2006 para ficar de vez, tinha apenas os 60 reais restantes da última parcela do meu seguro-desemprego no bolso. As únicas coisas que estavam certas em minha vida eram a matrícula trancada na UFF por seis meses, uma sacola repleta de livros para ler, uma pesquisa inacabada e um mar eterno de incertezas pela frente. Pelo menos, havia alguém para amar, uma nova família (que me recebeu de braços abertos) e novos amigos para dar apoio, além dos poucos que sobraram no Rio de Janeiro na torcida. Foi na Terra da Garoa, debaixo de muito custo, de algumas contribuições valiosíssimas (o arquivo da Folha de S. Paulo, a maior delas!) e de muitas noites sem dormir, que o texto, finalmente, começou a tomar corpo. 
No entanto, precisávamos de mais seis meses de prorrogação, desta vez com a aprovação do Colegiado da Pós-Graduação da UFF. Foi neste momento que pensei que não íamos chegar até o fim. Entretanto, chegamos! E, mais uma vez, iríamos fazer um passeio de luxo pela lua cheia dos contentes. Eu teria até março do ano seguinte para concluir as pesquisas, sendo que eu estaria em São Paulo e Matildes, minha santa Orientadora, no Rio de Janeiro. Santificados sejam os pacotes de SEDEX, que tanto nos auxiliaram em momentos de urgência e necessidade. Em nome de todas as pesquisas, AMÉM!
A primeira etapa dessa jornada chegou ao fim no dia 14 de abril de 2007. Depois de enfrentar seis horas de espera no Aeroporto de Congonhas (o país vivia o auge da crise dos aeroportos!) para fazer a ponte aérea, retornei para o Rio de Janeiro para, enfim, defender minha Dissertação de Mestrado. Pedi a benção para a estátua de Drummond em Copacabana na parte da manhã, pedi a proteção ao Dom Quixote que fica em frente ao prédio da Letras antes de subir para o quinto andar. E enfrentamos um atraso de quase uma hora, debates acalorados típicos das esquizofrenias do mundo acadêmico e ouvimos o veredicto da banca... outra nota 10! Com indicação para que a Dissertação fosse publicada, para minha plena felicidade.

A BANCA: Pascoal Farinaccio (UFF), Matildes Demetrio dos Santos (UFF - Orientadora) e Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo (Uerj)

Sabia que o abismo que separaria a transformação de meu Mestrado em Livro era imenso. Primeiro porque eu tinha a plena consciência de que havia inúmeras correções a serem feitas no texto. Em segundo lugar, porque não tinha conseguido aproveitar todas as minhas fontes de pesquisa. Terceiro, e pior de tudo: sou um perfeccionista obsessivo e incorrigível, extremamente atento a detalhes e sofro demais quando vejo qualquer traço de imperfeição! A correção do texto era algo que teria que ser feita em algum momento, mas eu precisaria de bastante tempo para poder me refazer das dolorosas batalhas que me levaram até a defesa da Dissertação...


O período de férias que eu me concedi foi de uns dois anos até, finalmente, chegar ao texto final da Dissertação, um volume monstruoso de quase 400 páginas. Diploma de Mestre obtido, 10 cópias nas mãos, hora de presentear os mais próximos com a promessa do remoto livro. Rosana Barbosa, Matildes Demetrio, Herom Vargas, Emílio Carrera e Zélia Duncan foram algumas das pessoas que receberam seus presentes com as suas devidas dedicatórias. Porém, achei que precisava presentear uma pessoa, e eu o fiz em 14 de março de 2009, no dia exato que marcava meu terceiro aniversário de chegada em São Paulo: fiquei felicíssimo de ter conseguido arrancar um sorriso aberto de Ney Matogrosso ao entregar o resultado de minhas pesquisas em suas mãos. Contei brevemente o périplo percorrido até chegar naquele camarim com aquelas tortuosas páginas e ele ficou impressionado com o quanto o meio acadêmico ainda consegue ser careta... Foi o máximo de interação que eu, um tímido ocasional e incorrigível, consegui me permitir com uma das pessoas mais admiradas por mim...

Ao lado de um sorridente Ney Matogrosso, em 14 de março de 2009.
Acabei tirando férias dos meus mascarados por algumas temporadas, mas nunca conseguia fazer isso por muito tempo. Sempre havia alguma coisa que me remetia a eles: Matildes me convidou para um dia maravilhoso de palestras na UFF e lá fui eu mais uma vez voando para o Rio de Janeiro falar sobre o Secos & Molhados para alunos de Graduação em 2008. Um contato do professor Herom Vargas, interessado em conhecer meu trabalho em janeiro de 2009, fez com que eu me entusiasmasse com as pesquisas novamente. Um ou outro livro que abordava o legado e a loucura dos anos 1970 sempre vinha a público para me atormentar e me lembrar de que era preciso atualizar a versão final do texto. Fui investindo nestas atualizações até o final de 2014, quando concluí a versão final do que se transformou no livro. 


Como resolução principal para 2015, decidi que não apenas iria retirar meus escritos das pastas e das gavetas, como também iria viver um ritmo profissional mais brando, com finais de semana livres e mais qualidade de vida. Isso implicava trabalhar menos, como também iria acarretar ganhos financeiros menores. Não me arrependo nem um pouco. Pude revisar as provas do livro e suas infindáveis idas, vindas e tormentas com a atenção devida e projetar uma parte do futuro. E sonhar com o dia de poder sair assinando livros para as pessoas e compartilhar o conhecimento com todos os que quiserem comprar O Doce & O Amargo do Secos & Molhados: Poesia, Performance e Política na Música Brasileira. Afinal de contas, o que realmente vale no tocante a qualquer jornada intelectual é poder repartir o pouco que sabemos com os nossos semelhantes...          

Mais uma vez me vejo rodeado de uma série de atos simbólicos: lançar meu primeiro livro logo após a comemoração do centenário de Frank Sinatra, a alguns metros de distância do Teatro Ruth Escobar, na mesmíssima cidade que revelou o Secos & Molhados para o universo, quase 12 anos depois de apresentar a primeira versão de meu trabalho de conclusão de curso definitivamente deve ser sinal de bons fluidos. Um ciclo se fecha, outro está a caminho. O que nos espera, não sabemos. O que desejo? Que seja bom para todos nós, tão divertido quanto “O Vira” que até hoje faz crianças, adultos e velhinhos dançarem por aí sem temer o medo de qualquer noção de ridículo. Que cative as almas dos leitores e ouvintes, tal qual meus olhos e ouvidos foram cativados por aquela magia fantástica dos meus queridos mascarados. E que seja leve, como uma leve pluma que pousa alegremente sobre os corações da gente. 


7 de dezembro de 2015

TROVA # 60

A FEITIÇARIA INCOMPARÁVEL DE MARÍLIA PÊRA


Em memória de Marília Pêra (1943-2015)



O Brasil é um país de cantoras extraordinárias. E de atrizes fantásticas. No entanto, pouquíssimas brasileiras conseguem compor estas galerias com tanta presença e classe como conseguiu Marília Soares Marzullo Pêra. Para mim, uma aquariana que fazia anos um dia antes do meu aniversário. Para nós, singelos mortais, a grande atriz Marília Pêra. Para a classe artística, uma verdadeira unanimidade. Para as artes do Planeta, uma das maiores artistas que surgiram por aqui em todos os tempos. A partir de 5 de dezembro de 2015, mais uma estrela a brilhar em uma galáxia bem distante, bem longínqua...


Meu último sábado que antecedia as férias de dezembro de um longo e exaustivo ano começou com um gosto bem amargo. Ao acordar, por volta de 11 horas de manhã, soube que Marília Pêra tinha morrido, serena e discreta, aos 72 anos de idade, vítima de um câncer. Dentre inúmeras fotos que se repetiam pelas redes sociais, pelas páginas de notícias da Internet e inúmeros flashes da Globo News, surgiam homenagens, depoimentos e uma comoção coletiva diante da partida de uma das artistas mais empenhadas que já conhecemos. A tristeza foi automática e inevitável.




Comecei a me lembrar da única noite em que assisti Marília Pêra cantando e atuando no teatro. Fiquei encantado quando a vi ao lado de Miguel Falabella em uma montagem brasileira de Hello, Dolly! em uma breve temporada pelo Teatro Bradesco. O que eu achei mais encantador na versão nacional do texto da Broadway foi que ela conseguiu dar um toque de humor e leveza extremamente autênticos à trambiqueira Dolly Levi, sem deixar de descaracterizar o texto original. Não consigo esquecer dos figurinos, da música e do belo sorriso que ela ostentava em cada troca de figurino, em cada coreografia, em cada riso arrancado da plateia. Fiquei encantado com a energia e a beleza daquele trabalho por dias. Taí os verdadeiros poderes de uma estrela...

Marília Pêra na versão brasileira de Hello, Dolly! (2013), com direção de Miguel Falabella.

Feiticeira (1975)

Gosto bastante de Feiticeira, disco de Marília baseado em um show com roteiro de Fauzi Arap e Nelson Motta em 1975, que foi um fracasso retumbante. Primeiro porque há a fina flor do que existia (e ainda existe) de melhor na música brasileira da época naquele disco: Lamartine Babo, Eduardo Dussek, Luhli & Lucina, Geraldo Azevedo, Walter Franco, Jorge Mautner, Alceu Valença, Jards Macalé, etc. Segundo e melhor de tudo: ao ouvirmos Marília Pêra em disco temos a noção de que estamos ouvindo um espetáculo grandioso, pomposo, de grande envergadura em plena ação. Ouço "Alô Alô Brasil" e minha imaginação já me remete a imensos cenários em verde e amarelo, com bananas em riste, revelando o Brasil tão bem cantado por Carmen Miranda, a Pequena Notável que ela homenageou diversas vezes nos palcos deste país. "Bentevi" nos emociona pela beleza e nos dá vontade de sair dançando com os braços abertos, chamando os pássaros para conviver do mesmo espaço aberto e pedir para que eles nos levem voando ao léu, livres e descompromissados. O "Samba dos Animais", “Estado de Choque” e "A Natureza" por outro lado, ainda são de uma atualidade impressionante... Um grande álbum de uma atriz que cantava muitíssimo bem!





Marília Pêra era uma grande estrela de musicais e foi uma das pioneiras do gênero no Brasil. Conseguia cantar magistralmente Dalva de Oliveira, Lamartine Babo, Carmen Miranda com a mesma naturalidade que interpretava uma Maria Callas ou a obra de Ary Barroso. Sua voz mansa e discreta fora de cena contrastava com a sua presença histriônica e marcante quando estava em cima do palco. Em alguns momentos, chegava até a assustar os menos acostumados com o seu estilo. Em outros, encantava profundamente as plateias que a assistiam. A interpretação de "120, 150, 200 km/h", de Roberto & Erasmo, é um exemplo clássico do quanto os opostos colidem de maneira um tanto, digamos, surpreendente...


Se pudesse resumir tudo o que Marília Pêra foi em apenas uma única imagem, não hesitaria em dizer que ela era uma bela feiticeira. Não daquelas feiosas que fazem coisas malévolas e que trazem o mal, mas daquelas que só semearam o que existe de melhor nos seres humanos. Suas feitiçarias lhe permitiriam que ela se transformasse em quem ela pudesse, viver as vidas que ela quisesse por duas horas ou mais. Assim, nós, mortais e comuns, tentamos ir em busca de sentido e compreensão para o que há de mais indecifrável: a vida...

Marília como a personagem Juliana na minissérie O Primo Basílio (1988), baseada no romance de Eça de Queirós, uma de suas performances mais aclamadas e inesquecíveis.

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