27 de novembro de 2015

TROVA # 59

A NAVE MUSICAL DE GAL COSTA
(ALGUMAS PALAVRAS SOBRE ESTRATOSFÉRICA, O SHOW)


Não sou mais tola
Não mais me queixo
Não tenho medo
Nem esperança 

Nada do que fiz
Por mais feliz
Está à altura
Do que há por fazer 

E se me entrego às imagens do espelho sob o céu
Não pense que me apaixonei por mim
Bom é ver-se assim
De fora de si 

Eu viveria tantas mortes
 E morreria tantas vidas
 E nunca mais me queixaria
Nunca mais
(Antonio Cicero & Arthur Nogueira – “Sem Medo Nem Esperança”, faixa de abertura do CD/SHOW Estratosférica, de Gal Costa)


Existem poucas cantoras da chamada "MPB" que me encantem tanto nos tempos de hoje como Gal Costa. Compreendi uma boa parcela da preciosidade de seu canto e da sofisticação de sua voz depois que troquei o Rio por São Paulo, ou seja, depois dos meus 25 anos de idade, momento em que atingi o primeiro estágio da maturidade. Meus difíceis primeiros anos na Selva de Pedra do Planalto de Piratininga foram embalados pela presença doce da arte de Gracinha com Índia, Fa-Tal, Gal Tropical e o lendário disco que tem "Divino, Maravilhoso" e "A Coisa Mais Linda que Existe". Meu mundo se tornou bem melhor por causa dela.


Desde que comecei a escrever os textos do Trovas de Vinil, ela passou a ser uma presença constante, uma figurinha mais do que carimbada. Ou mais do que isso: passou a ser a inspiração de vários dos meus sentimentalismos musicais que eu tentei verter em forma de crônica. Vibrei intensamente com a indescritível estranheza áspera de Recanto, álbum e show que trouxe Gracinha de volta para os braços do público depois de anos fora dos palcos e dos discos. No entanto, fiquei ainda mais animado com a leveza e a ousadia de Estratosférica, CD lançado por Gal no primeiro semestre de 2015 e que reúne veteranos e músicos menos conhecidos dos ouvintes da dita "música brasileira tradicional". Kassin, Moreno Veloso e Marcus Preto conseguiram fazer com que Gal Costa soasse irrepreensivelmente contemporânea para aqueles que ouviriam sua voz ao fim da primeira metade dos anos 2010 sem que ela soasse modernosamente pretensiosa ou excessivamente revisionista. As canções não reuniam a aspereza radical de seu trabalho anterior: havia uma alegria colorida ensolarada ausente na escuridão de poucos anos antes. Enquanto os puristas e críticos mais chatinhos resolveram cair de pau na nave musical de Lady Gal, decidi voar pelos céus de brigadeiro que a eterna musa tropicalista resolvera abrir para nós sem um pingo de medo e com a plena esperança de reencontrá-la onde ela reina com toda a graça: nos palcos...



Depois de uma tentativa frustrada no início de 2015, finalmente conseguimos assistir uma belíssima apresentação do recital Espelho D'Água no local mais apropriado para cultuarmos a arte da eterna musa das lendárias dunas de Ipanema: o Teatro J. Safra, devidamente acomodado na primeira fila da sala de espetáculos, sem a interferência de garçons, lanternas, garrafas de cerveja ou fãs desejosos em tirar selfies (existe breguice maior a ser cometida em um show, gente?) de frente para o artista que se apresenta em cena aberta. Seguindo às preciosas orientações de Marcus Preto em relação à direção artística e de repertório, Gal Costa reuniu alguns lados B de seus discos ("Caras e Bocas", "Tuareg", "Passarinho") e algumas inéditas para o show, no qual era acompanhada somente por Guilherme Monteiro na guitarra e no violão. As apresentações, que ocorreram entre meados de 2014 e meados de 2015, foram não apenas uma oportunidade para que público e artista revisitassem um legado de décadas, como também serviu para que esperássemos com ansiedade o que Gracinha iria aprontar nos palcos com a estreia da turnê Estratosférica.


Pouco tempo depois de nos sentirmos arrebatados pelo belo recital, estivemos frente a frente rapidamente com a eterna musa do Tropicalismo em uma noite de autógrafos do CD em julho de 2015. Gal foi de uma atenção e de uma simpatia tão grande conosco que foi impossível não esconder o meu sorriso largo, torto e imperfeito de ter trocado algumas palavras com ela, ganhar um autógrafo e tirar uma foto para eternizar esse momento tão especial para nós.



A estreia da turnê coincidiu com um marco histórico pessoal de extrema importância para Gal Costa: o primeiro show foi no mesmo final de semana em que a artista completou 70 anos de idade. A comemoração se deu em cima do palco, celebrando o amor pela música e cinco décadas de uma carreira dedicada ao que existe de melhor em matéria de canção neste país. Em outras palavras, a festa de Gracinha tornou-se de todos os que admiram o seu trabalho e a sua trajetória pelas artes do Brasil. Pronta para voar intensamente, a nave pousaria em São Paulo para uma única noite depois de passar por Salvador, Goiânia, Rio de Janeiro e outras cidades. Para que o evento se tornasse algo extremamente forte, expressivo e simbólico, o setlist de Estratosférica contou com uma entrada triunfal: a já antológica "Sem Medo Nem Esperança", composta por Arthur Nogueira e Antonio Cicero ("Não sou mais tola / Não mais me queixo / Não tenho medo / Nem esperança // Nada do que fiz / Por mais feliz / Está à altura do que há por fazer"...), se funde com o lendário rock "Mal Secreto" (Jards Macalé & Waly Salomão), já cantado por Gal durante a inesquecível temporada de FA-TAL: Gal a Todo Vapor ("Não choro / Meu segredo é que sou / Rapaz esforçado / Fico parado, calado, quieto / Não corro / Não choro / Não converso / Massacro meu medo / Mascaro minha dor / Já sei sofrer"). Minha surpresa ao ver nos vídeos gentilmente compartilhados pelos fãs de Gracinha pelo YouTube e pelo Facebook que nossa musa estava em uma excelente forma e deixando muita popstar a ver navios.


A nave musical capitaneada por Gal, Guilherme Monteiro (guitarra), Pupillo (bateria e direção musical), Fábio Sá (baixo) e Maurício Fleury (teclados) não perde altitude com a presença de peso de "Jabitacá" (Júnio Barreto, Lirinha & Bactéria), "Não Identificado" (Caetano Veloso) e "Namorinho de Portão" (Tom Zé). Já as inéditas "Ecstasy" (João Donato & Thalma de Freitas) e "Casca" (Alberto Continentino & Jonas Sá) conferem arrojo e modernidade para o repertório de uma das cantoras mais modernas do país. Antes do número seguinte, a pungente "Dez Anjos" (Milton Nascimento & Criolo), problemas de som da guitarra de Guilherme obrigam a bela Gracinha a interromper o espetáculo, enquanto os técnicos resolviam o problema. O público, ao invés de ser presenteado com um típico e autêntico piti de uma grande estrela da canção, foi presenteado com (sim, acredite!) uma PIADA contada por Gal Costa. O talento de piadista da filha de D. Mariah está longe de ser o mesmo que ela possui para o canto, entretanto a intenção em suavizar um momento tão tenso em uma apresentação ao vivo contando um fato tão tosco e pitoresco foi de uma simplicidade tão grande que rendeu ainda mais a minha admiração.

O roteiro do show ainda nos trouxe surpresas regadas a canções inéditas na voz de Gal e lados A e B que foram excelentemente repaginados para a versão ao vivo de Estratosférica. O resgate de canções de discos menos clássicos como "Cabelo" (Arnaldo Antunes & Jorge Benjor) e "Arara" (Lulu Santos) foram surpreendentes até para os fãs mais radicais do trabalho de Gracinha. A inclusão de "Cartão Postal" e de "Os Alquimistas estão chegando os Alquimistas", duas das faixas mais belas dos discos mais importante de Rita Lee e Jorge Benjor - Fruto Proibido (1975) e A Tábua de Esmeralda (1974) - no setlist nos deu a impressão de que estas canções sempre fizeram parte do repertório mais clássico de uma das cantoras mais importantes do Brasil. Já a presença da infinitamente tristonha "Três da Madrugada" (Torquato Neto & Carlos Pinto) e da singela "Sim, Foi Você" (Caetano Veloso) renderam os momentos mais poéticos da apresentação. Por fim, a sequência que une as releituras bluesy com sotaque eletrônico de "Como 2 e 2" (Caetano Veloso) e "Pérola Negra" (Luiz Melodia) é arrebatadora ao ponto de deixar o público com a respiração entrecortada.

Quando damos por conta de que o show chegava ao fim, mais de noventa minutos já tinham se passado sem que a gente desse por conta de tal fenômeno. Gal e seus navegantes estratosféricos saíam para detrás do palco e já preparavam a nave para que ela decolasse novamente. A bela setentona retornou ao palco e cantou "Meu Nome é Gal" (Roberto Carlos & Erasmo Carlos), a canção que se tornou em sua marca registrada definitiva há mais de quatro décadas. A turma que fazia a cabeça de Gracinha em 2015 ainda possui alguns nomes davam o tom em 1969 - Caetano, Gil, Jorge Benjor, Tom Zé, Roberto, Erasmo e alguns outros nomes ainda estão por lá, no entanto a nave musical de Gal Costa pousou por outras paragens, tais quais as de Milton Nascimento, João Donato, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães, Guilherme Monteiro, Pupillo e alguns outros... Tal qual a Gracinha recém-egressa da Bossa Nova é que tinha caído de cabeça no movimento tropicalista, a Gal Costa recém-chegada ao clube dos setentões ilustres da música brasileira ainda possui a crença na importância do amor para que as coisas da vida lhe fizessem sentido. O tal "rapaz" que ela procurava para corresponder o seu amor anos atrás foi encontrado. Ele lhe ama incondicionalmente há mais de quatro décadas: seu nome é público. Em alguns momentos, o dito cujo pode não possuir a "cultura" necessária para compreender os meandros e sutilezas de uma artista, mas nunca duvidou do sentimento e da importância da filha de D. Mariah para as artes do planeta.



E, enfim, a nave musical de Gal Costa voou com destino a outra galáxia para animar outros terráqueos que ainda se encantarão com o seu canto límpido e cristalino. Apesar de termos sentido falta de outras canções no setlist ("Vaca Profana" e "Átimo de Som", por exemplo) o show Estratosférica foi um evento notável e digno para que não possamos esquecer que Gracinha ainda é uma das cantoras mais importantes do Brasil. E, se depender da vitalidade que temos visto pelos palcos afora, teremos muito o que dizer acerca da arte de Maria da Graça Costa Penna Burgos... para a plena alegria dos amantes da boa música!


LEIA MAIS SOBRE O CD ESTRATOSFÉRICA NO PEQUENOS CLÁSSICOS PERDIDOS:


17 de novembro de 2015

TROVA # 58

O CÉU DOS MEUS SONS
(algumas palavrinhas sobre nossas experiências musicais: do LP ao streaming)



Para Márcia Rodrigues de Souza,
uma leitora devota e apaixonada da Arte da Crônica 
Para Neil Young,
com todo o meu carinho, pelos seus 70 anos de vida

"O caminho do céu 
No caminho do som 
O caminho do céu é 
No caminho do som 
O caminho do céu 
No caminho do som
O caminho do céu é 
No caminho do som 

(Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor) 
Voar, voar 
(Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor) 
Há uma alma na asa no ar 
(Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor) 
Cantar, cantar 
(Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor) 
Há uma asa na alma no ar 
(Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor) 

(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
 Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor 
Me ensina a cantar, me ensina a voar, me ensina a cantar, amor 
Me ensina a voar, me ensina a cantar, me ensina a voar, amor 

O caminho do céu 
No caminho do som 
O caminho do céu é 
No caminho do som 

(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
(Quem foi que disse que a mulher não voa?) 
Voar, voar 
Há uma alma na asa no ar 
Cantar, cantar 
Há uma asa na alma no ar
Me ensina a cantar, amor

O caminho do céu, o caminho do céu 
No caminho do som, no caminho do som 
O caminho do céu é 
No caminho do som"
(Péricles Cavalcanti - "O Céu & O Som" - 
canção gravada por Gal Costa em seu álbum Cantar, de 1974)


É muito comum dizer que nossas memórias são musicais. Posso precisar cada momento da minha vida com o disco que eu ouvia na época, relacionar com o aparelho de som que estava disponível para os meus ouvidos naquele tempo e por aí vai. Minha relação com versos e sons sempre foi intensificada pelas mais diversas formas de acesso à música: comecei a amar a música loucamente através de uma velha fita cassete gravada da saudosa Rádio Cidade do Rio de Janeiro que reproduzia os acordes de "Sweet Child O'Mine"; passei rapidamente pelo final da era dos Long Plays na década de 1990 quando ganhei um de presente de aniversário aos 12 anos de idade; enlouqueci de vez aos 13 quando um CD de Rod Stewart virou minha cabeça de tal jeito e me fez o colecionador insano de discos no qual me transformei.


Li um texto de Zélia Duncan certa feita no qual ela descreve suas paixões musicais e ela comentou sobre a importância dos encartes dos vinis e dos CDs para um ouvinte atento de música popular. Como bom curioso que sempre fui, eu sempre me interessei em saber quem eram os autores das canções, os músicos e produtores por trás dos clássicos, os responsáveis por trás dos astros e das estrelas da canção. Além de tudo, não podemos deixar de lado a importância do aspecto visual marcante da capa de um LP: como ignorar Simone seminua vestindo apenas um jeans azul em cima de uma cama com lençóis de cetim branco? Como esquecer do rosto angelical (e um tanto perturbador) de Barry Manilow em roupas brancas com aquele colar de pianista em ouro 24k no quarto de meu finado Tio Jorginho no antigo apartamento dos meus avós em Laranjeiras? Como não nos lembrarmos da garçonete com cara de louca servindo o café da manhã do Supertramp na capa e na contracapa de Breakfast in America? Ou como deixar passar por nossos olhos a imagem sensualíssima de Ney Matogrosso quase nu nadando pelas águas do pantanal mato-grossense? E o que podemos dizer da capa impactante do primeiro disco do Secos & Molhados, que chega a ser praticamente surrealista? Ah, e não podemos nos esquecer de Gal e a sua tanga lendária em Índia ou de Bethânia e o seu antológico arco de conchinhas que coroava a sua cabeça na imagem que ilustra a capa de Pássaro Proibido... 

Ouvir música tornou-se um ritual sagrado para mim: o ato de permitir que os versos e sons de uma fita K7, um LP ou CD adentrassem o ambiente sem pedir licença tal qual a Irene do Manuel Bandeira sempre foi natural para mim. De preferência com um volume bem alto, para que eu pudesse escutar tudo enquanto estivesse fazendo outra coisa - estudando, lavando a louça, fazendo a barba, tomando banho, trabalhando em casa ou qualquer atividade profissional corriqueira. A casa de meu avô Adhemar na Ilha do Governador era um sonho para qualquer amante da boa música e confesso que foi lá onde praticamente aprendi a cultivar este ato. Lá havia um quarto de música onde poderíamos encontrar desde os discos de orquestra de Tommy Dorsey ou clássicos de Al Jolson e Willie Nelson até os discos de MPB e música romântica de minha avó Magaly - leia-se: da fina flor da MPB de Chico Buarque à breguice suprema do romantismo de Julio Iglesias! Como a casa era grande, eles viviam sozinhos e sempre havia os infinitos afazeres do dia-a-dia, era possível escutar o que eles estavam ouvindo da garagem de casa, o que eu achava ótimo, pois era um ambiente oposto à claustrofobia de dois quartos, sala, cozinha e banheiro onde eu vivi por anos e anos... Foi daquela casa que veio a minha primeira lição musical: se você realmente quer ouvir música, não pode ser feito em um volume baixo!


Para que a experiência musical ocorra de uma forma bacana, é preciso ter uma aparelhagem de som potente e que faça com que os acordes possam se propagar pelos cantos da casa como pássaros recém-libertos de gaiolas. Lembro de duas anedotas do universo da música encantadoras e impossíveis de serem ignoradas por aqui: a primeira é do Sr. Antônio Matogrosso Pereira, um militar de altíssima patente da Aeronáutica e pai de Ney Matogrosso, um dos artistas mais controversos e revolucionários da música brasileira. Quando Ney lançou seu primeiro disco e show solo (Água do Céu-Pássaro / Homem de Neanderthal), o fascínio do Sr. Matogrosso pela arte do filho famoso era tamanho que ele não admitia que ninguém ouvisse o LP em volume baixo para que ele se remetesse ao som ensurdecedor que ele tinha ouvido no teatro. 


A outra anedota é de Barbra Streisand, notoriamente conhecida pelo fato de não ouvir música em casa ou em praticamente lugar nenhum a não ser o estúdio de gravação. No início da década de 1970, Babs deixava de ser uma cantora com um repertório baseado exclusivamente em um repertório de musicais graças aos esforços do lendário produtor Richard Perry, que produziu um de seus melhores títulos de toda a sua discografia – Stoney End (1971). Para que houvesse tamanha modernização do som de Streisand, a Diva precisava nada mais, nada menos do que uma aparelhagem de som que tocasse os discos mais influentes da época. Em uma noite remota, Perry recebe uma ligação de Barbra pedindo que ele a ajudasse com a fiação do som estéreo desconectado e que a musa simplesmente não saberia o que fazer... Músicos que apreciam o prazer de ouvir música ainda são de uma enorme diferença no meio musical...


A experiência musical de qualidade pode ser qualquer coisa, menos barata. É cara, requer investimento em LPs, em CDs, em edições especiais dos artistas que a gente mais gosta e admira. Além disto, precisamos daquelas estantes de madeiras elegantes e suntuosas que tenham a capacidade de armazenar os nossos tesouros musicais mais valiosos - sonhar não custa nada, não é verdade? Não existe nada no mundo que me deixa com mais inveja do que alguém que tira uma foto na frente de um belo móvel com coleções e mais coleções de LPs e CDs devidamente enfileirados de acordo com o afeto musical do colecionador. Porém, quando pensamos nas vicissitudes que regem o cotidiano, chegamos à infeliz e nada romântica conclusão de que existe um problema crônico de espaço físico para o colecionador de música: como muitos de nós não somos ricos no sentido de pertencer às elites econômicas do Brasil, sempre estamos às voltas com o dilema do armazenamento. Eu, por exemplo, por ter um horror absoluto de perder meus CDs, cheguei à obsessiva tarefa de fazer backups dos arquivos em MP3 assim que eu comprava o disco na loja e chegava em casa.

VINIL em frente ao aparelho de som da família, em 1991.

Um fato que ainda me surpreende em 2015 é justamente este revival da audição de Long Plays, algo que eu pensei que jamais acontecesse depois do surgimento do Compact Disc, do Napster e do MP3 e dos recentes serviços de streaming! Ironicamente, nunca se ouviram tantos vinis como na primeira década de 2010: pesquisas feitas no primeiro semestre de 2015 apontam que os norte-americanos consumiram mais LPs do que assistiram vídeos no YouTube ou no Vevo, por exemplo. Vitrolas portáteis, antes objetos de máxima expressão do que se entende por vintage, hoje são vendidas por pouco mais de 200 ou 300 reais. Já não podemos dizer a mesma coisa a respeito do preço dos LPs novinhos em folha: alguns chegam a custar cinco vezes mais do que um CD em período de lançamento, o que me deixa à margem de toda essa festança retrô que habita as casas de amigos, conhecidos e desafetos que cultivamos por aí. 120 reais em uma edição de Amy Winehouse em vinil? 100 reais por um LP do Secos & Molhados que eu já tenho em casa?! Não, obrigado! / No, thanks!


Uma das novidades mais interessantes que surgiram na relação entre o público consumidor de música e a arte que ainda se cultiva através de versos e sons, na minha modestíssima opinião, está nos serviços de streaming. Pagar por um serviço pelo qual você pode ter acesso a uma infinidade de títulos (além de raridades!) por um preço relativamente razoável é algo bastante prático e confortável para o pagante. É evidente que ouvir música pelo tablet ou pelo celular não é tão prazeroso quanto estar com o seu aparelho de som ligado; no entanto, a praticidade de podermos escutar o que quisermos a partir do simples toque do dedo na tela do smartphone vale qualquer desvantagem. Além disto, não é mais preciso sair fazendo upload de arquivos de musicas no seu celular de forma insana (além de ser chato, o iTunes oferece tudo, menos praticidade!), não há mais a necessidade de carregarmos uma penca de discos para o carro (a não ser se você tem bebês de colo que só ouvem discos bem específicos e raros) e tem o fator segurança em primeiro lugar: certa feita, levaram vários de nossos CDs mais queridos na triste ocasião de um furto ocorrido dentro do carro de minha mãe, na qual levaram tudo de valor que havia dentro do veículo.


Um dos fatores negativos que o streaming apresenta, na minha concepção, é a falta de vontade do ouvinte de ser um pesquisador nato de música ou, como diríamos vulgarmente, um "rato de livrarias, sebos e (das ainda sobreviventes) lojas de discos". Na medida em que os álbuns se encontram livremente dispostos em cada telefone celular, um pesquisador de música em potencial deixa de surgir no pedaço. Por outro lado, é um serviço muitíssimo mais econômico: onde eu encontraria a versão Deluxe de All Things Must Pass, primeiro (e monumental) álbum do ex-Beatle George Harrison, por menos de 50 reais? E a gravação antológica de "The In Crowd", do Ramsey Lewis Trio, que tocava incessantemente durante o Irrational Man, de Woody Allen? Ou um álbum raríssimo como o belo disco ao vivo que Aretha Franklin gravou em Paris em 1968 sem ter que revirar as lojas virtuais de cabeça para baixo? Ou então a discografia praticamente completa de Nina Simone, que custaria os olhos da cara em qualquer loja decente do ramo?!


Evidentemente, existem pessoas que não veem o streaming como algo realmente benéfico para a sociedade. O U2, por exemplo, alega que vários desses serviços não pagam direitos autorais adequadamente para os músicos. Neil Young, um eterno purista em termos de qualidade de som, proibiu a fina flor de seu catálogo de estar disponível no Spotify, na Apple Music e na Deezer e outros sem antes decretar com um pingo de dó: "streaming has ended for me". Depois do anúncio de Neil, tratei de sair correndo para o celular e redescobrir algumas pérolas daquele baú de pepitas que ele nos deu. Fui (re)ouvir Tonight's The Night e fiquei tão apaixonado por aquele disco que resolvi escrever sobre ele...



A boa música que vem do fone de ouvido, seja do celular, seja das caixas de som sempre tem algo a nos dizer. Ela pode nos levar para um paraíso repleto de versos e sons e nos fazer esquecer da mediocridade infeliz, tacanha e arrasadora que assola o cotidiano de cada um. O século XXI e as suas mais altas tecnologias nos renderam opções que nos permitem exercer a liberdade de ouvirmos o que quisermos sem termos que pensar ou pesquisar muito, o que, nestes tempos de modernidade líquida (pegando emprestado um termo de Zygmunt Bauman), não deixa de ser algo completamente ruim...

Leia mais sobre Tonight's the Night, de Neil Young, no Pequenos Clássicos Perdidos:

8 de novembro de 2015

TROVA # 57

ENTRE LUZES & SOMBRAS
Uma carta-crônica de amor para 
os 72 anos de Joni Mitchell


“Every picture has its shadows
And it has some source of light
Blindness blindness and sight
The perils of benefactors
The blessings of parasites
Blindness blindness and sight
Threatened by all things
Devil of cruelty
Drawn to all things
Devil of delight
Mythical devil of the ever-present laws
Governing blindness blindness and sight

Suntans in reservation dining rooms
Pale miners in their lantern rays
Night night and day
Hostage smile on presidents
Freedom scribbled in the subway
It's like night night and day
Threatened by all things
God of cruelty
Drawn to all things
God of delight
Mythical god of the everlasting laws
Governing day day and night

Critics of all expression
Judges in black and white
Saying it's wrong saying it's right
Compelled by prescribed standards
Or some ideals we fight
For wrong wrong and right
Threatened by all things
Man of cruelty-mark of Cain
Drawn to all things
Man of delight-born again born again
Man of the laws the ever-broken laws
Governing wrong wrong and right
Governing wrong wrong and right
Wrong and right”


(Joni Mitchell - "Shadows and Light" - canção que encerra seu álbum de 1975, The Hissing of Summer Lawns, e dá nome ao seu segundo álbum ao vivo, de 1980.)

Dear Joni,

Mais um 7 de novembro chegou para ti e eu não consegui te escrever com a antecedência que eu gostaria. Tal qual o poema escrito por um poeta brasileiro a Mário Andrade há exatos 70 anos atrás, queria te escrever uma crônica tão bela e digna de suspiros, que te deixaria tão estupefata quanto eu fico ao ouvir a sua música. Porém, há dois problemas bem sérios aí: 1) crônica não deve ser um gênero literário tão benquisto aí pelos lados do hemisfério norte, ainda mais em Português; 2) quisera eu escrever tão bem assim como o Carlos Drummond de Andrade.


2015 tem sido um ano bem difícil para ti e para os que amam o legado de Joni Mitchell. Estávamos felizes em te ver dando entrevistas aqui e ali falando sobre sua música, fazendo fotos históricas para a coleção de Yves Saint-Laurent, quando chegou a notícia de que você fora hospitalizada e estaria inconsciente. Tempos depois, soubemos que se tratava de um aneurisma e de que era bem grave. Passado o susto, fostes reconduzida à merecida paz de seu lar driblando toda a imprensa e os paparazzi, enquanto os fãs rezavam por sua rápida e plena recuperação. Aparentemente tem dado certo: as poucas notícias que surgem por aqui, ali e acolá apontam que a batalha pela vida está longe de acabar.


Como você desceu aos infernos devido a uma traição de seu cérebro privilegiado, My Beloved Joni, esta carta-crônica de amor também precisava ser feita "da impureza do minuto" não para celebrar o seu legado diante de seu corpo sem vida, mas diante de seus olhos ainda abertos (mesmo que eles não consigam ler em Português), para que você não se esqueça do quanto que a sua música é significativa para muitos de nós que ainda acreditamos em opções inteligentes de "entretenimento musical", digamos assim... Dentre os poucos e fiéis leitores que temos por aqui, talvez tenhamos ameaças de benfeitores ou bênçãos de parasitas (tal qual você mesma nos diz desde 1975), ou simplesmente nada disso, sempre haverá um ou outro que acha a sua arte tão intrigante e significativa quanto eu. E é isso o que importa.


Uma das tarefas mais desafiadoras e caras que eu já tive enquanto colecionador de discos e amante de música foi conseguir reunir sua discografia de estúdio completa. Primeiro porque aqui no Brasil, qualidade em termos musicais é algo que está bem restrito. Segundo porque CDs importados são caríssimos! O último item que faltava para completar minha coleção era o relativamente obscuro The Hissing of Summer Lawns, achado depois de muitíssimo custo. Minhas cópias de Hejira, Shadows and Light, Ladies of the Canyon e Miles of Aisles vieram de países diferentes e percorreram milhares e milhares de milhas nas minhas malas para estarem aqui comigo. Guardo minhas edições de Both Sides, Now! e Travelogue com o carinho típico que decicamos às joias preciosas não só por terem sido um absurdo de caro, mas pelo fato de que são alguns dos produtos (leia-se: resultado final, não no sentido da mercadoria!) mais belos que já tive em mãos... A justificativa para isso? Amor pela sua música!


Temos feito alguns esforços para divulgar sua obra para além de Blue, álbum que muitos consideram como a sua obra-prima. Já escrevi dois textos sobre seus discos em colaboração especial para o Pequenos Clássicos Perdidos, o que me deu uma enorme satisfação. Primeiro, porque a gente pode escrever sobre o que mais gostamos; segundo, porque podemos abordar discos mais obscuros e sem o menor tipo de restrição, pois o editor do Blog é, além do cara mais legal e antenado do planeta, uma pessoa democrática e aberta para todas as tendências da boa música; terceiro motivo: através das pesquisas para cada disco que escrevemos, descobrimos um pouco da inquietude de uma das artistas mais provocantes do século XX.


Que em meio a esta infinidade de sombras, Joni, você tenha encontrado a luz e a paz necessária para aproveitar o sossego de sua aposentadoria dos discos e dos palcos. Meu único lamento é de não ter nascido uns trinta anos antes para poder ter ido a um show seu. Como eu nasci em 1981, peguei o bonde bem adiantado. Aproveitei a chance e mandei importar o DVD do Shadows and Light diretamente dos States para o Brasil para poder te ver no auge da forma, da beleza e da criatividade. Deu um trabalhão para poder assistir o vídeo do show, mas consegui depois de muita insistência... A foto não é das melhores, mas foi tirada com carinho!


E que você possa ter, My Dearest Joni Mitchell, razões para cantar e (quem sabe?) compor. O mundo sente falta de mulheres sensíveis, sofisticadas e inteligentes como você.

Um beijo do seu fã brasileiro
Vinil

Leia os textos escritos para o Blog Pequenos Clássicos Perdidos:

Court & Spark (1974) –