28 de maio de 2015

TROVA # 48

UMA FLOR QUE CANTA E DANÇA


Toda sequência tem uma rotina
Toda rotina te causa estrago
Todo estrago merece um conserto
Todo conserto te modifica.
(Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz)






Certas flores, quando entram em contato com a brisa do dia, dançam com a naturalidade com o vento. A flor que será o tema do nosso texto de hoje não apenas consegue dançar com as brisas, como também possui o talento irresistível do canto. Tulipa Ruiz é uma cantora de muita sorte: dona de uma voz invejável, com um timbre de alcance insólito. Além disto, é dotada de outros talentos que vão além do binômio cantora/compositora – é uma desenhista de mão cheia, para não citar outros exemplos.


O som de Tulipa chegou aqui em casa logo após o lançamento de seu primeiro CD, Efêmera (2010), que rendeu muito entusiasmo por parte das pessoas. Dois anos depois, o mundo inteiro se apaixonou por Tudo Tanto (2012), que fez de Tulipa Ruiz uma verdadeira estrela da canção dos anos 2010. Confesso que não me entusiasmei muito com o primeiro disco da flor cantante: cheguei até a receber um convite para ver uma apresentação da turnê de Efêmera no SESC Belenzinho, teatro que fica relativamente perto aqui de casa; no entanto, por motivos muito menos nobres, recusei um convite para ir ao show e ainda perdi a possibilidade de conseguir um autógrafo e de dar dois beijinhos na bela flor cantante.



Resolvi matar a curiosidade e fui ver Tulipa Ruiz ao vivo em um show da Tudo Tanto Tour no SESC Santana e confesso que não dei o devido valor para a jovem cantora que comandou um show excelente! À frente de uma banda afiadíssima (mano Gustavo Ruiz na guitarra e na produção musical, Luiz Chagas – seu pai e ex-escudeiro de Itamar Assumpção na lendária Isca de Polícia – na outra guitarra, Marcio Arantes no baixo e Caio Lopes na bateria), Tulipa se revelou como uma cantora extremamente madura e inteligente em suas interpretações ao vivo. Cumprimentei-a rapidamente após a apresentação, pegamos seu autografo (não me lembro se tiramos foto), mas ainda faltava algo maior para que eu fosse finalmente seduzido pela sua arte.



Minha paixão por Tulipa Ruiz se deu de vez com o lançamento de Dancê (2015), seu terceiro CD. Primeiramente porque ela teve peito o suficiente para dar um nome incomum para o seu disco. Segundo porque ela se utilizou de uma tática semelhante à de David Bowie em 1983: ao fazer todo mundo dançar, produziu canções de primeiríssima qualidade. Sua parceria musical com Gustavo Ruiz rendeu canções assumidamente Pop, porém inteligentes, com groove e com muito conteúdo.




E este conteúdo foi azeitado por músicos de primeiríssima qualidade: além da banda que já acompanha Tulipa, a presença de convidados especiais fizeram de Dancê um deleite para os amantes da boa música. João Donato canta e toca o piano Fender Rhodes em “Tafetá”, o grupo Metá Metá (que conta com os vocais inconfundíveis de Juçara Marçal) fizeram de “Algo Maior” um dos números mais marcantes do disco, Kassin empresta seus dotes de instrumentista e produtor em “Físico” e Lanny Gordin toca sua lendária guitarra em “Expirou”, nos ofertando um solo belíssimo.
  

Dancê leva Tulipa Ruiz para um outro patamar em relação às cantoras de sua geração. Suas canções inteligentes, repletas de influências da tradição da melhor MPB (quem conhece bem o trabalho de Gal Costa e acompanha a bela flor cantante sabe que Gracinha é uma de suas maiores influências musicais), fazem com que seus três discos sejam exemplos de uma bela obra em progresso. Melhor de tudo, é um disco que não apenas te faz dançar, mas que também te obriga a pensar e a ver algumas coisas de uma maneira diferente. Por isso, de acordo com a filosofia pregada por Tulipa, é dançando que se resolve os problemas desta vida!


P.S. # 1: Escrevi um texto sobre o Dancê para o Pequenos Clássicos Perdidos, do nosso querido mestre e guru Fábio Bridges. Para ler o texto, é só conferir o link a seguir: http://pequenosclassicosperdidos.com.br/2015/05/26/tulipa-ruiz-dance-2015/


P.S. # 2: Um mea culpa se faz necessário... Tive a terceira  oportunidade de ver Tulipa Ruiz cantando ao vivo em São Paulo foi na estréia da Dancê Tour, nos dias 22, 23 e 24/05/2015 no Teatro Paulo Autran, em pleno SESC Pinheiros (SP). Por motivos de força maior, tivemos que recusar os convites para uma das noites (que tínhamos conseguido quase que na base do tapa), para minha total desolação. Enquanto Tulipa e sua trupe não voltam para cá com a missão de fazer Sampa dançar, vou bailando ao som do CD mesmo... Este link dá uma prévia bem interessante do que foi a estréia do bailão da Tulipa: http://www.noize.com.br/um-novo-patamar-para-tulipa-ruiz


ALGUNS VERSOS QUE FAZEM DE DANCÊ UM CONVITE PARA O SEU PENSAMENTO:

Começou
Agora você vai tomar conta de si

Das tuas minhocas, caraminholas,
das encucações, dos teus pepinos
Das pérolas, das abobrinhas,
dos abacaxis, dos nós, dos faniquitos.
Prumo
Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz

Cada um tem seu formato
Apertado, colado, justo
Largo, folgado, amplo, vasto
Cheio, graúdo, forte, farto
Esguio, fino, compacto.

Visto GG, você P
Você P, eu GG
Visto GG, você P
Você P, eu GG
Proporcional
 Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz

Fino
Só você
Elegante
Sabe bem
Muito trato
Combinar
Na lapela
Tem o dom
Tem um padrão
Já que tem
Desenhado
Sabe usar
Tem casaco
Dégradé
Engomado
Tafetá
Tafetá
Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz – Part. Esp.: João Donato

Apaga, filtra, manera
Massageia o esqueleto
A cuca, a cabeça, a traqueia
Cotovelo do esqueleto
A lombriga, clavícula, pé e a costela do esqueleto

Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir
Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir

Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
E entra no estado zen.
Elixir
Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz

Trato azedume, mau-olhado, ‘quebrante’, vício
Trato treta de trabalho
Trabalho com amarração
Resolvo o seu problema com baralho, com pôquer, bingo
Pra bituca de cigarro eu tenho a solução
Trago seu amor de volta se me fizer uma visita
A gente faz uma combinação, você acerta e acredita
No duro, dá certo
Nunca houve reclame.
Reclame
Tulipa Ruiz, Gustavo Ruiz, Caio Lopes, Marcio Arantes & Luiz Chagas

Sinto falta de um tempo que ouvi dos amigos
Tava escrito num livro
Tocou numa vitrola
Foi dançado, cantado, recitado, falado
Publicado, sentido, decupado, contado
Mas eu não tava ali

Quando é que a saudade daquilo que a gente não viveu passa?
Se passa, parece que já foi, mas quando você vê volta
Volta porque tem a sua cara, tem a ver com a sua história.
Expirou
 Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz – Part. Esp.: Lanny Gordin

Todo motivo te leva a querer
Todo querer te faz ter vontade
Toda vontade te faz ter impulso
Todo impulso sempre me estimula
Jogo do Contente
Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz

Era pra ficar no chão
Deu pé, decolou
Era pra ter sido em vão
Como é que durou?
Era pra ficar ali e por aí caminhou

Era pra ser menos sério
Mais cara-de-pau
Era para ser só nuvem e precipitou
Podia não ter dado em nada
Então como é que virou?
Virou
Tulipa Ruiz, Felipe Cordeiro, Gustavo Ruiz, Manoel Cordeiro & Luiz Chagas – Part. Esp.: Felipe Cordeiro e Manoel Cordeiro

Tudo que eu gosto tá em você
É puramente físico
(...)

O formato do nariz
Osso pontudo do pescoço
Lóbulo da orelha
Desenho da sobrancelha
Pintas pela pele
Pelos, tornozelo
Dedo, nuca, calcanhar, cabelo
Da boca pra fora
Fora de fora pra dentro
(...)
Você veio assim sem defeito.
Físico
Tulipa Ruiz & Gustavo Ruiz – Part. Esp.: Kassin

Vai ter tempo de sobra
Mesmo sendo velho, sabe sobre tudo
Sempre pra valer
Volta e meia, cê volta
Nunca é tarde, pelas tantas recomeça
Vence em convencer
Não tem fim, nem começo
O agora é agora, voa
Já passou, olha, passou
E fica também na sua memória
Sempre você
O tempo e você.
Old Boy
Tulipa Ruiz

Tá pra nascer algo maior
que vá tirar do lugar as coisas que cismam em não andar
Tá pra nascer algo maior
que tudo o que você já viu, leu, sentiu, soube ou ouviu
Não sinta medo nem dó de ser feliz e se soltar,
de saber bem o que lhe convém
Tá pra nascer quem viva só,
pois de me, myself and I já basta eu, você e nada mais.
Algo Maior
Tulipa Ruiz, Gustavo Ruiz & Luiz Chagas – Part. Esp.: Metá Metá





18 de maio de 2015

TROVA # 47

SÃO PAULO – HAVANA

 

"Mamãe, eu quero ir a Cuba

Quero ver a vida lá

La sueño una perla encendida

Sobre la marMamãe eu quero amar

A ilha de xangô e de yemanjá

Yorubá igual a bahia

Desde Célia Cruz

Cuando eu era un niño de jesus

E a revolução

Que também tocou meu coração

Cuba seja aqui

Essa ouvi dos lábios de peti

Desde o cha-cha-cha

Mamãe eu quero ir a Cuba

E quero voltar"

(Caetano Veloso - "Quero ir a Cuba")



Ao fazermos uma pesquisa bem rápida pela Internet em maio de 2015, descobrimos que uma passagem de voo saindo de São Paulo para Havana custaria cerca de 2000 reais. Isto porque (ainda?!) não existem voos diretos para a ilha de Che e Fidel. Uma das agruras de ser professor e aspirante a Doutorando é ter a constante impossibilidade de utilizar o cartão de crédito e fazer as malas em meados de maio, por isso, a única alternativa que nos sobra é quando artistas cubanos brindam o Brasil com a sua presença, o seu talento, seus sopros e a sua irresistível batucada.

Desde que li a biografia de Carmen Miranda tão bem escrita pelo Master Ruy Castro, na qual ele descreve como as lendárias orquestras cubanas seduziram os Estados Unidos, fiquei com vontade de conhecer Havana. Meu passaporte estava garantido para a noite do dia 16 de Maio de 2015, quando a Buena Vista Social Club, um dos grupos cubanos mais importantes do mundo, veio para uma turnê pelo Brasil. 


Para ver e ouvir ao vivo a orquestra que revelou para o planeta os talentos de Ibrahim Ferrer, Compay Segundo, Rubén González, Pío Leiva e a incomparável Omara Portuondo tocar boleros, salsas, tumbas e guajiras ao vivo, fizemos uma comemoração um tanto incomum para a tarde de sábado, enquanto esperávamos o show: a partir de uma postagem no Facebook, dissemos (jocosamente, em tom de pura brincadeira) de que iríamos para Cuba na noite daquele sábado. Só não mencionamos que, na verdade, foi La Isla Bonita que veio a nosotros.

A viagem para a Cuba levaria algumas horas, pois são vários os km que separam a Zona Leste do HSBC Brasil, local da apresentação da Buena Vista Social Club. O melhor de tudo era que não teríamos que enfrentar a chatice insuportável de terminais de embarque e desembarque de aeroportos internacionais, alfandegários insuportáveis, filas intermináveis, tampouco o sobe e desce insuportável dos voos (inter)nacionais - os que me conhecem um pouquinho sabem que eu detesto viagens de avião. No entanto, tínhamos pela frente a odisseia do trânsito de São Paulo, com suas marginais e suas pontes estaiadas, flanelinhas ousados e estacionamentos inflacionados, além do porre insuportável do público e do staff das casas de shows, locais onde o público está muito mais a fim de beber, comer, conversar ou fazer qualquer outra coisa que não seja curtir a música e os garçons pululam à sua frente com lanternas e máquinas de cartão de crédito desesperados para que o cliente pague a conta antes de abandonar o recinto.

A chatice se esvai quase completamente quando as luzes se apagam e o pianista da Buena Vista Social Club adentra o palco e dá início a um solo virtuoso e arrepiante, digno de um Herbie Hancock, de Horace Silver ou de um Chucho Valdés. Logo depois, os demais músicos entram no palco e dão continuidade ao recital de quase duas horas de duração de muita batucada, sopros, romantismo e muita emoção. Alguns dos integrantes remanescentes do grupo que foi eternizado pelas lentes cinematográficas de Wim Wenders continuam na ativa, enquanto jovens músicos agregam o melhor de seus talentos para uma das melhores bandas do mundo.


O ápice do show é quando é anunciada a entrada de Omara Portuondo, belíssima e encantadora no alto de seus 84 anos de idade, cantando em tons agudos como pouquíssimas cantoras conseguiriam. Dotada de uma energia e de um carisma contagiantes, Dona Omara arrancou gritos e aplausos entusiasmadíssimos, dignos de uma Pop Star adolescente. Sua conclamação para que o público batesse palmas e cantasse junto com ela era tamanha, que, várias pessoas resolveram se levantar de seus assentos e dançar com seus pares ou sozinhos, embalados pelo som e pela batucada cubana.




Em menos de duas horas, São Paulo já era Havana, Havana já era São Paulo. Findo o show, tudo o que tínhamos que fazer era juntar o que restou de nossas energias, abandonar o sonho musical de romantismo e sons exuberantes e retornar às nossas rotinas de sons urbanos, com sabor de concreto.