17 de maio de 2021

TROVA # 166

“ASTRONAUTA DA SAUDADE”


 
 

Belezas são coisas acesas por dentro

Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento

(Jorge Mautner & Nelson Jacobina, 1974)



SAUDADE: palavra que traduz um sentimento agridoce de algo que já não temos mais conosco. Palavra muito difícil de ser traduzida para outros idiomas, bem difícil de explicação para quem não é nativo do idioma português. Dizem que a saudade é síndrome de quem vive no passado, enquanto a ansiedade é pavor do futuro e a depressão é o pânico do presente. Talvez faça sentido, porque sou alguém ansioso por natureza e já vivi episódios graves de depressão. E conheço várias pessoas que se encaixam nessa lógica.


Porém, não podemos nos esquecer jamais de que viver é um jogo muito mais complexo do que a lógica comum e é uma ação que requer, acima de tudo, CORAGEM. Coragem de se expor, coragem de tirar as palavras do pensamento e das conversas íntimas para leva-las para o papel e depois para o ciberespaço. Coragem de desafiar o senso comum imposto por um pensamento conservador e tacanho. Coragem de ser diferente em um contexto que exige que todo mundo seja e aja de maneira igual.


Apesar do que sugere o título do texto que você está lendo, estou longe de ser um entusiasta do que já passou. Guardo com carinho muitas lembranças de outrora, tenho outras memórias bem preservadas na gaveta do rancor. Tenho mais animação pelo futuro, considerando o que ele pode nos trazer de bom e não tão bom assim. Faço do meu presente a possibilidade de construir um futuro melhor para mim e para mais alguns. Escrevo tudo isso para dizer que não sinto uma ponta de saudade do passado que eu vivi, mas invejo profundamente o passado que eu não vivi. A juventude anárquica e desbundada dos anos 1960 e 1970 e muitos dos eventos político-culturais que foram promovidos para combater a caretice brasileira nossa de todo dia.

Caso queiram falar de mim e do que eu escrevo, digam apenas o seguinte: se o passado que me cabe e não me cabe mais são estrelas no espaço sideral, podem me chamar de “astronauta da saudade”, pois meus textos transitam por corpos celestes e resgatam as memórias boas que vivi e as lembranças que gostaria de ter tido. Caso queiram falar de mim e do que eu escrevo, digam também que sou um amigo da arte, da ciência e do conhecimento. Falo e escrevo sobre coisas “fora de moda”: “livros, discos, vídeos à mancheia” e outras coisinhas que o sujeito comum não gosta ou não aprecia mais. Sempre contra a corrente, contra o senso comum e a velha pasmaceira.


Cada texto que escrevo vai muito além do desejo de ser lido ou do mero instinto de me comunicar por meio de palavras para velhos conhecidos ou um leitor cujo rosto eu não conheço. Cada postagem em meu blog sempre foi uma maneira de procurara a beleza no presente com o auxílio da música. Em algumas ocasiões fui bem-sucedido, em outras nem tanto. No resumo de tudo, foi mantido o exercício da escrita como um ofício prazeroso e com a garantia de que erros e acertos estão devidamente registrados, apesar de levemente revisados.


Já que tornar público o que há de mais íntimo por parte do pensamento é o fato que está diante de seus olhos, aproveito para fazer um convite para você que chegou até aqui: ouça os textos, leia os discos e as canções que se encontram por aqui. O blog foi uma viagem e tanto. Quem sabe o livro seja também. Por isso, junte-se a mim e faça uma boa viagem pelas letras e sons que reuni aqui depois de tantos anos...

11 de maio de 2021

TROVA # 165

“LONGAS CARTAS PRA NINGUÉM”


Por que escrevemos?

Porque não podemos somente viver

(Patti Smith – Devoção)



         Do tempo em que escrevíamos cartas, as pessoas davam uma importância gigantesca a papel, caneta, envelope e selos para que notícias, confissões e juras de amor e de ódio pudessem ser transmitidas para o destinatário que fosse. Com a chegada da Internet, das redes sociais e dos smart phones, tamanho encantamento se desfez e as correspondências perderam a sua intensidade: o avanço das tecnologias provocou uma mudança fatal da relação dos humanos com as palavras e as longas correspondências tornaram-se mais um resquício do passado. Quase toda comunicação relacionada às correspondências se tornou restritamente técnico e objetivo, as confissões mais íntimas viraram “textões” ou foram comprimidas em meros 140 caracteres no Twitter.


        A escolha de um blog para dar conta dos pensamentos e memórias que me habitam poderiam ser as crônicas que eu sempre sonhei na coluna do jornal, no portal da Internet ou (quem sabe?) nas páginas de um livro. A escrita que fiz por anos a fio tem sido além de um diário sentimental ou de um journal de críticas e pensamentos avulsos: todos os textos que passaram por aqui são, de certa forma, cartas. Enquanto as palavras do ciberespaço, do jornal e do livro possuem um destinatário específico, certeiro, as minhas correspondências são “longas cartas pra ninguém”, ou melhor, quase ninguém.

        Em uma entrevista de fevereiro de 1977, Clarice Lispector comentou a respeito de um dos assuntos mais discutidos entre literatos: o ato de escrever. Ao ser indagada sobre sua rotina de trabalho, Clarice foi taxativa ao dizer que nunca tinha sido uma escritora profissional e que só se dedicava à Literatura quando queria. Sua afirmação desconcertou por completo seu entrevistador e o público, já que a autora de A Hora da Estrela e Laços de Família já tinha publicado vários romances, contos e textos na grande imprensa até então. Apesar de eu sempre ter nutrido um enorme amor pela escrita (queria ser escritor desde os sete anos de idade!), nunca consegui me sentir um profissional das letras por dois motivos: 1) o anonimato e o meu talento permanente para ser um anônimo; 2) o fato de ter uma profissão que exige tempo e dedicação. Não me satisfaço com o amadorismo, tampouco com o anonimato. Porém, escrever como alternativa foi a solução possível para que eu extravasasse tudo o que eu gostaria de ser, mas que a vida não me permite que eu seja por conta de compromissos e responsabilidades...


         Confessar uma série de coisas nas páginas do papel e pela Internet afora é uma tarefa incomum para alguém que age com a discrição do anonimato. Era uma maneira de compreender a natureza dos fatos e suas consequências. Era um jeito de expressar a pouca saudade que tenho do passado, a vontade intensa de viver o presente e a loucura insustentável de ter o futuro nas mãos. Ou talvez uma forma de esconder minha própria mediocridade e dar a ela alguma espécie de status. Ou nenhuma das respostas anteriores mesmo, afinal há perguntas para as quais não temos solução.


         No entanto, ainda tenho a breve esperança de que cada texto que escrevi para este blog ou para a coluna de jornal dos meus sonhos possa fazer sentido para alguém, afinal foram mais de 115 mil acessos em nove anos de atividade. Tal qual Brás Cubas, um dos personagens mais célebres da ficção de Machado de Assis, também não tive filhos e não transmiti (até então) a nenhuma criatura o legado de minha miséria. Todavia, deixo vários escritos para a posteridade, um livro publicado e a vontade imensa de vida dentro de mim, apesar da barbárie que se abateu no Brasil e pelo mundo a partir de 2020.


         Faz escuro, mas escrevo e também canto. O mundo pode fazer qualquer tipo de acusação contra mim, menos uma: eu sempre tive histórias para contar. E ainda terrei enquanto tiver um papel, uma caneta e um lápis nas mãos. Porque viver apenas não basta para mim: se eu puder viver tendo a possibilidade de escrever já é algo que me deixa mais feliz. E ser feliz em pleno século XXI é um dos maiores desafios que se apresentam para os seres humanos, especialmente para os que vivem no Brasil...

3 de maio de 2021

TROVA # 164

 

80 ANOS DE UMA LONGA ESTRADA

Roberto Carlos sempre soube aliar minha enorme admiração e o meu profundo desprezo



Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada

Do tempo que transforma todo amor, em quase nada

(Roberto Carlos & Erasmo Carlos, 1971)

 


 

Nunca amei e odiei e tanto um artista quanto Roberto Carlos. Amor e ódio são dois sentimentos comuns em pessoas que a gente admira, que a gente ama para que possamos, logo depois, desferir as piores pragas e juras de maldição. Mas não tem jeito: meu cérebro e meu coração sempre entram em conflito permanente quando o assunto é El Rey - apelido que eu dei para o intérprete de “Detalhes”.

 

Roberto Carlos surgiu na minha memória bem cedo: os especiais de TV veiculados pela Rede Globo desde meados dos anos 1970 eram obrigatórios lá em casa, um típico lar do subúrbio carioca. Isso sem mencionar as fitas cassete que meu pai ouvia no carro com os clássicos do Rei. Para uma criança / adolescente do subúrbio na década de 1990, Bob Charles não era o entretenimento mais irresistível do mundo. Enquanto meu pai cantava versos como “Daqui pra frente / Tudo vai ser diferente / Você tem que aprender a ser gente / O seu orgulho não vale nada (...)” de frente para a TV e revivia um clássico da sua juventude, tudo que me sobrava era a inevitável vontade de bocejar até não poder mais. 

 

Eu tinha 12 anos de idade quando Maria Bethânia (por quem já era apaixonado) lançou o seu já clássico disco As Canções que Você Fez pra Mim (1993). Graças àquele álbum, eu passei a ver o cantor que já tinha entoado quase tudo em matéria de música romântica com um pouco mais de respeito. Apesar de ainda achar que Roberto Carlos era sinônimo do que havia de mais antiquado e cafona. Apesar de Bethânia ter feito uma aparição ao lado de El Rey cantando “Fera Ferida” em dezembro daquele ano.

 


Foi no início dos anos 2000 que minha percepção sobre Roberto Carlos mudou de vez. Graças à descoberta da Tropicália e da deferência de Caetano e Gil pela turma da Jovem Guarda, eu passei a respeitar El Rey um pouquinho mais. Pouco tempo depois, descobri os seus discos lançados entre 1968 e 1983 - a sua fase mais romântica, adulta, com canções apaixonadas, confessionais, gravadas em estúdios no exterior. Foi inevitável: aos 20 e poucos anos eu ouvia as mesmas gravações que meu pai ouvia no carro em meados dos anos 1980 e me encantava com a qualidade de clássicos como “Detalhes”, “Proposta” e “Além do Horizonte”. Apesar desse repertório me trazer a memória do peru de natal que comíamos no final do ano e a lembrança das canções inevitáveis chatíssimas que viriam no pacote, passei a ouvir um pouco mais a obra de Roberto.

 

Porém, toda relação conflituosa tem os seus altos e baixos e 2007 foi o ano em que as minhas predileções por El Rey caíram por terra. Como reação ao lançamento da biografia Roberto Carlos em Detalhes, escrita pelo competentíssimo Paulo César de Araújo (professor, jornalista e acadêmico de primeiríssima linha), o Rei não hesitou duas vezes antes de ir aos tribunais para tentar retirar o livro de circulação. Motivo: “invasão de privacidade”. Roberto, um notório conservador (e apoiador da Ditadura, dizem as más línguas), não admitiu ver certas passagens de sua vida reveladas com tanta precisão. Paulo César, um fã confesso de Bob Charles, escreveu um texto respeitoso, honesto, de uma beleza singular. Uma declaração de amor em forma de livro. Mesmo assim, El Rey, do alto de sua ingratidão, não perdoou seu súdito; processou o autor, recolheu os livros e provavelmente os queimou. Afinal de contas, seus segredos, conquistas amorosas ou suas puxadas de tapete não poderiam ficar expostos diante do público conservador que sempre o apoiou. 

 

Quando Roberto Carlos se revelou um autoritário de primeira linha, fazendo inveja a Hitler (que queimou livros em praça pública), passei a nutrir um ódio mortal por Vossa Majestade. Por sorte, adquirimos uma cópia do livro de Paulo César de Araújo em janeiro de 2007, já prevendo que El Rey poderia mobilizar seu exército de advogados para impedir que os detalhes de sua intimidade fossem devidamente catalogados e analisados em uma biografia. Ao somar todas as taras e manias do astro que se tornaram públicas, eu passei a fazer da transmissão de seus especiais de TV uma oportunidade e tanto para exercitar um dos meus maiores talentos: o de maldizer. Já que Vossa Majestade está na pista com todos os seus TOCs, por que não tirar proveito disso? 


 

O início da carreira de Roberto Carlos, como se sabe, foi marcado por uma quantidade de portas fechadas e nãos de todos os tipos, já que ele sempre foi um cara humilde, suburbano e sem uma voz de arrebatar multidões como Cauby Peixoto ou Francisco Alves. Tentou fazer sucesso sempre indo atrás dos ritmos que faziam sucesso na época: começou imitando Elvis Presley, depois tentou ser um cantor de Bossa Nova e finalmente estourou nas paradas de sucesso com o Iê-Iê-Iê. Quando sentiu que o público estava se cansando do som da Jovem Guarda não pensou duas vezes antes de pular do barco e começar a fazer uma música mais adulta, madura, com o objetivo de embalar as massas. 

 

Sua guinada na virada dos anos 1960 para os 70 deu muito certo: seus discos, sempre lançados na época do Natal, vendiam 1 milhão de cópias no auge do sucesso. Roberto sempre soube estar na crista de onda, seguindo as tendências musicais e o que tinha potencial de venda. Por isso, chegou a cantar com artistas de todos os tipos e tendências. Não porque eles eram necessariamente talentosos (muitos deles ainda são!), mas porque eles são máquinas de fazer dinheiro! El Rey, como bom vampiro musical, precisava sempre se reconectar com novas faixas de ouvintes.


 

Roberto Carlos chegou aos 80 anos de idade em abril de 2021 com a certeza absoluta de que é o maior nome que o showbiz brasileiro já produziu em décadas. Antes um desconhecido cantor de boates vindo do subúrbio, El Rey conquistou o seu respeitável público (composto de classes mais baixas) com o seu carisma exposto pela TV, para depois cantar para pagantes bem endinheirados em estádios, casas de show e em cruzeiros com ingressos a preços estratosféricos. Desprezado pelas elites no passado, adulado pelos mais endinheirados e pelo mesmo povão que sempre o amou, Roberto é dono de uma obra monumental, cujas canções mais emblemáticas - compostas em parceria com Erasmo Carlos seu “eterno amigo de fé e (...) irmão camarada” - compõem a lista dos maiores clássicos da nossa música. 

 

Apesar das inúmeras decepções com a figura pública, todas essas desilusões tendem a sumir na longa estrada. Afinal de contas, os ídolos sempre despertam um amor sem limite dentro de cada um de nós...

23 de abril de 2021

TROVA # 163

UMA NOITE COM JUDY GARLAND

Relembrando Judy at Carnegie Hall 60 anos depois...

 


The world is a stage

The stage is a world 

of entertainment!

(Arthur Schwartz & Howard Dietz)

 

Weep no more, my lady

Sing that song again for me

(Jean Schwartz, Sam M. Lewis and Joe Young)



 

 

Foi em uma noite de domingo como qualquer outra. Uma mulher de 38 anos e de 1 metro e 51 centímetros subiu ao palco do Carnegie Hall, uma das casas de espetáculo mais prestigiadas do mundo, para mais uma apresentação ao vivo de seu show. No setlist havia canções de amor, de alegria, de tristeza, de desilusão, desespero e até alguns versos que nos trouxessem um toque de leve esperança. O espetáculo seria um evento qualquer se a moça em questão não atendesse pelo nome de Frances Ethel Gumm, mais conhecida entre nós com o nome artístico de Judy Garland.

 



 


Quando Judy Garland subia em cima de um palco ela deixava de ser uma mulher frágil e insegura de 1,51 m para se transformar em uma verdadeira gigante. Ao interpretar os clássicos de Harold Arlen, Johnny Mercer, Richard Rodgers, Lorenz Hart, Howard Dietz, Dorothy Fields, Jimmy McHugh, dos irmãos George e Ira Gershwin e tantos outros baluartes da canção norte-americana, ela parecia ser bem mais velha do que os 38 anos que ela tinha naquela noite. Suas apresentações ao vivo eram repletas de intensidade, de muita energia, sarcasmo e bom humor e quem estivesse em sua plateia garantia que um show de Judy era sempre um evento inesquecível. Ela cantava cada nota dando o máximo de sentimento que sua voz pudesse oferecer para o ouvinte, a ponto de que poderia desfalecer no minuto seguinte. Seus admiradores a amavam por causa disso, outros nem tanto, pois achavam tudo aquilo um tanto over.

 





Judy precisou de um pouco mais de duas horas para escrever seu nome na história do entretenimento com a apresentação que deu origem ao álbum Judy at Carnegie Hall, lançado como LP duplo em julho de 1961. O disco fez um enorme sucesso na época e foi o primeiro trabalho gravado por uma mulher a ganhar o Grammy de Melhor Álbum do Ano e é o registro oficial do que batizaram de “a maior noite na história do show business”. Ao ouvi-lo seis décadas depois de seu surgimento, ainda podemos sentir todo o magnetismo de uma das maiores artistas que o mundo já assistiu.


 

Apesar do êxito comercial de seu álbum ao vivo, Judy Garland já tinha garantido seu nome na galeria das maiores lendas de Hollywood ao dar vida à jovem Dorothy Gale em O Mágico de Oz (1939). Ao ser alçada para o estrelato, seguiram-se os percalços: a celebridade, o vício em álcool e drogas, os relacionamentos fracassados, seus três filhos e vários escândalos. Tal qual outras lendas de seu tempo como Elizabeth Taylor, Marilyn Monroe ou Carmen Miranda, Judy foi tragada pelo star system que fez dela um dos nomes mais importantes do entretenimento do século XX. Infelizmente, o sucesso foi o combustível da maior parte de sua tragédia. Porém, sua arte sempre falou mais alto.

 


Considerada um dos maiores ícones da comunidade LGBTQIA+, Judy Garland influenciou uma quantidade significativa de astros e estrelas de outras gerações. Rufus Wainwright, cantor canadense e ícone gay, é tão aficcionado pela artista que chegou a gravar um álbum ao vivo refazendo o roteiro de Judy at Carnegie Hall. Liza Minnelli, sua filha mais velha, seguiu os passos da mãe e se tornou uma cantora e atriz respeitável. Barbra Streisand, que já possui seis décadas de serviços prestados ao entretenimento, sempre foi fã da intérprete de “Over the Rainbow”. Por aqui no Brasil, temos em Maria Bethânia uma devota confessa da arte de Ms. Garland. É mais do que notório que Judy deixou um legado importante para seus fãs e sucessores quando morreu, em julho de 1969. Artistas de sua estatura são cada vez mais raras nos tempos atuais. Por isso, jamais devemos nos esquecer dela e de tudo de bom que ela já fez.


 

Por isso, 23 de abril de 1961 deve ser uma data que sempre deve ser lembrada como uma das noites mais importantes da história do entretenimento. Judy at Carnegie Hall  traz uma artista com toda a sua vivacidade em cena.. Uma cantora e atriz que desafia as leis da física, da lógica e da emoção ao arriscar as tonalidades mais agudas para transmitir o sentimento de cada verso que ela cantava em cima de um palco. Uma aula de interpretação musical que não deve ser esquecida com o passar das décadas, apesar da vontade de relegar a arte à ignorância e ao ostracismo...




16 de fevereiro de 2021

TROVA # 162

 

MEMÓRIAS DE FEVEREIRO


“Sai do lixo a nobreza

Euforia que consome

Se ficar o rato pega

Se cair urubu come

 

Vibra meu povo

Embala o corpo

A loucura é geral

Larguem minha fantasia

Que agonia... Deixem-me

Mostrar meu carnaval

 

Firme... Belo perfil!

Alegria e manifestação

Eis a Beija-flor tão linda

Derramando na avenida

Frutos de uma imaginação”

(GRES Beija-Flor, 1989)



Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

 

Brasil, meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato

(GRES Estação Primeira de Mangueira, 2019)



            Por conta de uma pandemia que já ceifou quase 240 mil vidas em nosso país, assisti algo inédito em 40 anos de passagem por este mundo: mês de fevereiro sem cores, sem alegria, sem irreverência, sem batucada nas ruas. Para não deixar o período de Momo passar em branco, a passarela do samba, localizada na Avenida Marquês de Sapucaí, ficou iluminada com as cores das agremiações que levam alegria para tantas pessoas do período entre a sexta-feira de carnaval e a quarta-feira de cinzas. Mês de fevereiro sem carnaval é como mês de junho sem Festa Junina ou mês de dezembro sem Papai Noel: não tem a menor graça!

            Apesar das restrições, muitos resolveram aproveitar a oportunidade para vestir uma fantasia, resgatar uma maquiagem mais colorida ou uma peruca velha e ficar curtindo os festejos de casa mesmo. A TV Globo aproveitou o fato de que há mais pessoas dentro de seus lares para reprisar desfiles marcantes das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, para os saudosos de antigos carnavais. Neste ano, aproveitei mais uma vez a oportunidade para ficar recolhidos com meus pensamentos, manias e obsessões para tentar colocar a cabeça no lugar. Em ocasiões como esta, as memórias acabam resgatando momentos nos quais a vida ainda pode valer a pena.

            Como bom carioca que sou – fui nascido e criado com a vivência de sambas-enredo e escolas de samba dentro de casa –, sempre mantive na memória os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Eu tinha acabado de completar 8 anos de idade quando Joãosinho Trinta, na época carnavalesco da Beija-Flor de Nilópolis, tentou levar um Cristo mendigo para a passarela do samba para compor o enredo “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia!” em fevereiro de 1989. Estarrecida com a ousadia de Joãosinho (onde já se viu contar uma parte de nossa história utilizando um Jesus em farrapos?), a Igreja Católica armou uma enorme confusão, censurou o desfile e o carnavalesco quase foi parar na cadeira por conta da ousadia de sua arte.

Não me lembro de quase nada daquele desfile, mas o que vi e mal entendi daquela passagem da Beija-Flor pela Avenida Marquês de Sapucaí está disponível nos arquivos das emissoras de televisão e no YouTube para a nossa imensa alegria. Censurado em um Brasil que reaprendia a ser democrático, Joãosinho Trinta resolveu não deixar barato: levou o Cristo para a passarela do samba, porém coberto de sacos de lixo com os dizeres “MESMO PROIBIDO, OLHAI POR NÓS!”, gerando uma verdadeira comoção e causando ainda mais rebuliço diante do moralismo que nos censura até hoje.



            Outro desfile que ficou guardado na memória do inconsciente coletivo – e eu me incluo entre essas pessoas, porque eu lembro bem! – foi o lendário desfile da Estação Primeira de Mangueira entre o domingo e a segunda-feira de carnaval trinta anos depois da barulhenta e controversa passagem da Beija-Flor pela mesma passarela do samba, em 2019. Frustrado com uma passagem mediana da Portela pela Avenida Marquês de Sapucaí (naquele ano, a homenageada era Clara Nunes, uma de suas portelenses mais ilustres e uma das cantoras preferidas daqui de casa), já estava me preparando para desligar a TV e ir dormir quando eu vi a apresentação da agremiação de Cartola no seu início.

            Duas ou três pessoas me advertiram a respeito da beleza do samba-enredo da Mangueira para o ano de 2019 e eu não dei o menor crédito por pura implicância, provavelmente. Mesmo assim, decidi dar uma chance aos mangueirenses e fiz questão de ficar acordado às 4 horas da manhã para assistir o que eles tinham preparado para a Marquês de Sapucaí. Em menos de cinco minutos fui completamente arrebatado pela beleza de um dos desfiles de carnaval mais inesquecíveis da minha vida. Estava diante de um samba-enredo imbatível: refrão encantador e fácil de ser assimilado, belas fantasias e alegorias, irreverência mil e uma proposta (ousadíssima) de recontar a história do Brasil tão bem contada pelos brancos bem-sucedidos e muito mal contada sob a perspectiva de negros, indígenas, pobres e outros que nunca compactuaram com as artimanhas do poder oficial.

            Fazer o brasileiro pensar em coisa séria na madrugada de uma segunda-feira de Carnaval e reverenciar heróis vivos e saudosos é o maior legado que a Estação Primeira de Mangueira deixou para todos naquele desfile de 2019. Além de deixar registrado em versos e sons a luta de nomes como Leci Brandão, Zuzu Angel, Jamelão, Mussum, Dandara, Aqualtune, Chunhambebe, Luísa Mahin, Tereza de Banguela, Mariana Crioula, Carolina de Jesus, Aleijadinho, Marielle Franco e tantos outros para que possamos ter a oportunidade de conhecer quem são os verdadeiros lutadores da nossa pátria. O carnaval de sambódromo, essa arte tão elitizada e tomada pela arrogância das celebridades, dos bicheiros e dos pagantes dos custosos camarotes vai de volta para as mãos do povo que o criou.

        Leandro Vieira, carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira e um excelente discípulo de Mestre Joãosinho Trinta, decidiu ignorar reis, rainhas, escravocratas e bandeirantes que mancharam as páginas da história de nosso país de sangue, suor e opressão para resgatar a memória daqueles que não puderam ver seus nomes, fotos ou ilustrações nas páginas dos livros. Seguindo a cartilha de um dos maiores mestres da história do carnaval, Leandro fez questão de encerrar o desfile da Mangueira com uma bandeira do Brasil estilizada de verde e rosa e com os dizeres “Índios, Negros e Pobres” no lugar dos dizeres “Ordem e Progresso” que ocupam o símbolo da nossa soberania. Os excluídos pela “história oficial” receberam uma consagração merecida 519 anos depois da “descoberta” da Terra do Carnaval. Contar as memórias de nosso país sob a ótica de mulheres, de indígenas e de torturados pela Ditadura Militar em tempos de retrocesso democrático é, sobretudo, um gesto de ousadia e coragem tal qual Joãosinho fez à frente da Beija-Flor de Nilópolis trinta anos antes.


          A folia não existe apenas para o mero desfrute e entretenimento dos brasileiros nas ruas, avenidas e passarelas do samba: ela existe também para que as pessoas possam demonstrar o descontentamento coletivo perante o poder oficial, por isso a ira de nossos governantes contra o carnaval é permanente. A sátira e a resistência são as armas dos oprimidos para sobreviver às misérias e aos desmandos do dia-a-dia. Por isso, não me surpreendi nem um pouco ao ver os defensores do atual governo, conservador e retrógado por excelência, amaldiçoando o não-carnaval de 2021 como se fosse um castigo divino por uma imagem de um Jesus Cristo sendo torturado por um diabo estilizado.

Ainda precisamos de muitos Joãosinhos e Leandros que tenham a coragem de colocar os tabus para desfilarem nas passarelas do samba para espantar a caretice e a desonestidade daqueles que nos (des)governam. Para desgosto e desespero da turba conservadora e mesquinha, em 2022 voltaremos para fazer um dos carnavais mais bonitos da história, dignos de fazer parte das “memórias de fevereiro” que fazem parte do inconsciente coletivo de muitas pessoas.